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Mulheres desistem do mercado de trabalho e têm menor participação dos últimos 30 anos
Reportagem

Mulheres desistem do mercado de trabalho e têm menor participação dos últimos 30 anos

Vencidas pela pandemia | Encabeçando as estatísticas de desemprego, de redução na renda, aumento dos afazeres domésticos e cuidado com os filhos, as mulheres são as mais impactadas pela Covid-19
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capa pandemia-e-carreira-das-mulheres 1 (Foto: Isac Bernardo)
Foto: Isac Bernardo capa pandemia-e-carreira-das-mulheres 1

 

A pandemia tem cobrado um preço alto em vidas, em empregos e em redução de bem-estar das pessoas. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em maio, mostraram ainda que a piora no mercado de trabalho tem impactado as mulheres com muito mais força. No primeiro trimestre deste ano, por exemplo, a taxa de desocupação entre elas atingiu 17,9%, um recorde na série histórica, enquanto entre os homens esse percentual ficou em 12,2%. O que fez com que a participação das mulheres no mercado de trabalho chegasse ao nível mais baixo em 30 anos (43,3%). E mais que isso: ao invés de apenas migrarem para o desemprego, é maior a tendência de inatividade. Ou seja, quando elas simplesmente desistem de procurar uma recolocação no mercado.

Foi o que ocorreu com Érica Araújo, de 29 anos, que já está há três anos desempregada. Com a pandemia, e as escolas sem funcionar, ela não tem com quem deixar os cinco filhos, com idades entre 1 ano e 11 anos, enquanto o marido trabalha. Ele também estava desempregado e conseguiu um emprego em janeiro deste ano.

Para ajudar nas contas de casa, o único trabalho que ela encontrou foi um bico como cuidadora de uma pessoa com deficiência, que mora na mesma rua que ela, no bairro da Sabiaguaba. Ia até lá quatro vezes ao dia para ajudar a dar a refeição e recebia em troca R$ 300 mensais. Mas mesmo disso, teve que abrir mão. É que ela vai se mudar com a família para um bairro mais próximo do trabalho do marido, que fica em Itaitinga, na tentativa de economizar em aluguel e passagem de ônibus.

“E eu não vou ter como ficar indo e vindo, porque eu não tenho com quem deixar as crianças. E não é justo eu deixar essa responsabilidade para minha filha mais velha que tem apenas 11 anos. Eu não quero que elas tenham o mesmo destino que eu, que comecei a trabalhar aos oito anos”.

Érica Lima Araújo, de 29 anos. Ela não tem emprego fixo há três anos e tem sobrevivido de bicos desde então.
Foto: FCO FONTENELE
Érica Lima Araújo, de 29 anos. Ela não tem emprego fixo há três anos e tem sobrevivido de bicos desde então.

Hoje, Érica, embora tenha muita vontade de voltar a trabalhar e ter seu próprio dinheiro, já não tem qualquer perspectiva de voltar ao mercado de trabalho. “Se já estava difícil conseguir emprego antes da pandemia, imagina agora com as empresas quebradas e eu estou há tanto tempo parada."

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Situações como a de Érica têm se tornado mais comuns na pandemia. Um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base nos dados da PNAD Contínua do IBGE, mostra que o percentual de mulheres que se tornaram inativas aumentou de 7,6%, na transição entre o primeiro e segundo semestre de 2019, para 11,8%, em igual período de 2020. Alta de 4,2 pontos percentuais. Usando a mesma base de comparação, o índice de mulheres que migraram para o desemprego subiu de 3,2% para 3,7%.

Entre os homens, a transição para inatividade subiu de 4,8%, em 2019, para 7,8%, no ano passado. E o desemprego de 3,5% para 3,9%.

A professora Joana Costa, uma das autoras do estudo, explica que, mesmo antes da pandemia, as mulheres já possuíam uma maior chance de mudar da situação de ocupada para inativa e também uma menor chance de entrar na condição de ocupada. Porém, a crise intensificou ainda mais essas probabilidades.

É um cenário que não foi visto nem durante a recessão econômica de 2015-2016. Ao fazer uma comparação com os dados dos dois períodos, o estudo constatou que embora o desemprego tenha acelerado nas duas crises, na primeira, não houve uma migração tão intensa para a inatividade.

Ela explica que um conjunto de fatores contribui para isso. Os setores em que as mulheres estão empregadas em maior número, como serviços domésticos, no comércio, na hotelaria, foram os mais afetados pela crise, o que provoca uma queda na oferta de trabalho. Mas é preciso considerar também a sobrecarga de trabalho que, historicamente, ainda recai mais sobre elas, como os afazeres domésticos e a responsabilidade de cuidar dos filhos, que dificultam a permanência delas no mercado ou mesmo de poderem sair para procurar emprego em meio à pandemia.

" Se antes mesmo dessa crise, já se perguntava em entrevista de emprego se a mulher tem com quem deixar os filhos, o que não ocorria entre os homens, com a pandemia, isso se agrava" Joana Costa, autora do estudo sobre mulheres e mercado de trabalho do Ipea

“As próprias características desta crise, que não é só econômica, é também sanitária, acabam contribuindo porque determinam o isolamento social, o fechamento de creches, escolas, recomendam reduzir o contato. Quem não pode fazer o home office fica em uma situação mais complicada. Se antes mesmo dessa crise, já se perguntava em entrevista de emprego se a mulher tem com quem deixar os filhos, o que não ocorria entre os homens, com a pandemia, isso se agrava”, pontua Joana.

No Ceará, a diferença de gênero tanto na remuneração média, como na participação delas nos setores, são ainda maiores do que na média brasileira. Levantamento feito pelo O POVO, com base na Relação Anual de Informações Sociais (Rais) de 2019, o dado oficial mais recente sobre o mercado de trabalho formal, mostra que as mulheres no Ceará recebem, em média, R$ 2.354,91. É menos do que a média salarial dos homens cearenses, R$ 2.550,18, e quase R$ 550 a menos do que a média de salários recebida por mulheres no restante do País.

E se no Ceará, em setores como o da Construção Civil, elas representam apenas 8,44% dos trabalhadores com carteira assinada, no Brasil, são 9,84%.

" É o efeito cicatriz, a pessoa fica marcada pelo tempo que ela ficou sem trabalhar. E isso é uma bola de neve, porque também leva essas pessoas a aceitarem empregos em condições mais precarizadas." Joana Costa, ao abordar o impacto do desemprego entre as mulheres

O prolongamento da pandemia preocupa também quando se observa o cenário em um horizonte de tempo mais amplo. Isso porque assim como a pandemia escancarou ainda mais as desigualdades no País, a perspectiva de recuperação da economia também será desigual, sobretudo, em função do que a pesquisadora Joana Costa chama de “efeito cicatriz” para os segmentos mais vulneráveis da sociedade: mulheres, negros e os jovens.

“Quanto mais tempo essas pessoas permanecerem fora do trabalho, mais difícil é a reinserção delas no mercado de trabalho. É o efeito cicatriz, a pessoa fica marcada pelo tempo que ela ficou sem trabalhar. E isso é uma bola de neve, porque também leva essas pessoas a aceitarem empregos em condições mais precarizadas”, afirma a professora Joana Costa.

 

 
Na foto Irna Cavalcante, Jornalista
Na foto Irna Cavalcante, Jornalista

Por trás da pauta por Irna Cavalcante (*)

Produzir esse material veio junto com uma série de sentimentos. O primeiro é de que é urgente e necessário jogarmos cada vez mais luz sobre essas questões. Mas também prevalece o incômodo de saber que tudo isso que está acontecendo não é algo pontual ou temporário.

O Brasil é grande, diverso, desigual, mas é muito difícil, enquanto mulher, mãe ou profissional não se reconhecer ou conhecer alguém que esteja passando por algumas das situações vivenciadas pela Érica, pela Kaila, Sarah ou Aliciane e tantas mais.

Eu mesma, apesar de desfrutar de muitos privilégios, como o de não estar com a renda sob ameaça e dividir de fato as tarefas de casa e do cuidado dos filhos com meu marido, em diversos momentos, me senti nessa pandemia, na obrigação de dar conta em todas as frentes, de saber que estou indo até além do que posso e, ainda assim, terminar o dia, com a sensação de que fiquei devendo algo. Mas a culpa é das piores armadilhas a se cair.

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