Logo O POVO+
A vida por um fio
Reportagem

A vida por um fio

Muitas histórias cruzam a tragédia do Edifício Andréa, no Dionísio Torres. O POVO ouviu quem, por algum motivo, poderia estar na lista de corpos encontrados. Pais, mães, filhos que hoje comemoram um domingo em família
Edição Impressa
Tipo Notícia

Uma família unida depois de um baita susto. Leve, risonha e com uma energia sem igual para quem perdeu a casa comprada por milhões de cruzados ou cruzeiros há 36 anos. Seu Clotário Sousa Nogueira, dona Ana Maria Ramos Nogueira, as três filhas e os netos têm muito o que comemorar. Hoje, amanhã e por todos os dias que seguem. Um dos primeiros moradores do Edifício Andréa, proprietário de uma cobertura duplex, de quase 300 m², o aposentado contou que nunca ninguém imaginou que as rachaduras nas colunas seriam tão graves.

No apartamento, moravam o casal e, no andar de cima, uma das filhas, com esposo e neta. A terça-feira começou tranquila, Clotário se deu conta de que havia esquecido a carteira no sítio da família e precisava tirar dinheiro. "Eu disse que a Ana tinha de ir comigo, por causa da biometria, que só ela tem", lembra. Dona Ana Maria nem queria sair de casa, mas precisou. No térreo, a obra estava em andamento. Na verdade, de acordo com ele, as intervenções começaram um dia antes. "Eu desci, vi a dona Maria das Graças (a síndica) escorada em uma das colunas, conversando com uma pessoa", conta.

As rachaduras nas colunas já haviam motivado uma reforma há cerca de cinco anos. E há dois meses foi de novo pauta da reunião de condôminos. A taxa extra de R$ 350 foi adicionada ao condomínio, no valor de R$ 1 mil. "A síndica era uma mulher zelosa, estava em seu segundo mandato. Ela encabeçou o movimento para a reforma, disse inclusive que conhecia a empresa", destaca. As rachaduras eram descritas como riscos, de acordo com Seu Clotário, que vinham aumentando, aparecendo mais. As imagens que circularam no mesmo dia do desabamento, mostrando os ferros expostos, ele faz questão de dizer que já eram resultado da ação de pedreiros. "Não tinha nada daquele jeito. Na segunda, eles começaram a mexer, mas, na terça, foi com mais força", detalha.

Quando estava no banco para fazer o saque, a ligação de um funcionário do sítio trouxe a notícia sobre o desabamento. Os vídeos já estavam nas redes sociais. Seu Clotário sabia que a filha e o genro tinham saído, constatou que os carros não estavam na garagem. Dona Ana tratou de ligar para a filha e perguntar especificamente pela neta. "No dia anterior ela estava com dor de cabeça, fiquei com medo de ela não ter ido para aula", lembra a avó. Todos bem e a próxima coisa a fazer era voltar para casa: "mas só havia um buraco, enorme, diz dona Ana".

Desde então, pulseiras identificando que eles são moradores e permitindo a entrada na área restrita do desabamento estão sempre no pulso. A morada tem sido o apartamento de uma das filhas. As roupas emergenciais foram compradas em um supermercado. E existe a espera pelo seguro que Seu Clotário fez a vida inteira. Assim como há a lembrança da coleção de livros, do revestimento de madeira no apartamento, da vista para o mar, do vento deitado na rede à tarde. "Nunca pensamos em nos mudar. Eu gosto muito lá do sítio, mas eu durmo mais tranquilo no apartamento, com a janela aberta", frisa, ainda no tempo presente. O sonho era deixar o patrimônio para as filhas.

Pela segunda vez em seus 78 anos, o aposentado morador do Edifício Andréa escapou da morte. A primeira foi em um acidente de carro. Ele acha que ainda tem uma missão - ou uma dívida - na terra. Católico, pensou muito na recém-santificada Irmã Dulce por causa das histórias bonitas que ouviu. Seu Clotário tem uma fala firme, mas lacrimeja fácil. E confessa que tem lá suas "pendengas" com a morte. "Eu sou revoltado com a morte. Eu sei que vou morrer, não tem jeito. Mas meu pai trabalhou a vida inteira e quando a gente começou a botar a cabeça para fora, ele morreu. Não usufruiu da ascensão dos filhos".

Do edifício, hoje, ele queria retirar as pastas com documentos e a "televisãozinha" portátil. Dona Ana Maria, com quem está casado há 52 anos, queria o teclado e as colchas de crochê feitas por ela. "A gente tem uma missão nessa terra ainda", destaca. Sobreviventes em meio à uma das maiores tragédias que Fortaleza já vivenciou. Eles não morreram por um fio. E inúmeros motivos que nunca conseguirão explicar. (Sara Oliveira)

 

O que você achou desse conteúdo?