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Marca Dor (Parte I)
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Marca Dor (Parte I)

Tipo Crônica

Fulgêncio colocara um livro em sua estante. Aparentemente mais um a compor o acervo de bibliófilo reconhecido. Antes de fazê-lo, entretanto, deitaria em seu interior, como a divisar qualquer coisa — o que não era o propósito —, um pequeno marcador de página. Acredite: todos os livros naquelas estantes de arrodear sobejamente o salão de sua afamada biblioteca encerravam marcadores de página, na verdade, esta sim, a coleção queridinha de Fulgêncio.

Ria-se ele quando os intelectuais e estudiosos da cidade ou dos arredores deitavam olhos basbaques diante do relevo de seu acervo literário, tecendo-lhe comentários dos mais prestigiosos. Ora essa, de nunca sonharem que para ele a aquisição de tais obras era um preciosismo, um capricho de quem a sorte vingou fortuna. Ademais, era mesmo um colecionador de marcadores de página e, assim, dava-se o luxo de escolher berços de grande valia, condizentes àquelas supostas preciosidades. Ali, os encontrava de todos os tipos e formas. Nem sabia desde quando, mas, viajante contumaz, dera um dia de sair em busca dos gêneros possíveis, fossem de papel cartonado, seda, renda, osso, couro, palha, em origami etc. Desde então, cada um a lhe chegar às mãos, provocava das vezes de extrair-lhe lágrimas ou, no mínimo, de render a noite inteira da mais fervorosa contemplação. Os livros? Que os sebistas se preocupassem com eles. Tinha-os a seus pés.

Aqueles a não lhe compreender a mania, eram de pronto tachados de ignorantes: "Não reconhecem um tesouro quando estão diante de um!", o que não o aborrecia, absolutamente; ao contrário, o exaltava diante das poucas visitas fatigadas de histórias, mais de milhares, contadas demorosamente diante de um silêncio ouvinte a admirar como era possível que cada pecinha daquelas, nas mãos de Fulgêncio, tomasse ares de brilhantes.

Numa noite não vulgar, chegou a um salão de festas. Figura ilustre e bem-posta na vida, fora recebido com etiqueta e não tão sinceras lisonjarias. Até o anfitrião deteve-se a saudações aligeiradas de quem não pretendia estragar a noite com a verborragia de colecionador: "Convidei, mas pensei que não viesse... É doido!", justificava à mulher, irritada.

Beatriz, filha moça do casal, ao vê-lo rodopiar altivo e solitário entre os convidados, e sabedora de ele ser proprietário de basto patrimônio literário, aproximou-se. Era, dizia, uma leitora voraz, grande apreciadora da literatura e, em especial, da poesia. Visivelmente ingênua, transbordava um discurso meloso e romântico que enjoaria até o Fulgêncio, não estivesse ele entediado da ausência de ouvintes. As suas histórias de caça a marcadores pelo mundo entalavam a sua garganta e, não por outro motivo, aceitou conhecer o acervo da casa.

(Conclusão em 15 dias)

Foto do Raymundo Netto

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