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O efeito da crise na Venezuela no cenário de migração no Ceará
Reportagem

O efeito da crise na Venezuela no cenário de migração no Ceará

Colombianos, argentinos, americanos e cubanos também aparecem entre as nacionalidades que mais realizaram registros no Ceará durante o último ano
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Yorge Luís trabalha como estátua viva no Centro de Fortaleza e na Beira-Mar (Foto: Alex Gomes em 20/08/2019)
Foto: Alex Gomes em 20/08/2019 Yorge Luís trabalha como estátua viva no Centro de Fortaleza e na Beira-Mar

O sentimento ligado à terra natal é algo particular e a distância da pátria, para quem saiu por opção, muitas vezes faz aflorar sentimentos desconhecidos. Há quem sinta falta da família; outros, lamentam a distância dos hábitos culturais oriundos de seu país. A saudade de algo ou alguém é o elo entre os migrantes que chegam ao Ceará.

"Eu sinto saudade da minha casa, dos meus irmãos e de toda a minha família. Também tem a cultura, que é muito diferente. Acaba que sinto falta de tudo", relata Katiuska Castillo, 37, que veio da Venezuela para o Brasil em 2018, em busca de melhores oportunidades.

A venezuelana relata que pensou muito antes de deixar o seu País, mas as dificuldades econômicas a fizeram buscar um novo lugar para viver. Ainda no norte do Brasil, Katiuska relata que encontrou um grupo de "padrinhos de imigrantes", nome dado aos brasileiros que auxiliam pessoas que chegam ao Brasil. Por meio dessa ajuda, fez a ponte aérea rumo a Fortaleza.

"Quando chegamos, começamos a procurar emprego. Comecei trabalhando com a produção de almofadas e meu marido iniciou o trabalho de marceneiro. Também trabalhei em um restaurante durante esse período, até que achamos uma casa para alugar por conta própria".

Histórias como a de Katiuska têm se tornado mais frequentes no Ceará durante os últimos anos. Em 2021, os venezuelanos aparecem como a nacionalidade com mais registros realizados no Estado.

De acordo com os dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o levantamento elaborado pelo OBmigra, a partir das informações fornecidas pela Polícia Federal, por meio do Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra): dos 1.216 estrangeiros que se registraram no Ceará em 2021, 323 são da Venezuela (26,5%), 127 da Colômbia, 82 da Argentina, 78 dos Estados Unidos e 64 de Cuba.

Ainda segundo o levantamento, Fortaleza aparece como o município cearense que mais recebeu esse tipo de registro: 654 ao longo do último ano. Em segundo lugar está Caucaia, na Região Metropolitana da Capital, com 133 registros. Jijoca de Jericoacoara, Juazeiro do Norte e Eusébio fecham a lista dos cinco municípios com maior demanda, com 39, 38 e 32 registros, respectivamente.

Até o início de maio de 2022, os dados da Polícia Federal apontam que 16.899 estrangeiros possuem registro ativo no Ceará. A maior parte deles está concentrada em Fortaleza. Ao todo são 9.547 registros na Capital. Caucaia com 1.166, Redenção com 561, Aracati com 465 e Aquiraz com 456 são as outras cidades que mais abrigam estrangeiros no Estado.

A mudança de país em busca de um recomeço nem sempre significa uma ruptura de planejamentos ligados à pátria mãe. O processo migratório pode ser encarado apenas como uma ponte, que liga o passado e o futuro da relação do estrangeiro com o seu país de origem.

FORTALEZA, CEARÁ, 05-05-2022: Na foto, Katiuska Castillo, imigrante que mora na cidade de Fortaleza há 4 anos. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)
Foto: FERNANDA BARROS
FORTALEZA, CEARÁ, 05-05-2022: Na foto, Katiuska Castillo, imigrante que mora na cidade de Fortaleza há 4 anos. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)

"Eu, hoje, já sinto vontade de voltar, mas meus filhos falam que já estão acostumados aqui. Sinto falta da família e da nossa cultura, mas também penso que meus filhos já estão habituados ao Brasil", reconhece Katiuska, que é mãe de três.

Segundo os dados da Polícia Federal, os venezuelanos nem sequer apareciam entre as cinco nacionalidades mais presentes no Estado em 2020. Naquele ano, as nacionalidades com o maior número de registros ativos eram italianos (2.059), portugueses (1.871), guineenses (935), colombianos (918) e franceses (818).

Atualmente, os italianos e portugueses seguem como os maiores grupos no Ceará, com um aumento de 60 registros italianos e 58 portugueses, entre os anos de 2020 e 2022. Os venezuelanos ocupam o terceiro lugar do levantamento, com 1.144 registrados no Ceará. Em seguida, guineenses (1.110) e colombianos (1.103) fecham a lista.

Ainda de acordo com os números, tanto em 2020 quanto em 2022, os argentinos não aparecem entre as cinco nacionalidades mais presentes no Ceará. Entretanto, em 2021, eles estavam no terceiro grupo estrangeiro que mais se registrou no Estado, o que pode apontar uma mudança futura do cenário apresentado nos últimos dois anos.

Número de imigrantes que deram entrada no Estado em 2021

  • Total: 1.216
  • Homens: 795
  • Mulheres: 421

País de origem

  1. Venezuela: 323 - H: 170 - M: 153
  2. Colômbia:127 - H: 81-M: 46
  3. Argentina: 82- H: 52 -M: 30
  4. EUA: 78 - H: 57-M: 21
  5. Cuba: 64 - H: 36-M: 28

Total de estrangeiros nos últimos cinco anos no Ceará

  • 2018: 13.151
  • 2019: 14.328
  • 2020: 14.976
  • 2021: 16.151
  • 2022: 16.899

Número de estrangeiros com registro ativo no Ceará (por nacionalidade)

- Em 2020

  • Italianos: 2.059
  • Portugueses: 1871
  • Guineenses: 935
  • Colombianos: 918
  • Franceses: 818

- Em 2021

  • Italianos: 2.119
  • Portugueses: 1.929
  • Venezuelanos: 1.144
  • Guineenses: 1.110
  • Colombianos: 1103.

Número de estrangeiros no Ceará em 2022: 16.899

  • Masculino: 12.152
  • Feminino: 4.747

Estrangeiros por município no Ceará em 2022:

  1. Fortaleza: 9.547
  2. Caucaia: 1.166
  3. Redenção: 561
  4. Aracati: 465
  5. Aquiraz: 456
  6. Acarape: 411
  7. Jijoca de Jericoacoara: 396
  8. Juazeiro do Norte: 325
  9. Eusébio: 304
  10. Paracuru: 225
  11. Beberibe: 216

"Pretendo ficar por aqui" 

Para a mestre em física Débora Torres, 35, o processo migratório foi motivado por seu desejo de ampliar seu campo de estudo. Argentina, vinda de Mar del Plata, ela relata que a sua transferência para o Brasil foi viabilizada por meio da ajuda de sua orientadora de estudos.

"Minha orientadora na universidade tinha o contato de um professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), conversei com ele e pensamos que seria muito legal trabalharmos juntos e eu fazer esse mestrado aqui", relata.

Débora chegou ao Brasil em 2016, para ficar apenas durante os dois anos exigidos pelo mestrado, mas, sem planejamento prévio, acabou decidindo ficar. "Fiquei para o doutorado. Foi realmente uma coisa que foi acontecendo. Gosto, porque tenho possibilidades de fazer trabalhos e continuar com a pesquisa. Pretendo ficar por aqui mesmo no futuro, mas também existe a possibilidade de procurar trabalho em outro lugar do Brasil após o doutorado", projeta.

Apesar da oportunidade de ampliação de conhecimento, a escolha de mudar de país também é carregada de dificuldades que precisam ser superadas por quem busca melhorias em sua trajetória de vida.

"Existem algumas dificuldades, principalmente no começo. Tem a questão da língua, eu não falava nada de português, isso torna os primeiros meses complicados. Também tem a dificuldade de estar longe da família. Mas posso falar que fui muito bem recebida aqui. Isso me ajudou muito", celebra a doutoranda.

Débora e Katiuska possuem mais um ponto em comum, além da saudade dos familiares. Os vínculos criados por brasileiros e imigrantes têm se mostrado um fator importante quando se fala em voltar ao país de origem.

"Eu realmente gosto de viver aqui. De fato, foi uma coisa que aconteceu com o tempo. Eu não pensava que ia ficar aqui, mas eu gosto. O que faz a diferença são as pessoas, o fato de serem receptivas fez com que eu me sentisse mais confortável para ficar aqui", finaliza Débora.

Mudanças econômicas e políticas do Estado são atrativo para imigrantes

Para a professora Denise Bomtempo, do programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual do Ceará (Uece), que está à frente do Laboratório de Estudos Agrários Urbanos e Populacionais (LEAUP), o Ceará sempre teve sua história atrelada aos processos migratórios.

A especialista relata que o Ceará, juntamente com a região Nordeste, teve uma boa dinâmica econômica durante os últimos 20 anos, o que atraiu pessoas de outras regiões do país e até do exterior.

"Existe um perfil desses migrantes internacionais. De 2000 até 2014 tivemos pessoas que chegaram da China, da Coreia do Sul e também os europeus", relata.

A professora destaca que existem diversos perfis de migrantes no Ceará. Há quem tenha vindo como turista e decidiu ficar, assim como aqueles que buscam investimentos, seja na educação ou na área laboral.

Denise explica que a própria realização da Copa do Mundo em 2014 no Brasil serviu como impulso para a migração internacional, mas este fato está inserido num contexto mais amplo. "Existem variáveis econômicas e políticas. Em relação à América do Sul, o Brasil ainda tem uma centralidade, com uma economia regional importante. Países como Venezuela e Colômbia têm passado por muitas crises".

De acordo com a especialista, o grupo de imigrantes que chegam ao Ceará é bastante diverso, desde profissionais altamente qualificados, como profissionais da área da saúde, mas também há quem chegue com média ou nenhuma qualificação profissional.

"Essas pessoas enfrentam as dificuldades cotidianas de lidarem com idiomas diferentes dos seus, além das questões culturais que são relatadas por esse público".

A professora avalia que a chegada dessas pessoas ao Ceará não pode ser vista como algo natural. Segundo a especialista, a situação pode estar relacionada a desequilíbrios estruturais de uma crise global.

"Fortaleza me abriu as portas"

Cruzar as fronteiras do seu país em busca de um novo lar exige coragem. As dificuldades iniciais para quem tenta um recomeço em terra estrangeira podem frustrar sonhos. É nesse cenário que o Brasil e o Ceará surgem como opções que se mostram acolhedoras antes mesmo da chegada dos imigrantes.

Yorge Luís trabalha como estátua viva no Centro de Fortaleza e na Beira-Mar
Foto: Alex Gomes em 20/08/2019
Yorge Luís trabalha como estátua viva no Centro de Fortaleza e na Beira-Mar

"Conheci uns brasileiros na Ilha de Margarita, na Venezuela, onde eu morava. Por meio deles, fiquei motivado a tentar a vida aqui no Brasil", relata o venezuelano Yorge Luís, 31, que chegou ao Brasil em 2014.

Yorge morou um ano em Manaus, antes de chegar a Fortaleza. No norte do país, enfrentou dificuldades relacionadas à moradia e à empregabilidade. A escolha pela capital cearense foi embasada por boas recomendações que Yorge ouvia sobre a cidade. Sete anos após a mudança, o imigrante mostra-se feliz com a decisão.

"Com certeza gosto daqui, gosto muito de Fortaleza. Foi uma cidade que me abriu as portas. Às vezes acontecem coisas ruins, mas não deixo de ser grato pelo carinho das pessoas daqui", relata o venezuelano.

Atualmente, Yorge sobrevive da sua arte. Ele se apresenta como estátua viva em praças do Centro de Fortaleza e no calçadão da avenida Beira Mar. Na Venezuela, chegou a cursar a faculdade de Engenharia e estudar Fotografia, mas foi na arte que encontrou mais possibilidades de sobrevivência.

Refugiados x Migrantes

De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur),
essas são as diferenças entre Refugiados e Migrantes.

1-Refugiados

  • Pessoas que foramforçadas a deixar seu paíspois suas vidas ou integridade
    corriam risco, e que não podem voltar a seu país de origem porque não contam com
    proteção estatal
  • Contam com proteção internacionalda Convenção de Pessoas Refugiadas de
    1951, do Protocolo de 1967 e da Declaração de Cartagena. Estão sob o mandato da
    Agência da ONU para Pessoas refugiadas (Acnur)
  • No Brasil, a implementação da proteção de pessoas refugiadas é definida pelaLei nº
    9.474/97
  • As pessoas refugiadas têm direito àproteção internacional específicadefinida pelo
    direito internacional dos refugiados, além de proteção geral dos direitos humanos.

2-Migrantes

  • Deslocamento voluntárioem busca de melhores condições de vida, podem retornar a seu país de origem sem riscos e contam com proteção estatal.
  • Não contam com proteção internacional específica, dependem das leis e processos internos de cada país.
  • No Brasil, a Lei nº 13.445/2017dispõe sobre os direitos e deveres do migrante em território nacional, entre outras providências.
  • Não existe uma definição legal internacionalmente aceita no termo migrante, sendo assim esse grupo tem direito à proteção geral dos direitos humanos, sem importar o status migratório.

Com mais estrangeiros chegando, Pastoral ajuda na transição  

O número total de estrangeiros no Estado tem aumentado nos últimos anos. Com cada vez mais registros feitos no Ceará, segundo dados da Polícia Federal.

Em 2018, 13.151 imigrantes estavam no Ceará, de várias nacionalidades. No ano seguinte, 14.328. Mesmo com o início da pandemia, o ano de 2020 também registrou um aumento do número total de registros, onde apontava a presença de 14.976 estrangeiros. Os anos de 2021 e 2022 seguiram a tendência de crescimento do grupo, com 16.151 e 16.899, respectivamente.

Em busca de tornar a transição do migrante mais acolhedora, a irmã Idalina Peregrino, coordenadora da Pastoral dos Migrantes de Fortaleza, relata os trabalhos realizados pelo grupo nos últimos 26 anos.

"Fazemos o atendimento presencial aos migrantes, onde ajudamos na questão da documentação e da inscrição nos programas sociais. Nós preparamos para que eles sejam inseridos na sociedade como todo brasileiro, tanto para ter acesso à educação quanto no trabalho, como qualquer pessoa", explica Idalina.

De acordo com a coordenadora, o número de imigrantes venezuelanos têm se intensificado desde 2018. A percepção de Idalina confirma o levantamento da Polícia Federal por meio do Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra), que os mostra como a nacionalidade que mais realizou registros no Ceará em 2021.

Além da ajuda em questões documentais, os imigrantes que procuram a Pastoral encontram abrigo provisório e mantimentos. O suporte possui duração de três meses. De acordo com Idalina, a Pastoral também busca diminuir a distância entre os imigrantes e o mercado de trabalho.

"Estamos criando diálogos com as empresas, porque muitos não sabem que a empresa pode contratar, que não há nenhum problema, que é legal, fazemos esse trabalho também", completa.

Por outro lado, o Governo do Estado, por meio da Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS) viabiliza a inserção dos migrantes que chegam ao Ceará nas políticas públicas de saúde, educação, qualificação profissional, acesso ao mercado de trabalho, cultura e lazer, entre outras.

A articulação com outros órgãos e a rede assistencial ocorre por meio do Programa Estadual de Atenção ao Migrante, Refugiado e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, coordenado pela SPS, e tenta garantir que este público acesse seus direitos.

O cadastro nos programas e projetos do Estado ocorre da mesma forma, independentemente da nacionalidade. Para o venezuelano Marco Antônio Martinez, 41, o programa do governo foi uma grata surpresa.

"Por meio da Polícia Federal, recebi o endereço da Casa do Imigrante. Quando cheguei, fui bem recebido. Não sabia que existia este local. Lá me ajudaram e atualizaram meus documentos", confirma.

Martinez trabalha com gastronomia há mais de 20 anos. Ele é chef de cozinha, fala cinco idiomas e já chegou a trabalhar na Espanha. Veio ao Brasil em 2017, quando buscava melhores oportunidades de emprego. Por meio da assistência do programa estadual, Martinez trabalha em um restaurante da Capital.

"Me ajudaram com tudo, até com o meu currículo. Com as parcerias que tinham com restaurantes, acabaram facilitando a forma de encontrar um emprego", destaca o venezuelano.

Questionado se pretende seguir vivendo no Brasil durante os próximos anos, Martinez é enfático. "Com certeza! Eu quero seguir vivendo aqui. Minha família até me fala que as coisas estão menos complicadas por lá, mas quero seguir por aqui. Sei que tenho o apoio deles também", afirma.

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