Logo O POVO+
O debate entre a necessidade de reinserção de infratores na sociedade e a relativização da violência no futebol
Reportagem

O debate entre a necessidade de reinserção de infratores na sociedade e a relativização da violência no futebol

Duas possíveis contratações de jogadores envolvidos em casos de violência contra mulher suscitaram debates sobre relativização de agressões, posicionamento dos clubes de futebol e reinserção de infratores no mercado
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Foto retirada pela Polícia de Orlando quando Jean foi preso nos Estados Unidos (Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Foto retirada pela Polícia de Orlando quando Jean foi preso nos Estados Unidos

Um era goleiro do Flamengo quando foi acusado e condenado pelo assassinato da mãe do próprio filho. O outro, mais recentemente, foi denunciado pela esposa de agressão física.

As violências contra mulheres cometidas pelos goleiros Bruno e Jean, em maior ou menor grau, respectivamente, estão longe de serem casos isolados no contexto do futebol nacional e internacional. A possibilidade de contratação e recolocação no mercado no Fluminense de Feira, para Bruno, e no Ceará, para Jean, suscitaram protestos e debates durante os últimos dias.

A partir das repercussões negativas, os times recuaram de ligar-se aos jogadores. No caso do Alvinegro de Porangabuçu, a torcida levantou duas hashtags no Twitter (#JeanNão e #JeannoCearáNão) e já organizava manifestações presenciais na sede do clube em repúdio à perspectiva de transação com o goleiro do São Paulo — o clube paulista ainda estuda forma de rescindir o contrato por conta do episódio denunciado, que acabou resultando em breve prisão de Jean, em Orlando (EUA).

Parte da torcida alvinegra aponta que ainda pesava contra o Vovô o fato de que, pela terceira vez no histórico recente do time, um jogador com denúncias de violência doméstica era cogitado para assumir vaga. Nas outras duas vezes, em 2018 e 2019, com um ex-jogador do clube e outra atualmente no elenco (que não terão os nomes divulgados para que sejam preservadas as identidades das vítimas) as contrações foram concretizadas mesmo com ações contrárias da torcida.

"Eu me sinto desrespeitada. Nós, mulheres, sofremos diversos tipos de violência cotidianamente, no estádio não é diferente. No entanto, a gente tem a expectativa de que, após um processo de violência, encontre (por parte do clube) algum tipo de proteção, apoio e solução do conflito. E aí, no momento que o clube assume a postura de ignorar a existência de uma violência de um jogador, significa que no momento em que eu, como mulher, vou ao estádio, se eu passar por uma situação de violência eu não vou ser acolhida, apoiada, e que o clube não tem o menor interesse de tratar o assunto", argumenta a assistente social e integrante da torcida Vozão Antifascista, Ingryd Melyna.

Membro da mesma torcida, o sociólogo do futebol Joaquim Sobreira Filho aponta que há uma escalada de insatisfação da torcida em relação aos casos anteriores que se reflete, também, no impacto das manifestações. Para ele, mesmo que Jean fosse cogitado no Ceará em boa fase na carreira, os torcedores manteriam o protesto, porque "seria um risco desnecessário". "É um verdadeiro acinte contra os torcedores".

O que se pondera, neste ponto, é que haveria na postura do Ceará e na de outros clubes com casos semelhantes a relativização da violência contra mulher. A professora de Universidade Brasília (UnB) e pesquisadora do Observatório de Violência Contra a Mulher (Observem) de Universidade Estadual do Ceará (Uece), Hayeska Costa Barroso, explica que essa relativização se manifesta em três frentes: quando clubes ignoram a violência cometida pelos jogadores; quando não ignoram, mas consideram um crime de menor potencial ofensivo; ou quando, mesmo sem considerar, não organizam ações de combate a essas violências.

Como não há juridicamente mecanismos que impediriam a continuidade da carreira no futebol dos agressores, os casos levantam um debate moral. Para a pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança e do Laboratório de Estudos da Violência (UFC) Ana Letícia Lins, o curso do processo legal deve ser respeitado e, após o cumprimento da pena pelos crimes cometidos, a pessoa tem o direito de se reinserir na sociedade, sendo o trabalho um direito. A penalidade, no entanto, em muitas ocasiões envolvendo atletas, nem mesmo chega a acontecer.

Lins ainda pontua que, diante da possibilidade de uma posição de idolatria, casos como o do goleiro Bruno, por exemplo — que recentemente foi abordado e celebrado por torcedores do Flamengo, ex-clube dele, em um shopping —, tem de ser amplamente debatidos, ao custo de perpetuar-se a relativização da violência contra mulheres.

"A permanência desses sujeitos no cenário do futebol é um reforço, sim, da ideia de impunidade. Há um reforço de uma cultura machista e fortemente patriarcal, há um reforço de que o futebol está imune a um movimento da sociedade de rever o lugar das mulheres", assevera Barroso.

FORTALEZA,CE,BRASIL,27.08.2019: Parceria entre o clube Tiradentes e Centro Educacional Aldaci Barbosa, levam treino de futebol para meninas adolescentes que cumprem pena. (fotos: Tatiana Fortes/ O POVO)
FORTALEZA,CE,BRASIL,27.08.2019: Parceria entre o clube Tiradentes e Centro Educacional Aldaci Barbosa, levam treino de futebol para meninas adolescentes que cumprem pena. (fotos: Tatiana Fortes/ O POVO)

As chaves para a reinserção na sociedade

A Justiça Restaurativa, com a intermediação dos conflitos entre vítimas e agressores e também com processos que amparem infratores na ressocialização, após cumprimento de pena, pode ser, para o juiz de Direito Eduardo Gibson parte da solução quando se fala em caso de violência domésticas e familiares cometidas por jogadores.

Gibson destaca a gravidade do problema que o País tem no enfrentamento da violência contra a mulher. "É preocupante a incidência de casos, porque a lei Maria da Penha (de 2006) foi editada, justamente, para evitar isso. E infelizmente ainda há um falta de efetividade da lei em relação a diminuição dos casos (ainda que seja efetiva na punição). É preciso haver um trabalho de prevenção muito forte pelos governos, pelos meios de comunicação", pontua.

Não obstante, o magistrado defende que a reinserção na sociedade de pessoas que cumpriram penas por delitos faz parte do processo democrático. Gibson, que é titular do Projeto "Justiça Já", vinculado à 5ª Vara da Infância e da Juventude de Fortaleza, aponta que é preciso separar: "O sujeito errou, deve pagar por isso perante a Justiça e, na parte profissional, ele vai atuar para poder prover suas obrigações".

O juiz admite que, diante de um esporte que mexe com a paixão, é normal que a torcida se manifeste e também cabe à direção de cada agremiação avaliar e pesar o "que é melhor em relação à política moral e ética do clube", e cada caso precisa ser verificado com cautela. "Contudo, não se pode penalizar a pessoa ad eternum (para sempre). Não existe pena perpétua no Brasil, então, em determinada hora, ele vai precisar, sim, se refazer (perante a sociedade). E, no caso do jogador de futebol, dentro do esporte. Por que não ter uma nova chance e conseguir mostrar que se redimiu, se arrependeu?", questiona.

É nesse ponto que entraria, pois, os dispositivos previstos na Justiça Restaurativa, que poderiam envolver muitas partes, como agressor, vítima, dirigentes e representantes de torcidas, para a construção de um diálogo com psicólogos e assistentes sociais. A ideia é equilibrar as necessidades e possibilidades de cada parte dentro de uma vida em sociedade.

Guardada as devidas proporções e saindo do contexto de violência contra mulher, é que Eduardo Gibson tenta pôr em prática no projeto que, pelo futebol, reabilita adolescentes em conflito com a lei. Garotas que cumprem penas no Centro Educativo Aldaci Barbosa são levadas a participar de uma parceria com o clube Tiradentes. "Por meio do esporte, ela se educa, conhece melhor como é o sistema coletivo, fica menos individualista, e compreende, no microcosmo do esporte, o que é a sociedade. Educando-se, ela se torna uma pessoa ressocializada", pondera.

O que você achou desse conteúdo?