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A doença e a língua
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

A doença e a língua

A Antônio Freitas

Viciado em palavras e nas expressões, velhas e novas, que usamos e criamos para nos comunicar a todo instante, aproveito a quarentena para registrá-las e refletir sobre elas, já que não há mesmo muito o que fazer nestes dias e para não ficar doido de vez. Meus amigos, os dicionários, são meus companheiros de brincadeira. O primeiro dos vocábulos que me vem à mente é "pandemia", entendido como "enfermidade epidêmica amplamente disseminada". Bem, a Covid-19 faz estragos no mundo todo, menos, ao que parece, na Coreia do Norte, onde não foram registrados nem contágios nem mortes pela OMS. Será o efeito da foice e do martelo ou do fechamento do país? Lembrei-me da célebre frase do Campelo: "Jamais saberás". Lá, o coala manda e o povo cala.

Passando para a ciência, surgem "álcool em gel" e "cloroquina" ou "hidroxi-cloroquina". A primeira substância é pule de dez no quesito simpatia entre os produtos de assepsia de primeira necessidade. Já é tão famosa que com toda a certeza vai dar nome a gente: "Passe para dentro, Álcoolgelson, ô menino do cão!". As duas outras são drogas que o (des)governo quer nos empurrar sem um protocolo científico seguro do seu emprego. Quem topa ser cobaia? Coisa típica do "Tiririca raivoso", este, aliás, o mais novo epíteto dado ao nosso triste (des)presidente. Novidade também é "tele-trabalho", ou "trabalho remoto", a tal atividade laboral feita em rede e na frente do computador. Ontem, vi na TV uma resenha com seis caras na tela sobre a derrota do Brasil na Copa/1982. Ai, ai...

O "isolamento social" tem gerado muita celeuma. Como se estivéssemos numa sorveteria, perguntam-nos se o queremos no sabor "horizontal" ou "vertical", a indesejada das gentes segurando a casquinha e rindo da nossa situação. Por falar nisso, o "cercadinho", onde o "mito" (Zeus deve estar rugindo no Olimpo) e seus doentios seguidores desacatam os jornalistas, deve ter inspirado, com o sinal trocado, a "barreira sanitária" que criamos em nossas casas. Ao contrário das zonas suja (rua) e limpa (lar) da fronteira que estabelecemos, a de Brasília tem sujeira num lado e no outro. Os bares que ainda teimam em abrir (quanta saudade!) promovem "privêzinhos", tão clandestinos quanto os speakeasy da velha Chicago no tempo da Lei Seca. E este abril, tão chuvoso e desperdiçado.

Esta minha "narrativa" já deve estar enchendo e muito o saco de vocês, caros(as) leitores(as). A propósito, esta palavrinha aspeada, que significa "ato, efeito ou processo de relatar um acontecimento real ou imaginário por meio de palavras" ou "reunião de obras escritas", é sacada, a cada momento, por todo e qualquer bicho de orelha no esforço de dar substância ao seu ralo discurso. Só perde em número de citações para "distopia", que se traduz por "lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação". E assim seguimos, gemendo e chorando no vale de lágrimas que é esta anti-utopia, tal como Alices num pesadelo à moda Carroll, que sabemos quando começou, mas que não imaginamos quando vai terminar.

 

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