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Como será o amanhã? A retomada da vida na reabertura após o pico da Covid-19
Reportagem

Como será o amanhã? A retomada da vida na reabertura após o pico da Covid-19

|Rotina| O 1º de junho será, para muitos, mais do que a simples retomada da vida que se tinha antes da pandemia. Será a chance de olhar de outra forma para si, para o outro e até para a cidade
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Foto: carlus campos 3105dom001

Retomar as atividades depois de mais de 70 dias de isolamento pode se tornar um desafio para muitos ou mesmo um alívio. Para outros, no entanto, o isolamento será mantido por conta própria, como a melhor opção para o momento de pandemia, mesmo após a reabertura gradual de atividades econômicas, esportivas, culturais e de lazer, que devem começar no Ceará a partir de 1º de junho.

Enquanto governos, empresariado, pesquisadores e gestores discutem como voltar a um "novo normal" no momento em que o vírus que causa a Covid-19 ainda faz vítimas no estado, uma boa parcela da população precisará mudar alguns hábitos e processos mentais para lidar em um mundo de relações transformadas pela doença.

A professora do curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Alessandra Xavier, ressalta que apesar da retomada e do retorno das atividades, o cenário ainda não é muito diferente do início da epidemia, já que não há vacinas e cura, e que boa parte das pessoas deve seguir com medidas de autocuidado, como higienização e proteção, sob risco do agravamento dos casos e retorno das medidas mais rígidas implantadas pelo governo.

"É bem comum o aumento nos comportamentos impulsivos, que são esperados após períodos de privação e restrição. Quando há, finalmente, a liberação, muitas pessoas querem 'fazer tudo ao mesmo tempo' e dar conta de viver o que elas não puderam fazer, algo que pode ser extremamente adoecedor, já que o excesso também causa ansiedades e prejuízos de ordens diversas", enumera.

Por outro lado, segundo a psicóloga, a reabertura também vai expor reflexões feitas durante a quarentena, na medida em que muitos vão questionar hábitos de consumo e redefinir prioridades.

"Além dessas ponderações feitas sobre si e o outro, resultado da quarentena e exposta na volta à rotina, imagino que muitas pessoas também vão enxergar de outra forma a relação que têm com a cidade e passar a perceber cheiros, cores e diversidades que a rotina corrida do dia a dia simplesmente não dava margem para a observação", acredita.

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Na foto: Gustavo Cravo, Arquivo Pessoal
Na foto: Gustavo Cravo, Arquivo Pessoal

Reabertura na Espanha

"Estou na Espanha desde janeiro deste ano e vi tudo acontecer desde o começo, sendo março o mês que a situação começou a ficar mais crítica. Ouvi muito pedidos da família, professores e amigos para que eu deixasse o doutorado sanduíche e voltasse ao Brasil.

Aqui a abertura está sendo gradual, pois o governo criou as fases 0, 1, 2 , 3 e 4 para o processo de saída da quarentena. Até duas semanas atrás, Barcelona e Madri, onde moro, permaneceram na fase zero enquanto o resto do país avançava pra fase 1. Uma semana atrás, elas avançaram pra fase 0,5 e agora o país está na fase 2, que significa que as pessoas podem ir aos lugares em qualquer momento, sem a reserva dos horários para idosos e grupos de risco. A fase atual na minha cidade é a de que as pessoas podem sair na rua com máscara, mas evitando aglomerações, o que equivale à fase 1. A impressão que eu tenho é que virou uma bagunça. Assim que o governo afrouxou, a disciplina que as pessoas tinham também e, em muitos casos, até foi deixada de lado. Moro com outras estudantes e vejo isso dentro de casa - elas passam o dia fora e quando chegam, não tomam sequer um banho. Moro em um bairro pobre, de estudantes, latinos, africanos e toda sorte de imigrantes, e o comércio está todo aberto. O povo anda sem máscara e as crianças brincam na rua em contato umas com as outras. Os bares estão cheios e as pessoas bebem uma do lado da outra, sem máscara também. A impressão que dá é que não há mais coronavírus em canto nenhum. Mas tem muito colchão largado na rua e nas lixeiras, e isso é bem macabro. Explico: aqui as pessoas creem que não é bom continuar usando um colchão no qual uma pessoa morreu. Aí você vê que ainda tem muita gente morrendo porque simplesmente há muitos colchões jogados no lixo."

Na foto, Jaceline Novíssimo (Arquivo pessoal)
Na foto, Jaceline Novíssimo (Arquivo pessoal)

Voltar ao trabalho ou ficar em casa

"Eu já estava com uma viagem programada e gostaria muito de viajar, mas penso que o momento não é de sair nem para perto, porque a situação é séria. Me sinto bem dentro de casa e tenho muito medo de sair porque sinto que o vírus está em toda a parte. Não sou cientista, mas penso que a gente ainda está no pico e é muito cedo para voltar às atividades normais", afirma a tradutora Gardênia Barbosa Lima.

"Estou receosa, mas a vontade de voltar a trabalhar é muito maior. Sei que tenho algumas facilidades, como por exemplo, meu trabalho ser perto da minha casa, eu poder ir e voltar de carro e a agência normalmente ter pouca gente. Eu não aguentava mais ficar em casa e, o pior, sem dinheiro. Vou redobrar a atenção porque tenho a consciência de que poderei trazer o vírus para minha família", diz Jace Carvalho, 38 anos, agente de viagens.

Gardênia e Jaceline são apenas dois dos muitos exemplos de pessoas que, assim como elas, estão às voltas com os primeiros passos da volta das atividades econômicas após a pandemia do novo coronavírus. Se durante o período de isolamento social rígido, uma simples ida ao supermercado era motivo para um episódio de ansiedade, para outros, não deixou de ser um momento de continuar com a rotina, ainda que não fosse por motivos essenciais. "Seria muito simplório dividir os comportamentos pós-pandemia em apenas dois tipos, dada a variedade da população. Existem várias narrativas, inclusive daqueles que acompanham o discurso do Governo Federal, que é negacionista", afirma José Olinda Braga, professor do departamento de Psicologia e integrante do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC).

"No Brasil, ao contrário da Argentina, por exemplo, que é um país bem menor e mais pobre, o governo não deu amparo suficiente para que as pessoas pudessem ficar em casa sem passar necessidades. Essa é uma abordagem social que precisa ser levada em consideração, para além de questões psíquicas. Já do ponto de vista emocional, o que levaria uma pessoa a correr riscos e ir para a rua, apesar dos números da Covid-19 ainda serem assustadores? É desesperador ver filhos e família passando fome, pois para muitos, o dinheiro só é garantido se o trabalhador for para rua", pondera.

"O que aconteceu no primeiro momento foi o medo da morte e a intensificação dos cuidados e o recolhimento. O tamanho do medo correspondia ao tamanho do perigo. Passados alguns meses, muitos permaneceram com o medo muito maior do que o perigo inicial. É uma característica que, se não tratada, pode desembocar em ansiedades e crises de pânico. É preciso, mais do que nunca, procurar meios de falar dos próprios sentimentos e emoções", indica. (Flávia Oliveira)

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