Luana Kelly bebia na pracinha da Igreja Matriz na companhia de quatro homens. Já era a madrugada do dia 6 de junho, quando a conversa degringolou e uma frase errada fez aflorar a fúria do quarteto. De um instante para outro, Luana era atingida por socos. Ela ainda conseguiu se desvencilhar e sair em fuga pelas ruas do Centro de Camocim, a 357,9 km de Fortaleza. Temendo pela própria vida, a jovem de 22 anos pulou as grades de proteção de um prédio público, mas os algozes a alcançaram e, com pedras e pedaços de pau, lhe ceifaram brutalmente a vida. Luana Kelly é uma das 16 travestis e mulheres trans assassinadas neste ano no Ceará. Restando ainda dois meses para findar 2020, o número já é 45,4% maior do que em todo o ano de 2019 - quando 11 pessoas trans foram mortas no Estado.
Este ano, os dados de mortes de pessoas trans já se igualam aos de 2017, o mais violento dos últimos quatro anos para a população trans e marcado pelo assassinato estarrecedor de Dandara dos Santos. Sete das mortes, como a de Luana, aconteceram fora de Fortaleza. Nove delas morreram no segundo semestre, com destaque para o mês de agosto, que concentrou cinco das 16 mortes violentas. Os números são do relatório de agosto da Associação Nacional de Travestis e Tansexuais (Antra), acrescido de mais um caso, do dia 12 setembro, da travesti Cibele, 33, morta a tiros em Sobral, na região norte do Estado. Em agosto, o Brasil já registrava 129 assassinatos de pessoas trans e travesti - àquela altura, o Ceará era o quarto em número de mortes violentas dessas população e detinha 11% do número total.
O caso de Luana é um dos cinco que teve inquérito concluído. Com antecedentes apenas por uso de drogas, Luana teve a morte associada, de acordo com nota da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) ao envolvimento da vítima com tráfico de drogas. Contudo, a denúncia do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) revela as motivações transfóbicas por detrás do assassinato.
Conforme denúncia, "o crime se reveste de maior gravidade quando vislumbramos que ele fora praticado contra a vítima em contexto de preconceito". Para afirmação, o documento toma por base o relato da irmã de Luana que revela que um dos denunciados se referia à vítima como "viado paia". Além disso, na prisão em flagrante, feita no mesmo dia da morte, um dos assassinos chama Luana de "bicho". Nas quatro denúncias a que o O POVO teve acesso, apenas na de Luana está identificado o teor transfóbico do crime.
Para Tel Cândido, coordenador do Centro de Referência Janaína Dutra, da Prefeitura de Fortaleza, é "um equívoco" ignorar dentro das investigações o que ele define como o atravessamento da LGBTfobia na dinâmica dos crimes. "Não tenho dúvida em afirmar que, apesar de muitas dessas investigações iniciais apontarem para outras formas de violência urbana, a dinâmica desses crimes não excluem de forma alguma o contexto de ódio. Por vários motivos: pela extrema crueldade empregada, pela banalização, pela desproporcionalidade das violências", comenta.
De acordo com a Associação de Travestis e Mulheres Trans do Ceará (Atrac), os crimes têm de ser entendidos na perspectiva da "transfobia estrutural" e aponta que "a maioria desses assassinatos acontece de forma brutal". "Ou seja, existe uma necessidade de apagar nossas identidades e mostrar que não somos humanas", indica nota da associação.
Anualmente, o Centro de Referência LGBT, conforme Cândido, faz em média 179 novos atendimentos de pessoas com casos de discriminação da orientação sexual ou da identidade de gênero, que sofreram violências ou que buscam atendimento psicológico. Ele aponta que, nos últimos meses, o centro tem recebido muitas denúncias de violência doméstica e familiar, de assédio moral, injúria, discriminação no atendimento, de violência sexual, de ameaça. Cândido indica que a pandemia de Covid-19 tem interferência nesse quadro.
"A gente tá vivendo um ano bem atípico. Penso que a pandemia lançou uma lente de aumento sobre problemas sociais que já existiam que eram profundamente enfrentados pela população LGBT. A questão do isolamentos involuntário, a dificuldade de acesso ao afeto, à renda, às políticas sociais já são questões que estão presentes no cotidiano dessa população e que foram agora potencializados. Isso agrava os processo de desigualdades que revelam que a LGBTfobia é, sim, um sistema estrutural da nossa sociedade." (Colaborou Lucas Barbosa)
16 trans e travestis mortas
1. Paola Prado
Supostamente, fazia programas na região em que foi morta. Morta a tiros
Rua do Rosário, Centro de Fortaleza
Dia: 6 de janeiro
Status: caso segue em investigação no 34° DP
2. Monike Matias Chagas, 25 anos
Corpo de Monike foi encontrado submerso na Cachoeira de Missão Velha, na região do Cariri cearense. Ela estava acorrentada
Dia: 14 de fevereiro
Status: a Delegacia Municipal de Missão Velha concluiu na última segunda-feira, 19, e remeteu à Justiça o inquérito que investigava a morte da travesti.
3. Dávila Duarte
Assassinada a tiros
Dia: 22 de fevereiro, madrugada de Carnaval
na Rua Quintino Bocaiúva, no Centro de Fortaleza
Status: conforme a SSPDS, a vítima possuía antecedentes por furto. Caso segue em investigação na 4ª Delegacia do DHPP.
4. Luana Paty, 39 anos
Morreu no Instituto Dr. José Frota (IJF), dois dias sofreu lesão por arma de fogo na rua Carolina Sucupira, no bairro Aldeota, em Fortaleza
Dia: 29 de março
Status: conforme a SSPDS, a vítima possuía antecedentes por roubo, furto, furto qualificado e corrupção de menores. Caso segue em investigação na 1ª Delegacia do DHPP
5. Bárbara, 33 anos
Morta na própria casa, na rua José Abílio, no bairro Granja Portugal, em Fortaleza. Ela e o acusado, Mateus Ualefi Lima de Sousa, 21, mantiveram relações sexuais e iniciaram uma discussão, que terminou com Bárbara morta, com o pescoço lesionado por um fragmento de espelho, e com o abdômen perfurado cinco vezes por uma faca.
Dia: 16 de maio
Status: inquérito concluído e remetido à Justiça no dia 1º de setembro. Conforme SSPDS, o autor do crime se apresentou espontaneamente ao 32° DP e foi transferido ao DHPP, onde foi ouvido e indiciado no dia 17 de maio.
6. Luana Kelly, 22 anos
Morta durante a madrugada no Centro do município de Camocim.
Segundo site da SSPDS, no mesmo dia foram presos Samuel Monteiro de Oliveira (25), com antecedentes criminais por tráfico de drogas e furto; Rodolfo da Silva Sabino (25), com antecedentes criminais por furto, e Antônio Abreu de Lima (30), com antecedentes criminais por roubo e tentativa de homicídio. Na denúncia, também consta o indiciamento de Jonas
Monteiro de Oliveira, 19, como coautor.
Dia: 6 de junho
Status: Delegacia Municipal de Camocim elucidou o crime, inquérito foi finalizado e denunciados foram indiciados por homicídio qualificado.
7. Babalu, 44 anos
Assassinada por disparos de arma de fogo. Ela havia sido lesionada a bala um mês ante e havia sobrevivido
Centro de Pacajus
Dia: 22 de junho
Status: caso segue em investigação na Delegacia Metropolitana de Pacajus
8. Carol Eleotério da Silva, 36 anos
Morta durante a noite, disparo de arma de fogo, na região da nuca
Rua Sabiá, bairro Alto da Brasília, na cidade de Sobral
Dia: 11 de julho
Status: conforme a SSPDS, a vítima possuía antecedentes por violência doméstica, lesão corporal dolosa, violação de domicílio e furto. Caso segue em investigação no Núcleo de Homicídios da Delegacia Regional de Sobral.
9. Soraya Oliveira Santiago, 35 anos
Era proprietária de salão de beleza. Foi encontrada nas proximidade da Lagoa da Maraponga, com ferimento de arma de fogo - encontrada ao lado do corpo de um homem
Dia: 12 de julho
Status: inquérito que investigava as circunstâncias das mortes de Soraya e de Francisco Ediberto dos Santos Brasileiro, 39, foi concluído pela 9° Delegacia do DHPP. Quatro suspeitos foram indiciados pelos crimes de homicídio doloso e associação criminosa.
10. Rhyanna Mabelly Spanick, 20 anos
Morreu dentro da própria casa, na cidade de Iguatu, após complicações de uma lesão corporal sofrida em fevereiro deste ano. Rhyanna entrou em conflito com a mãe e a irmã. Um primo, que alega buscar separar a briga, terminou por derrubar a vítima, que caiu e bateu a cabeça. No dia seguinte, ela procurou attendimento médico, em que ficou constatado traumatismo craniano. A situação de saúde se agravou, e Mabele teve estado vegetativo decretado e faleceu em casa.
Dia: 19 de julho
Status: conforme a SSPDS, a vítima possuía antecedentes por lesão corporal, ameaça e dano no contexto de violência doméstica. A Delegacia Regional de Iguatu concluiu e remeteu à Justiça o inquérito. Victor Frutuoso Café (20) foi indiciado pelo crime de lesão corporal seguida de morte. "A PCCE descartou que o crime tenha ocorrido pela identidade de gênero da vítima".
11. Samara, 26 anos
Encontrada em área próxima ao Batalhão da Polícia Militar Ambiental (BPMA), no bairro Bonsucesso. A vítima foi morta com golpes de faca na Rua Pedro Cardoso Uchôa.
Dia: 3 de agosto
Status: caso segue em investigação no 27° DP.
12. Ludmila Silva, 16 anos
Assassinada a tiros, na rua Dallas, no bairro Granja Lisboa. (nome no registro: Antônio Wermeson da Silva Sampaio)
Dia: 8 de agosto
Status: caso segue em investigação na 2ª Delegacia do DHPP
13. Letícia Costa, 29 anos
Assassinada a tiros, na rua Jaime Benévolo, Centro de Fortaleza
Dia: 10 de agosto
O caso está sendo investigado pela 4° delegacia do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP).
Status: caso segue em investigação na 4ª Delegacia do DHPP
14. Daniele Soares Rodrigues, 21 anos
Morta a tiros no bairro Cacimbão da Vila José, em Crateús, interior do Ceará
Dia: 19 de agosto
Status: caso segue em investigação no Núcleo de Homicídios da Delegacia Regional de Crateús
15. Branca, 37 anos
Morta a tiros
Encontrada nas proximidades da BR-116, no bairro Pedras, em Fortaleza
Dia: 29 de agosto
Status: caso segue em investigação na 3ª Delegacia do DHPP
16. Cibele, 33 anos
Morta por dois homens em uma moto, no bairro Centro, em Sobral. Morreu no hospital Santa Casa de Misericórida de Sobral
Dia: 12 de setembro
Status: caso segue em investigação no Núcleo de Homicídios da Delegacia Regional de Sobral.
Discurso de ódio
O aumento de casos no ano, para Narciso Júnior, titular da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para LGBT da Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS), pode ter relação com um contexto nacional de fortalecimento de discursos de ódio em relação às minorias. "Isso influencia bastante, porque é como se eles autorizassem o cidadão que pactua com esse discurso para que ele pratique o ato", apontou.