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Terror. O Poço constrói metáfora a partir do confinamento
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Terror. O Poço constrói metáfora a partir do confinamento

O filme espanhol não teria estreado em momento mais propício. Em tempos de isolamento forçado, ele discute como isso pode representar desigualdade e egoísmo social
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Cenas do filme O Poço (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Cenas do filme O Poço

Imagine-se preso em um compartimento pequeno, quase inteiramente fechado. Poucas janelas. Nele, duas camas, uma sua e outra do seu novo companheiro de vida. No centro um vão que permite ver os vários andares que repetem o modelo da sala, tem para cima e tem para baixo. Por esse vão, todos dias passa uma plataforma com um enorme banquete. Os dois "colegas" têm poucos minutos para comer o que der e então o que sobrar será o alimento dos andares seguintes, sucessivamente até chegar ao fim. Quem estiver na parte de cima come melhor e, quanto mais fundo, pior será a experiência. Essa é a premissa do filme espanhol O Poço, original Netflix.

Começamos acompanhando dois detentos, um velho e um novo, um que está há mais tempo e um novato (útil para que o filme nos explique as regras) e ambos igualmente confusos sobre o dia de amanhã. Por mais que um, o mais experiente, venda o óbvio, palavra que repete obsessivamente, não é isso que o filme vai mostrando com o passar dos minutos. O óbvio se desfaz aos poucos, pois, mesmo partindo da crítica (óbvia) a respeito das desigualdades sociais, ali representada pelo alimento que se esvai antes de chegar a todos, roteiro e aspectos técnicos conseguem ir além dessa proposta.

O Poço derrama sangue sobre as ações de quem vive esse óbvio. Matar, sacrificar, sofrer, engolir o que não quer, tudo isso são alegorias de uma sociedade em que vivemos aqui e agora. A comida pode ser substituída pela qualidade dos empregos, pela educação, por dinheiro e até pode ser mantida como comida mesmo. Já a plataforma é a alegoria estopim para representar ações diretas e indiretas da sociedade que torna alguns seres humanos mais rudes, socialmente revoltados ou egoístas. A comida e o tempo proposto para ser consumida representam todos os males que o egoísmo social apresenta.

Chama atenção o design de produção ter feito tudo retangular. A cama é retangular, a plataforma, espelho, janelas, botões, enfim, tudo. Tal escolha serve à narrativa de várias formas. A mais simples é criar a clausura natural que a hermética do ambiente gera. Como a câmera quase nunca aposta nos pontos de fuga do cenário, ou seja, no encontro das linhas, mas sempre no fundo reto, nos sentimos igualmente presos ali. Tal escolha serve mais ainda à narrativa quando aparece como antagonista dos objetos clássicos de uma boa refeição. Pratos e copos, geralmente (!), são redondos. Mesas retangulares, por exemplo, tem extremos, o que atribui sensação de poder a quem senta à ponta, ao contrário da mesa redonda ou até quadrada, que dão um sentimento de igualdade.

O diretor Galder Gaztelu-Urrutia, junto com os roteiristas David Desola e Pedro Rivero, extrapolam o uso do único cenário do qual dispõem. Mostram como é no topo, como é no fundo, como é no meio, como é a passagem de um para o outro, como é o topo do topo e como é o fundo do fundo. São várias as discussões geradas a partir do pequeno ambiente, motivo pelo qual o roteiro cresce quando mostra pelo menos cinco camadas de um relacionamento a dois em confinamento. Desde aquele que quer tudo seu, até aquele que se coloca como um mártir.

A frase final do filme é especial e, sozinha, capaz de condensar tudo o que foi vivido por muitos que tentaram mudar, que tentaram ser mártir, que tentaram algo diferente na vida. Não é sobre a o mensageiro, é sobre a mensagem, e o protagonista de O Poço prova muito bem dessa máxima.

O Poço é um filme denso, mas não é de todo complexo. A complexidade somos nós quem sugerimos e, por isso, é uma produção que precisa ser comentada para reverberar melhor. A estreia do diretor Galder Gaztelu-Urrutia me surpreendeu com planos criativos, viradas no momento certo da história e principalmente ao escolher fugir do senso comum da discussão das diferenças de classe.

PH Santos é membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine)

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