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Entrevista com Rosemberg Cariry: Lições para não se curvar
Vida & Arte

Entrevista com Rosemberg Cariry: Lições para não se curvar

| Entrevista | Cineasta e escritor Rosemberg Cariry estreia 11º longa da carreira no Cine Ceará, que começa nesta sexta, 30. Em entrevista ao O POVO, fala de cultura popular, política e futuro
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Everaldo Pontes é protagonista do novo filme de Rosemberg Cariry
 (Foto: Gabriel Gonçalves / divulgação)
Foto: Gabriel Gonçalves / divulgação Everaldo Pontes é protagonista do novo filme de Rosemberg Cariry

Rosemberg Cariry é foco de resistência não de hoje. Desde os anos 1970, o cineasta e escritor debruça-se em filmes, escritos, poemas e ações na riqueza da cultura popular. Sempre, porém, como ele mesmo ressalta, ligada à contemporaneidade, ao contexto de transformações do mundo. A cultura popular não é um "sacrário". É vida pulsante, vida essa que o artista procura registrar, retratar, refletir. No 29º Cine Ceará, estreia seu 11º longa-metragem, Notícias do Fim do Mundo, obra em plena relação com "o grande mal-estar civilizatório que a gente vive no Brasil e no mundo". Em entrevista ao O POVO, Rosemberg percorre memórias de luta, conecta-se às questões do presente e, também, antevê possibilidades e saídas futuras. O norte é não se curvar.

O POVO - Em imagens do seu novo filme, mostra-se que a obra apresenta um grupo artístico de cultura popular sequestrando um embaixador. Dizem: "trata-se de um protesto contra os horrores exercidos pelo Estado". Qual o contexto do projeto, quando foi pensado, filmado? Ele é, em si, um protesto também?

Rosemberg Cariry - O filme é um longo processo, porque nasceu de um conto escrito ainda em 1996, por aí, chamado Os 12 guerreiros do reisado. Depois, esse conto se transforma num projeto chamado Folia de Reis, em 2010 eu iniciei as filmagens aqui em Fortaleza. Resolvi fazer, depois, desse que era um média-metragem, um longa. Fui filmando ao longo dos anos, e (era) um filme sempre aberto, que refletia muito o que acontecia no Brasil e no mundo. Tinha essa possibilidade de reflexão, ou seja, um filme-espelho, de alguma forma. Ele conta a história de um personagem que é um velho ator aposentado que trabalha na periferia da cidade, nas favelas, e nesse momento está trabalhando num grupo de folguedo popular. Essa fala do protesto, na verdade, é uma fala do personagem, não significa o discurso do filme como um todo. O filme reflete sobre a contemporaneidade, ou seja, sobre o grande mal-estar civilizatório que a gente vive aqui no Brasil e no mundo todo. Uma sociedade em crise, uma civilização em crise profunda.

OP - Desde seu primeiro longa, lançado em 1986, existe uma centralidade forte da cultura popular e de reflexões das relações de poder. Como esse filme novo se relaciona com a obra pregressa?

Rosemberg - Ele conversa no sentido de que se liga às manifestações das culturas populares, sobretudo periféricas, mas neste caso urbanas. O filme acontece numa cidade imaginária, que poderia ser Fortaleza. É formada pela geografia de várias cidades. O filme foi feito aqui, no Rio de Janeiro, em várias capitais e cidades brasileiras. Tudo isso compõe o lugar imaginário onde o filme acontece. Sobre esse diálogo, sempre compreendi a cultura popular não como uma coisa regionalista, mas como um estado de tensão constante e de contradições, também, permanentemente inserida dentro de uma contemporaneidade. É uma herança não só brasileira, é uma herança universal colocada sempre em conflito com a contemporaneidade. Acho que, nesse filme, esse discurso se acentua mais, porque há toda uma base de leituras da pós-modernidade. O que muda é isso. É um filme onde esse grupo popular é deslocado. São, de certa forma, identidades em trânsitos, mudanças constantes, inseridas dentro do conflito da contemporaneidade.

OP - Além dos filmes, você também traz a cultura popular em outras obras. De onde parte essa relação, primeiro a nível pessoal, e quando vira profissional?

Rosemberg - Essa proximidade se dá da minha vivência no Cariri cearense. Sou da região e convivi no Crato e Juazeiro desde a minha infância com grandes artistas da chamada cultura popular: Patativa do Assaré, dona Ciça do Barro Cru, mestre Noza, grandes nomes e estrelas dessa cultura e da cultura brasileira. Essa vivência me levou a ter um carinho muito especial a figuras como o cego Oliveira, também, entre tantos outros. (Na formação) Passei por seminários, onde estudei culturas eruditas, europeias, muito de literatura, e depois fiz um curso de Filosofia, centrando também muito meus estudos em antropologia cultural. Sempre me fascinou muito nessa cultura a sua universalidade. Me interessa muito saber como um ritual de 3 mil anos atrás, de repente, está presente numa canção ou num elemento teatral, como é que elementos de tantos povos e tantas culturas aqui no Brasil se juntam, nesse hibridismo da cultura brasileira… Achei sempre que a possibilidade de uma expressão contemporânea passava também pela compreensão dessas culturas. Um pensamento antes já elaborado por Lina Bo Bardi (arquiteta modernista ítalo-brasileira) na Bahia, pelo Tropicalismo, pelo Cinema Novo, ou tantas vertentes brasileiras que aproximaram uma cultura mais erudita com o popular, como o Villa-Lobos. Também na literatura, muito marcada por isso. Você não pode pensar em Guimarães Rosa sem pensar a oralidade. De certa forma, é isso que me aproxima, essa riqueza, essa fonte inesgotável de cores, saberes e possibilidades - tudo isso, claro, aberto e em transformação dentro do mundo em que se vive, contemporâneo e sem fronteiras.

OP - O que significa o ato de registrar, seja por escrito ou em vídeo, essas marcas da cultura popular?

Rosemberg - Não acredito na cultura popular como um sacrário, intocado, como uma memória que permaneça intocada. A questão do registro é para você registrar um momento, uma emoção, uma cor, uma manifestação da vida. Isso é importante. Por exemplo, eu gravei um álbum duplo com o Cego Oliveira que hoje é considerado um documento importante, raro, dentro da cultura brasileira, por conta do timbre da voz desse homem, do som da sua rabeca. É um registro que você oferece como um pequeno tesouro para as gerações futuras. É nesse sentido. É a vida, mesmo, aberta e transformadora.

OP - Com diferentes formações e atuações, como essas diferentes faces se aproximam e se diferenciam? Algum projeto, ao ser pensado, já nasce sendo de cinema ou de literatura?

Rosemberg - O cinema esbarra sempre na questão da produção e da sua viabilização real e concreta. Tem coisas que você pensa e a imaginação te leva longe, mas que, para realizar no cinema, às vezes é impossível. Então tem coisa que naturalmente já se destina a ser literatura, onde a tua imaginação não tem porteiras, e outras que você pensa em como traduzir para o cinema dentro dos meios de produção existentes e possíveis, o que também determina estéticas, formas de linguagem e invenções.

OP - O senhor foi secretário da Cultura do Crato nos anos 1990. Olhando para aquela época, para as políticas públicas culturais, como o senhor encara o cenário que veio se construindo ao longo dos últimos anos?

Rosemberg - Aconteceram avanços significativos, que foram conquistados, porque é uma luta que se travou também ao longo de todos esses anos. Hoje, por exemplo, o Nordeste produz um bom cinema, muito importante. Nem sempre foi assim. No começo da década de 1980, eram pouquíssimos os filmes realizados. Foi toda uma luta, da qual eu participei por quase 30 anos à frente de instituições, como a Associação Brasileira de Documentaristas do Ceará, a Associação de Produtores de Cinema do Norte e Nordeste, tantas outras frentes. Conquistou-se essa possibilidade de uma política descentralizada, se nacionalizando a produção do cinema. Hoje o Brasil inteiro produz cinema, mas não era assim, pelo contrário. Quando falávamos no Nordeste, era "vocês não tem curso, não tem capacidade técnica". Então foi tudo invenção e conquista nossa. Os cursos de cinema nas faculdades, os técnicos, tudo isso foi uma conquista da minha geração, nada foi dado. Na época que fui secretário, a gente trabalhava muito também no sentido comunitário e do coletivo. Os recursos eram poucos, mas se inventava muito, se trabalhava muito.

OP - Qual a avaliação do senhor sobre o cenário, os discursos e as ações do Governo Federal sobre o cinema brasileiro?

Rosemberg - Acho um desastre, uma catástrofe, o que está acontecendo. Afinal de contas, todos reconhecemos a importância que tem a Ancine e a chamada indústria do audiovisual do Brasil, que hoje responde por quase 2% do PIB brasileiro, gerando milhares de empregos, dezenas de milhares de produtoras. De repente, você desmanchar tudo isso é uma coisa que não se acredita que seja possível numa época de tanto desemprego, que está beirando uma tragédia com os 14 milhões de desempregados, com quase 50 milhões empurrados novamente para a miséria absoluta. O governo desmantelar uma coisa tão bem estruturada e uma das poucas coisas que tava em crescimento no País, é realmente assustador.

OP - O discurso do presidente diz que certos temas não vão ter "dinheiro público". Como é possível fazer com que se entenda o que significa o repasse público e porque ele é importante?

Rosemberg - O que tem que ficar claro é que (o audiovisual) é uma das atividades que mais cresce, gera empregos, além de construir bens simbólicos importantes para nós existirmos enquanto nação. O audiovisual tem gerado bens culturais e tesouros imensuráveis para a nação brasileira. Essa atividade é bancada com recursos da própria atividade, recursos dos impostos pagos pela própria atividade. Foi uma conquista importante de uma fatia de mercado que antes estava dominada 100% pelo mercado hegemônico, norte-americano. O que acontece é que sempre que tem um governo mais conservador, de direita ou extrema-direita, termina se associando aos Estados Unidos e uma das primeiras coisas é degolar toda a possibilidade de existência de um audiovisual do País, como se não fosse possível a diversidade cultural, a existência de um cinema nacional. A questão de dizer que um tema pode e outro não pode não é função de um governo. Isso é censura. E censura é um ato de autoritarismo brutal. Existe uma censura. Você dizer que não pode filme com temática lésbica ou gay, não pode filme sobre índio porque o presidente não gosta... Existe uma constituição que nos assegura a liberdade.

OP - Os Pobres Diabos estreou em 2013, no Festival de Brasília, e chegou aos cinemas em 2017. Agora, em 2019, com mais um filme estreando em um festival e numa situação cultural mais delicada, quais as possibilidades do futuro do filme?

Rosemberg - Na situação que se vive no Brasil, se você me perguntar sobre o dia de amanhã eu não sei (silêncio longo). Eu não sei. Quem é que sabe nesse País? Um País que entrou num surto psicótico, numa loucura, num processo destrutivo. Ninguém sabe de nada. Estamos todos mergulhados nessa angústia profunda de vivermos num País onde foi nos arrancado o futuro. Isso é a coisa mais trágica.

OP - O fato do filme ter um espaço de estreia num festival importante é uma forma de tentar responder a essa indefinição de futuro?

Rosemberg - A exibição aqui no Ceará é sempre muito importante pra mim, porque eu reencontro com as pessoas que me ajudaram a fazer aquele filme, é sempre um processo coletivo. Encontro amigos, pessoas que acompanham meu cinema, então é muito bom, nos enche de energia, até de ânimo. Mas não sei te dizer se eu vou lançar (comercialmente), quando, como, porque não sei também como vão ficar as coisas no Brasil, não sei se vai ter Ancine, se não vai. É um momento muito complicado, e lamento muito, porque é um momento em que o audiovisual estava crescendo mais, conquistando prêmios importantes, o Ceará com uma geração de jovens realizadores brilhantes que conquistaram espaços também brilhantes, assim como em Pernambuco, na Bahia, em Belo Horizonte… o Brasil inteiro. De repente vem essa possibilidade de se acabar isso tudo, de calar vozes, de controlar esse processo criativo. Nós que já passamos por um processo de vivermos a angústia e a sombra de uma ditadura realmente ficamos muito assustados com o que está se configurando no Brasil. Se a Ancine é desmantelada, também vão ser desmanteladas as pequenas produtoras, milhares de empregos que vão se perder, são muitos jovens talentosos que vão deixar de concluir seus filmes maravilhosos. Tudo isso é um momento que nos deixa angustiados. Se qualquer pessoa me pergunta sobre o meu projeto mais importante, eu digo que é não enlouquecer. É manter a sanidade, a consciência, a minha dignidade, a minha luta, meu pensamento crítico, minha consciência, em última análise, como cidadão brasileiro e do mundo. Ou seja, não vamos nos curvar.

OP - O senhor pretende continuar produzindo…

Rosemberg - Não sei!

OP - Não digo nem cinema, mas produzindo.

Rosemberg - Claro, claro. Agora mesmo eu estou fazendo doutorado, uma tese sobre a utopia e a distopia dentro da religiosidade popular. Nossa atividade é constante. Tem mais um longa que já está filmado, em processo de finalização, que é o Escravos de Jó, que também reflete a contemporaneidade, a política contemporânea. A escrita precisa de uma caneta, um laptop. Na pesquisa, a gente viaja e conversa com pessoas, entrevista, fotografa, analisa o material, formula teorias sobre isso tudo. Estar em constante atividade é fundamental para a nossa saúde psíquica, nossa qualidade de vida. E, de alguma forma, estar ligado com o outro também. Porque esse não é momento de se isolar. É momento de saber que somos uma comunidade.

29° Cine Ceará - Festival Ibero-americano de Cinema

Quando: de 30 de agosto a 6 de setembro

Onde: Cineteatro São Luiz (Praça do Ferreira, s/n, Centro) e Cinema do Dragão (rua Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema)

Quanto: entrada gratuita com distribuição de ingressos no local

Mais infos: www.cineceara.com ou @cineceara

 

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