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Breve história de uma tragédia (sem precedentes)
Reportagem

Breve história de uma tragédia (sem precedentes)

Faz seis meses que as pessoas morrem por Covid-19 no Ceará. No dia mais terrível, 9 de maio, foram 106 vidas interrompidas. A linhagem do vírus presente no Estado só foi detectada aqui. A rotina começa a ser retomada, com restrições, mas o risco ainda existe
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UM ANO marcado pelas mortes por Covid-19, representado pelo clique no cemitério do Bom Jardim, em Fortaleza (Foto: Fabio Lima)
Foto: Fabio Lima UM ANO marcado pelas mortes por Covid-19, representado pelo clique no cemitério do Bom Jardim, em Fortaleza

Mesmo sendo uma história ainda curta para relembrar, a sensação é de que o relógio gira há muito mais tempo. São seis meses desde o registro da primeira morte causada pelo novo coronavírus no Ceará: 24 de março. A lista de óbitos no Estado, na verdade, foi iniciada com três casos divulgados. Pareceu grave, como realmente seria. Os fatos da pandemia cearense são cheios de peculiaridades em relação ao restante do País - uma linhagem específica do vírus, uma agressividade da doença sempre no alto do ranking. Passados 180 dias, mais de 8.800 mortes no território cearense, mais de 3.800 na Capital. A praga de 2020 migrou para o Interior. Segue matando, mesmo que agora em menor escala.

O risco não cessou. A Covid-19 estabeleceu dados de catástrofe sanitária, embora o cenário atual seja hoje mais favorável. "Há dois meses Fortaleza não registra mais de 10 óbitos por dia", informou o último boletim epidemiológico da Secretaria Municipal da Saúde, atualizado dia 18/9. No pior momento, três semanas dimensionaram o que foi a tragédia local. Entre os dias 3 e 24 de maio, Fortaleza chegou a notificar mais de 80 mortes/dia dentro da média móvel (a contagem feita para cada bloco de sete dias). Foi o pico. Em 9 de maio, morreram 106 pessoas naquele único dia. Foi a data mais terrível.

No anúncio dos primeiros óbitos, em 26/3, feito dois dias depois das ocorrências em hospitais da cidade, a epidemiologia local contabilizava 238 casos confirmados no Estado. Em abril, os índices explodiram. Na data da edição deste texto, passava dos 236 mil. Naquela primeira fase, sabia-se que a subnotificação era muito grande. "Não havia testagem ampla ainda. Naquele momento era praticamente total essa subnotificação", reconhece o gerente da Vigilância Epidemiológica de Fortaleza, Antônio Silva Lima Neto, o "Tanta". Ele, que já havia feito 14 exames até o dia da entrevista, é, ao lado do governador Camilo Santana, um dos poucos do Comitê Estadual de Enfrentamento à Pandemia do Coronavírus que ainda não contraiu a doença. No ápice do problema, o grupo chegava a se reunir diariamente. Foram dias sem folga, poucas horas de sono. A tensão se mostrava indiscreta na mesa das decisões.

Os países se digladiavam para adquirir mecanismos de identificação e tratamento da doença. Mas não havia disponíveis. O Estado do Ceará, segundo Tanta, estava nessa disputa diretamente contra Inglaterra, França, Itália, Estados Unidos. Kits de testes, equipamentos de proteção individual e respiradores sumiram, cobravam fortunas por eles. Cada Estado tentava adquirir separadamente. Lidava-se com o desconhecido, que chegou de supetão. Porém, antes de conseguir matar, a Covid em Fortaleza teve seus primeiros casos numa área bem específica da cidade - justamente a mais nobre.

As primeiras confirmações não fatais, segundo Tanta, aconteceram notadamente em bairros de maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano): Meireles, Papicu, Cocó, Aldeota, Mucuripe e Guararapes. A primeira fase teve esse epicentro bem definido. Os pesquisadores conseguiram confirmar: o vírus foi trazido por quem havia viajado pouco antes para fora do País. Isso foi constatado, conta o epidemiologista, em pelo menos duas frentes. A primeira no exame de convidados de dois casamentos realizados em área abastada da cidade, em fevereiro, em datas próximas. A alta contaminação entre os frequentadores foi atestada em exames laboratoriais. Os que positivaram haviam recém-chegado de viagens feitas ao Exterior - e moravam nesses bairros mencionados acima.

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A outra prova científica foi dada por um cearense de 28 anos, estudante da Universidade de Oxford, no Reino Unido. Doutorando em Zoologia na terra da rainha Elizabeth, nascido em Quixeramobim, no Sertão Central cearense, o jovem Darlan Cândido participou de uma equipe de 78 pesquisadores que conseguiu levantar o sequenciamento do genoma do Sars-CoV-2 presente no Brasil. Com pouco mais de 400 amostras analisadas, ele ajudou a descobrir que foram três linhagens do coronavírus, ou cepas, que se espalharam em solo brasileiro: uma predominou em São Paulo, a maior delas; a outra conseguiu se entranhar pelo restante do País; e a terceira, a mais diferenciada, foi encontrada somente no Ceará.

O artigo científico de Darlan foi publicado na respeitada revista Science, em 23 de julho, e passou a referenciar todos os trabalhos que tratam do coronavírus no mundo. Ficou comprovado que houve mais de 100 entradas do vírus no Brasil, entre o fim de fevereiro e início de março. Eram originárias principalmente da Europa. Em Fortaleza, entraram pelo Hub aéreo. "Essa cepa do Ceará só foi encontrada aqui, em mais nenhum lugar. Acreditam que veio provavelmente da Itália. Extremamente virulenta, agressiva. Foi a taxa de mortalidade mais importante do Brasil naquele momento", descreve o gerente da Vigilância Epidemiológica. "Foi uma epidemia importada realmente. A gente até espera isso, como aconteceu com a gripe H1N1. Mas não se esperava tão marcante". No início do cenário, vários dos exames diagnosticaram H1N1, porque também estava na sazonalidade das doenças respiratórias.

Os cientistas ainda não entendem direito o porquê dessa linhagem do Sars-CoV-2 cearense não ter se expandido no País. "Cogitam que foi por causa do decreto de isolamento, que foi precoce aqui e serviu para segurar", explica Tanta. Poucos dias antes da primeira morte cearense, o governo estadual já havia decretado, dia 19/3, as medidas de isolamento social. Nas análises genéticas, epidemiológicas e de mobilidade humana, o estudo do Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE) aferiu que o isolamento social reduziu os índices de transmissão de três para 1,6 contaminado por pessoa infectada. O artigo de Darlan traça a cronologia do coronavírus no Brasil, por onde chegou e onde se instalou.

Nas áreas mais vulneráveis, muito mais mortes

EM FORTALEZA, a Barra do Ceará é o bairro registra maior número de óbitos, 126
EM FORTALEZA, a Barra do Ceará é o bairro registra maior número de óbitos, 126 (Foto: Fabio Lima)

Em algumas cidades da Europa, quando a pandemia já mostrava sinais de agravamento, os epidemiologistas notaram quando o coronavírus fez movimentos semelhantes ao de um tsunami. Na chegada da ondulação gigante, o mar recua bruscamente por uma longa extensão, para em seguida voltar avassalador. A Covid-19 fez a mesma sequência, segundo o gerente da Célula de Vigilância Epidemiológica de Fortaleza, Antônio Lima ("Tanta"). "Lembro quando um amigo me mostrou pelo WhatsApp, 'dá olhada nessa notícia', de cidades da Europa que tinham acontecido esse movimento, de baixa nos casos. A gente viu a queda, pensou em várias coisas. E em seguida veio o grande número de casos e mortes", recorda.

Após a constatação do vírus nos bairros nobres da Capital - onde a testagem era custeada pelo próprio paciente, àquele momento ainda havia limitações na rede pública -, começou a sucessão de confirmações em áreas mais vulneráveis da cidade. "O que acontece na 2ª fase da epidemia? Ela se dispersa por contiguidade, para dois lados: para o Grande Pirambu e para o Vicente Pinzón (simula com as mãos o espalhamento dos casos para os lados oeste e leste da cidade). Aí o vírus se dispersa, é quando a curva (de casos) ganha exponencialidade, vira multiplicativa, deixa de ser por adição caso a caso. É quando os casos de mortes explodem a partir de abril", descreve Tanta.

Nesse momento, segundo ele, o vírus desceu por todo o mapa da Capital. Confirmou-se em bairros de maior vulnerabilidade social e econômica, de maior densidade demográfica. Mais gente na mesma casa, menor espaço entre as pessoas, condições favoráveis ao amplo contágio. Entre abril e maio, a doença varreu bairros como Pirambu, Cristo Redentor, avançou pela Barra do Ceará e Vila Velha. A Regional 1 tornou-se o território mais consolidado na taxa de letalidade da doença. A Barra do Ceará, até o último boletim (dia 18/9), liderava com folga o total de mortes na cidade, com 126 óbitos. Os dez bairros com mais mortes são todos muito populosos e de áreas mais pobres da cidade.

 


Dez bairros com mais óbitos em Fortaleza


Bairro Nº de Óbitos Habitantes
1 - Barra do Ceará 126 78.836
2 - Vila Velha 111 67.074
3 - Vicente Pinzón 92 49.549
4 - Granja Lisboa 90 56.650
5 - Mondubim 81 61.864
6 - Conjunto José Walter 80 36.389
7 - Cristo Redentor 77 29.083
8 - Centro 76 31.067
9 - Messejana 72 45.381
10 - Bom Jardim 68 41.102


 


Número de casos e de mortes por área da Capital


Regional Habitantes Casos Óbitos Tx. Mortalidade*
1 396.135 5.452 727 183,5
2 395.593 10.041 628 158,7
3 392.480 5.138 549 139,9
4 306.584 5.081 450 146,8
5 589.470 7.233 846 143,5
6 589.080 8.814 670 113,7
Ignorado - 6.550 6 -
Total em Fortaleza 2.669.342 48.309 3.876 145,2


Fonte: Secretaria Municipal da Saúde, atualizado até 18/9. (*) Taxa de Mortalidade acumulada por Bairro = Número total de óbitos do bairro/População do Bairro x 100.000 habitantes


No dia 5 de maio, dois dias depois do início da primeira das três semanas epidemiológicas mais trágicas, Governo e Prefeitura decidiram decretar o lockdown. Foram convencidos da necessidade de evitar a circulação de carros e pessoas. Seria imprescindível. "O estudo de simulações notou que a curva de óbitos tinha mudado de padrão. Ela não era mais linear, era exponencial. Tinha que ser feita alguma coisa, as medidas adotadas já não eram suficientes", detalha o epidemiologista. A população até havia diminuído a travessia de um bairro para outro, mas continuava circulando dentro do mesmo bairro, o que também era grave.

Se foi difícil lidar com o desconhecido no início da pandemia, pior foi tentar conter a brutalidade de tantas mortes em tão curto período, segundo Tanta. "O lockdown, a gente tinha esperança que funcionasse, não sabia que funcionaria tão bem", confirma. A medida mais dura de restrição durou quase todo o mês de maio, de 5 a 31. "Só abrimos quando nossa taxa de contágio estava em 0,8 em Fortaleza", relembra. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendava taxa de contágio em 1, por pelo menos uma semana. O vento já soprava mais a favor: a média de casos e óbitos estava em queda constante por mais de duas semanas seguidas; taxa de ocupação de leitos de enfermaria e UTI-Covid abaixo de 80%; menor demanda de leitos de UTI e enfermarias nas UPAs.

A positividade atual das amostras na Capital, que confirmam ou descartam a presença do vírus,  está em 9%, "Já foi de 82%. Pode ir a 10%? Pode. Provavelmente por conta dessas aglomerações. Mas não acredito em segunda onda no momento. Porque não vejo como o vírus perdurar dentro da cidade. Essa análise não pode ser expandida para todo o Ceará. Houve repique de casos. Aumentou a aglomeração, pode haver mais contágio", define o gerente da Vigilância Epidemiológica.


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No fim de março, clínicas privadas da Capital colapsaram o atendimento. Foram obrigadas a fechar suas emergências. Por três dias. Não tinham como receber tantos pacientes. Ainda nao havia hospital de campanha do estádio Presidente Vargas, o Hospital Leonardo da Vinci não havia sido arrendado. Numa crise institucional, a União entrou na Justiça contra o governo estadual por causa da decisão de instalar barreira sanitária no Aeroporto de Fortaleza - que havia sido comprovado como porta de entrada do coronavírus. Queriam impedir os agentes estaduais de medir a temperatura de passageiros no embarque e desembarque.


"A gente nem se despediu, foi muito doloroso"

Seu Dutra com os filho Sílvia Almada, Vivian Salmito, Durbem Alamda, Fran Hildon Almada (Foto: Acervo de família)
Seu Dutra com os filho Sílvia Almada, Vivian Salmito, Durbem Alamda, Fran Hildon Almada (Foto: Acervo de família) (Foto: Acervo de família)

 

Faz seis meses que seu José Maria Dutra é saudade. Aos 72 anos, era um homem bastante ativo nos afazeres. A idade não o freava. Adolescente ainda, aos 15, partiu de Uruoca, na Zona Norte do Interior do Ceará, para o Rio de Janeiro. Começou como office boy, voltou subgerente de banco. Foi também vendedor e ainda trabalhava como corretor de seguros. Saudável e brincalhão, gostava de se reunir com os amigos nos fins de semana. Casado com Gorete havia 46 anos, era pai de duas filhas e dois filhos. Foi esquisito quando na segunda-feira, 16/3, apareceu com os sintomas de uma gripe muito forte, incomum. Ele esmoreceu como não se via.

Foram os primeiros sinais da doença, até então misteriosa, que dez dias depois lhe tiraria a vida. Dutra, como era conhecido, foi um dos três primeiros casos a positivar laboratorialmente para a Covid-19 e figura entre os dez primeiros óbitos da pandemia no Ceará, iniciada em março. Informações confirmadas pela Secretaria Estadual da Saúde, que ressaltou não poder dar detalhes da biografia dos casos.

Na segunda-feira, 16/3, indisposto, sem conseguir reagir, Dutra ficou em casa. Morava no Montese, em Fortaleza, com a mulher e o filho mais novo, que até ali não sentiam nada. Não havia regra de distanciamento, recomendação para uso de máscaras, a vida permitia abraçar e cuidar de alguém de perto. A preocupação nas ruas, naquele momento, era com segurança pública e o recém-debelado motim de policiais no Estado.

Na quarta-feira, sem melhorar, o corretor aceitou ir a um posto de saúde do bairro. Mediram pressão, cogitaram algo de sua diabetes. Não estava com dor de garganta. Do posto, foi orientado a ir para uma UPA. "Lá disseram que era mesmo gripe, mas não tinha falta de ar, nada. Na quinta-feira ele até melhorou, saiu de casa, foi ao supermercado", reconta a filha, a advogada Sílvia Almada. Ela mora em Camocim e o que mais lamenta é que não pode ajudar o pai naqueles dias. Na distância forçada, não o viu mais. Nem no enterro.

Na sexta-feira, Dutra se quedou de vez, segundo Sílvia, antes de ser internado. A respiração passou a ser ofegante, o ar puxado, difícil. O isolamento social já estava decretado pelo governo estadual. A nova recomendação foi para que buscassem logo uma unidade médica de referência, o Hospital São José. Foi e ficou. Deu entrada direto na UTI. "Ele morreu às duas da manhã do dia 26/3. Lembro que fui acordada com a ligação", puxa da cronologia de sua dor. O laboratório confirmaria o novo coronavírus dois dias depois.

Os primeiros três óbitos no Ceará, de três mulheres, haviam sido dia 24/3. Mais duas pessoas morreram dia 25. José Maria Dutra e outros dois pacientes morreram no terceiro dia e, dali por diante, tudo piorou. No pico, numa única data de maio, dia 9, chegou-se a 106 mortes em Fortaleza. Já são mais de 8.800 óbitos no Estado, 235 mil casos confirmados. Até a data da entrega deste texto. E ainda sem perspectiva de estancar.

Da tragédia familiar, uma outra memória marcante é a de que ninguém pode estar com seu Dutra, vê-lo, visitá-lo. Era novidade das muitas regras postas para o novo momento. A pandemia estava em curso. Sílvia descreve que as notícias médicas sobre seu pai eram passadas uma vez por dia. O boletim do hospital, segundo ela, se resumia a apontar "estado grave, mas estável. Nunca foi gravíssimo". Assustava, mas o desfecho foi cruel.

"A gente nem se despediu, foi muito doloroso. Não esperávamos que ele fosse internado e não estávamos preparados para que ele não voltasse. Tínhamos esperança". A doença contaminou essa esperança também. Para o sepultamento, o corpo foi direto para o cemitério. Levado num saco preto. Sem poder velar, a família só teve prazo de uma hora para enterrá-lo. "Só compareceram meu irmão caçula, minha irmã e minha mãe. Ninguém podia abraçar ninguém", conta. Não deu tempo para ela e o outro irmão saírem de Camocim até a Capital. Nem os seis netos viram mais o avô.

O cenário de mortes disparou nas semanas seguintes à partida de Dutra. A quarentena ainda obrigou a advogada a ficar depois mais um mês sem poder ver a mãe. Porque precisaria cuidar também dela. Nos dias seguintes, os sintomas apareceram para dona Gorete. Falta de ar, de paladar e olfato, principalmente. Deprimiu-se mais ainda, já chorosa pela perda do marido. O irmão mais novo positivou, mas com sintomas mais brandos. Eles que mais estiveram com o corretor até antes da internação. A mãe ainda se recupera, o quanto possível.

"Após um mês, fomos para a fazenda da minha irmã, em Graça. Foi quando vivenciamos de fato o luto juntos. Estávamos todos frágeis". Sílvia disse que enquanto não puderam se ver, presencialmente, o restante da família se uniu num grupo virtual de orações. A Missa de Sétimo Dia de Dutra foi pelo Facebook. "A ficha ainda não caiu. Parece que meu pai tá viajando". Para ela, nesses seis meses, o que mais lamenta é sobre os que desprezam o vírus. "Ele é invisível. Precisa continuar os cuidados. Nós sentimos na pele".

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