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Artistas e amigos prestam homenagem a Bia Perlingeiro
Vida & Arte

Artistas e amigos prestam homenagem a Bia Perlingeiro

Convidados pela historiadora da arte Carolina Ruoso, artistas escrevem carta-homenagem à galerista Bia Perlingeiro, falecida no último sábado, 4
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Bia Perlingeiro era galerista da Multiarte e importante personagem do cenário 
das artes local (Foto: Karla Assunção/ Especial para o POVO)
Foto: Karla Assunção/ Especial para o POVO Bia Perlingeiro era galerista da Multiarte e importante personagem do cenário das artes local

Nossas cartas-entrevistas são dedicadas às mulheres artistas. Criamos um espaço no  Vida&Arte para construir visibilidades e ampliar as referências para uma memória das artes a partir do Ceará. Bia Perlingeiro, ao ler uma das primeiras cartas que foram publicadas me escreveu, destacando a importância, agradecendo e encorajando a sua continuidade. Como nos importa a trajetória das mulheres nos mundos das artes, conversaremos hoje a respeito do percurso dessa mulher incrível que era galerista junto do seu companheiro Max Perlingeiro.

A Galeria Multiarte foi criada nos anos de 1980, de acordo com a tese de doutorado de Gerciane Oliveira, uma galeria que tecia uma rede local, nacional e internacional das artes, e que, com seu perfil curatorial, elaborava uma narrativa histórica para as artes. Bia Perlingeiro foi gestora da Galeria Multiarte durante 30 anos. Ela compõe, ao lado de Dodora Guimarães, Heloísa Juaçaba e Nice Firmeza, um repertório de atuação de mulheres que integram a rede de cooperadores dos mundos da arte, fortalecendo uma prática de atuação em grupo, de formação de processos coletivos de integração, de colaboração tanto no que diz respeito aos processos criativos como na construção de instrumentos de reflexão crítica e histórica da experiência artística.

A historiadora Julie Verlaine, ao estudar as galerias de arte contemporâneas de Paris no pós guerra (1944- 1970), cartografou 28 mulheres galeristas, entre elas: Allendy Colette, Clert Iris, Denise René, para citarmos alguns nomes. Esse estudo desdobrou em uma outra pesquisa sobre mulheres colecionadoras e mecenas. Precisamos, portanto, destacar o papel fundamental de mulheres como Bia Perlingeiro na constituição de um grupo de mulheres colecionadoras, a partir de uma ação inovadora em galerias de arte que aproximava pesquisadores, artistas e colecionadores. Ela compreendeu a importância do trabalho em rede e o perfil de criação colaborativo que há entre artistas cearenses. Podemos ressaltar que, historicamente, desde as ações de entre-aide praticadas na Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP) até a recente experiência do Salão de Abril Sequestrado, predomina em Fortaleza um desejo coletivo de estudar e expor junto, vide a quantidade de coletivos que movimentam a cena cearense.

Assim, sensível ao contexto local, articulando atores nacionais e internacionais, criou, desde 2013, 14 grupos de estudos na Galeria Multiarte, com artistas, sociólogos e historiadores da arte, curadores, entre outros, que tinham o papel de orientar, construir lugares de reflexão crítica, alimentar o desejo de aprendizado, de construção de diálogos e, especialmente, de apoio por meio de bolsas de estudo para jovens artistas, parceria que construiu com o Grupo de Arte Meio-fio, coordenado pelo professor Herbert Rolim, Artes Visuais (IFCE).

Muitos são os agradecimentos à Bia Perlingeiro pela sua contribuição aos mundos da arte. Ela também nos deixa uma saudade enorme do seu afeto, da sua generosidade, da sua sensibilidade, do seu repertório crítico, do seu desejo pela reflexão, do seu incentivo à pesquisa e à criação artística. Mas, sobretudo, do seu papel fundamental, como membro cooperadora dos mundos da arte. Nosso muito obrigada!

Quando comecei esse projeto das cartas-entrevista recebi uma linda mensagem da Bia, elogiando, encorajando e fortalecendo a continuidade da experiência, ressaltando a importância da iniciativa. Convidei pesquisadores, professores do grupo de estudos da Multiarte, artistas e amigos, para escreverem uma carta em sua homenagem.

Carolina Ruoso, Historiadora da Arte, professora da Escola de Belas Artes da UFMG

Bia querida,

Receba essa carta como forma de agradecimento por todo o aprendizado e por todo o carinho que sempre dedicou às pessoas e à arte cearense. Tua atenção e delicadeza com as pessoas formaram um grande legado para a construção das relações no nosso sistema de arte. Durante 7 anos, formamos um grupo de estudo na Galeria Multiarte e a sua presença era sempre um momento privilegiado, pois você emanava uma competência para mediar divergências, agia como um ser privilegiado de luz, com o dom de tecer a arte do respeito, da compreensão, da convivência, a arte da arte, era formadora de pessoas, uma construtora de mundos.

Se nós não tivéssemos um entendimento de que sua missão entre nós foi amavelmente cumprida, seríamos só desalento; não lembrássemos do seu zelo pela arte e do bem que por ela você fez às pessoas, seríamos só desconsolo; não tívessemos em conta seu comprometimento com a pesquisa em arte, o valor social e a mediação relacional com que generosamente a compartilhava, agora seríamos só desengano, tristeza e dor. Pensaremos em você sempre como uma mulher altiva, determinada, delicada e cheia de sonhos. Tudo conjugado numa fina existência cheia de elegantes gestos. Aprendemos muito com você: sobre a arte, sobre o fazer expositivo, sobre a generosidade, sobre o outro. Para nós você sempre será a grande artista que foi, capaz de semear jardins. Do seu relacionamento amoroso fez o tecido de aprendizados e descobertas que não cabia só em si e deveria ser doado ao outro. O resultado foi a criação e a manutenção de um dos espaços mais potentes de arte em Fortaleza: a Galeria Multiarte, uma extensão de si. Ao longo de sua vida, foi, passo a passo, construindo uma forma de proporcionar a todos uma experiência única de arte que dissesse ainda mais sobre a vida e os significados que ela poderia apresentar. Ao sair dali, cada um tinha materiais suficientes para repensar o viver ou analisar com mais cautela os gestos que deveriam ser impressos. Passando por você, cada um deveria imaginar a marca que gostaria de imprimir nessa vida. Esperamos continuar este que foi, talvez, o mais singular e original de seus feitos, sobre o qual falava sempre com muito entusiasmo: a construção de uma rede de pessoas e afetos, de um público artístico, nem tanto para 'entender' ou criticar arte, mas para viver seus efeitos libertadores e obterem alguma plenitude nessa vida.

Queria que todas as pontas da vida fossem ligadas, que as pessoas conhecem os processos artísticos de todas as esferas e assim fazia, pouco a pouco, o bordado da doação, integrando espaços e articulando pessoas no caminho da arte. Você, nossa deusa Flora, sempre estará nos jardins, nas orquídeas, nos livros, nas exposições de arte, na força, na delicadeza e na generosidade. Você confirmava que era das intensidades e dizia ter pacto com o vento, que invadia sem avisar e arrebatava os sentidos. É assim que vamos lembrar de você, com a beleza das flores, como uma pessoa que transformava os sonhos em realidade. Somos energia, e segundo o princípio de Lavoisier, a energia não pode surgir do nada e nem pode ser encerrada. Não encontrando palavras, buscamos o silêncio como agradecimento.

Ana Cristina Mendes, Ana Valeska, Carolina Vieira, Fátima Souza, Herbert Rolim, Luciana Eloy, Pedro Boaventura e Solon Ribeiro

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