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Sérgio Gurgel e o trabalho de ressignificar peças que contam histórias
Vida & Arte

Sérgio Gurgel e o trabalho de ressignificar peças que contam histórias

| "Como se Fosse Casa" | No ateliê do artista visual Sérgio Gurgel celebra-se o encontro quase mítico entre acaso, sujeira e tempo, matérias-primas de suas obras
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FORTALEZA-CE, BRASIL, 21-11-2019: Sérgio Gurgel, artista plástico. Entrevista para p projeto Atelier. (Foto: Júlio Caesar / O Povo) (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR FORTALEZA-CE, BRASIL, 21-11-2019: Sérgio Gurgel, artista plástico. Entrevista para p projeto Atelier. (Foto: Júlio Caesar / O Povo)

"Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca (...) As bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, (...) e se nos mordemos, a dor é doce; e, se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela", versou o escritor argentino Julio Cortázar na memorável obra "O Jogo da Amarelinha" (1963). No encontro entre bocas, beijo alentado no desejo, a língua mapeia recintos, descobre cavidades úmidas, toca cada rugosidade do outro. Língua é músculo, mucosa, papilas. Língua é, sobretudo, sentido. Com dentes fortes, Sérgio Gurgel morde a vida e enche a boca, explora com a língua cada sabor, cartografa passado, presente, futuro. Artista visual, o cearense nascido na caatinga atrai-se pelo acaso, pela sujeira. Sérgio Gurgel deu um beijo na boca da Cidade. E Fortaleza correspondeu àquele beijo.

Em 1982, sete astros se alinharam em Escorpião no céu de Acopiara, Centro-Sul do Estado, e Sérgio Gurgel nasceu. Filho temporão, rebentou ao mundo em uma família de idosos: mãe, avós, tias, as mulheres da vida de Sérgio caminham de braços dados com o tempo. "Cresci com uma cabeça de velho". Neuma Gurgel, tia de Sérgio, era dona de um ateliê de noivas — e foi nessa casa de criação, entre vestidos rendados e decorações de casamento, que a trajetória artística dele se iniciou. "Minha tia conta que eu pedia muito pra ela colocar papéis para eu desenhar. Ela viu que eu gostava e começou a comprar tinta, pincel, me dar livros para estudar... Já minha avó queria que eu seguisse uma carreira religiosa, então eu vivia nesse universo meio profano e meio sagrado".

O encantamento por formas e cores tomou o cotidiano de Sérgio durante a infância, mas as notas de Matemática e Física na escola caíam. "Fizeram, então, uma semana cultural no colégio eu fiquei sabendo que desenho e pintura somavam pontos na média final — me inscrevi em tudo! Uma das matérias era vídeo e uma coisa que me pegou de surpresa foi a paixão pelo vídeo que me arrebatou". 

Câmera em mãos — presente da tia Neuma, fascinada pelos progressos do sobrinho no audiovisual —, Sérgio embebeu-se na necessidade de registrar histórias silenciadas. "Geralmente de senhoras por conta da minha própria vivência afetiva mesmo... Depois que eu perdi a minha tia e a minha avó, eu me prendi muito às senhoras de Acopiara", narra o artista.

As "três divas de Acopiara", carregando a narrativa de uma ópera, são coroadas no trabalho de Sérgio Gurgel: Dona Maria, Maria Miranda e Madalena Cintura Fina, todas entre 80 e 93 anos. "São minhas santas, minhas divas". No ateliê do artista, um sem fim de objetos se acumulam na reconstituição dessas trajetórias. São fotos, vídeos, quadros, gravuras, pinturas, cada ruga ampliada e examinada sob o olhar visceral de Sérgio. "A Dona Maria é lavadeira de roupa, rezadeira de ramo e gosta de cantar muito. A Maria Miranda é uma cantora de rádio que já é o oposto. É o auge da felicidade, da alegria, do bem-viver. Ela se veste escandalosamente de dourado e tem um programa de rádio em Acopiara. Já a Madalena Cintura Fina é uma senhora viúva, sempre de preto na cidade, sempre muito misteriosa... Eu tinha um pouco de medo, ela era essa pessoa que desestruturava tempo e espaço na minha cabeça. Certa vez, cheguei na casa dela, ela estava rezando um terço e me disse 'vamos tomar cerveja?'. E nós tomamos um porre gigante", ri.

Entre a pesquisa etnográfica que Sérgio realiza há décadas em Acopiara, muita vida viveu-se. Aos 18, mudou-se para Fortaleza para cursar Publicidade e entrou no Salão de Abril de 2005. Começou logo a trabalhar na indústria têxtil como designer de estamparia e, frustrado com a desaprovação de alguns desenhos, montou uma marca de roupas próprias chamada SG Oversize. O cantor gaúcho Filipe Catto apresentou-se em Nova York usando um parangolé criado por Sérgio, numa brincadeira experimental com o figurino. Apaixonou-se por Patrícia Justa, a fruta gogóia de Gal Costa, e construiu mais uma família com a paternidade de Teodora e Estevam. "Quando eu tinha 33 anos, tomei a decisão de arriscar e jogar tudo para o ar. Pensei 'eu nunca vou fazer tudo que eu quero com a estamparia' e comecei a ter condições de alugar um espaço fora de casa. No ateliê, Sérgio dedica-se a um intenso e ininterrupto processo de criação. "O que me dá o estalo é o encontrar, principalmente essa questão dos idosos, da pessoa com história, com bagagem grande de vida e experimento, tudo isso me interessa muito", resume o artista.

"A Simone de Beauvoir ensaia sobre a velhice, que a velhice não tem nenhuma iconografia, na arte ou na música, em que o velho possa se enxergar ali. Existe sempre uma assepsia. Até mesmo na arte. Você vê que a arte vai para um lugar que o menos é mais. Já eu acredito o contrário: o mais é mais. Eu acho que a gente está só empurrando a sujeira para as periferias, seja a periferia que for. Meu trabalho de ação, de resgatar esses objetos, é justamente trazer para o centro essa sujeira que foi abandonada. Ó, não desapareceu não. Tá aqui, ó, o banco que você jogou fora. É uma forma revoltada de ver essas senhoras reclusas a um quarto, presas num asilo, pessoas que têm histórias incríveis", contesta Sérgio. "O acaso e a sujeira são dois lugares que me interessam. Eu gosto de trabalhar com a sujeira porque a sujeira não desaparece, o lixo não desaparece. Todo essa matéria que se produz é um reflexo de um comportamento, de uma sede de consumo. Eu trago esses objetos para esse lugar de discussão da memória".

 

A casa

A casa de Sérgio Gurgel é a Fortaleza que desaparece. O ateliê do artista visual localiza-se no Edifício Palácio do Progresso — um dos últimos ícones da arquitetura moderna da década de 1970 ainda em pé na desmemoriada Capital. 

"O espaço do ateliê e a localização dele me constroem pela possibilidade de encontro na multidão, esse esbarrar em alguém", reflete Sérgio. Certa feita, esqueceu a porta aberta e Dona Valneide, responsável pela limpeza de outras salas, entrou admirada no ateliê perguntando: "O que é isso?". Surpreendeu-se com a sala abarrotada de fotos, projeções, recortes de jornais, esculturas e até uma cama de ferro fixada ao teto. Hoje, ela é mais uma das senhoras retratadas nas obras múltiplas de Sérgio. "Aqui tenho acesso a materiais, muito lixo também, alguns antiquários próximos, lojas de usados, lugares que são frequentados por pessoas de idade que são as praças. Aqui no Centro eu trabalho com quem eu conheço... Encontrar um objeto, pra mim, é encontrar uma pessoa".

Ensaios de Morar

Na série "Como se fosse casa", o Vida&Arte se avizinha das casas de criação de cinco artistas em áreas diversas: a bailarina contemporânea Rosa Primo; o artista plástico Sérgio Gurgel; a designer de moda Marina Bitu; o dramaturgo Orlângelo Leal e o musicista Caio Castelo.

Passeamos pelos ateliês e espaços artísticos desses criadores, apresentando essas casas em devir que guardam memória e atravessam os limites físicos dos pisos, tetos e paredes ao disseminar arte e cultura como janelas.

O POVO +

No OP+ você já encontra esse e os outros quatro ensaios do projeto "Como Se Fosse Casa", e adentra o ambiente de cada artista em webdocs exclusivos produzidos pelo Núcleo de Audiovisual do O POVO

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