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Filme "As Cores do Divino" apresenta diferentes vivências religiosas de pessoas LGBTQ+
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João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

Filme "As Cores do Divino" apresenta diferentes vivências religiosas de pessoas LGBTQ+

Documentário cearense "As Cores do Divino" apresenta leque de diferentes experiências de religião e fé vividas por pessoas LGBTQ+
Tipo Notícia
Documentário cearense se estrutura a partir de nove entrevistas independentes entre si, mas que guardam relações temáticas na discussão da experiência religiosa de pessoas LGBTQs (Foto: fotos divulgação)
Foto: fotos divulgação Documentário cearense se estrutura a partir de nove entrevistas independentes entre si, mas que guardam relações temáticas na discussão da experiência religiosa de pessoas LGBTQs

Ao pensar em um documentário que se debruce na relação entre religião e pessoas LGBTQ+, uma expectativa mais natural seria esperar um discurso frontal e explícito da obra - seja pendendo para o lado de uma abordagem combativa e de denúncia ou para algo mais edificante e panfletário. “As Cores do Divino”, filme cearense dirigido por Victor Costa Lopes, prefere dar vazão a diferentes possibilidades de discurso ao se basear em nove blocos de entrevistas com personagens distintos entre si, tanto em termos de gênero e orientação sexual, mas também de credo, tipo de relação religiosa e até abertura para tratar da religião, da sexualidade e da intersecção entre elas. Desta maneira, o documentário não apenas “fala” sobre o assunto, mas empreende a delicada tarefa de se constituir enquanto espaço de escuta.

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Em termos de forma, “As Cores do Divino” é bastante simples - pode-se dizer até mesmo antiquado - na medida em que aposta num modelo clássico de documentário calcado nas “talking heads” ou “cabeças falantes”, forma de entrevista mais tradicional. A escolha acaba se mostrando acertada quando, mais do que por qualquer arrojo de forma ou estética, a força motriz da obra se encontra justamente na afirmação que ela faz de si enquanto um filme de conteúdo e de discursos - no plural.

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Cada personagem é apresentada em um bloco independente, que se resolve e se encerra em si mesmo, nunca retornando e tendo participação restrita àquele momento. Essa estrutura imprime uma qualidade de errância, a partir da qual o filme oferta relances de cada narrativa, sem pretensão de definições ou respostas limitantes - e muito porque as narrativas de si divididas na câmera, repletas de questões, delicadezas, problemáticas e superações, carregam marcas fortes de pessoalidade e intimidade de cada vivência específica.

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Algumas experiências contadas despontam pela peculiaridade, enquanto outras têm pontos de aproximação bem marcados. Há depoimentos conflitantes em si mesmos e também diálogos sugeridos pela montagem, como entre Melissa, uma travesti candomblecista que usa roupas masculinas nos rituais por se sentir mais confortável daquela forma, e Dário, também do candomblé, que tensiona o binarismo de gênero da crença. O documentário não defende uma posição ou outra, mas dá espaço para ambas. Assim, se reforça enquanto filme de discursos - no plural - justamente por abrir espaço para tanto.

Com pequenas “quebras” do formato mais clássico, o documentário insere sequências pontuais onde diretor e equipe aparecem no plano, seja sonora ou visualmente. Não são mostrados somente os momentos de captação “oficiais” das entrevistas, mas muitas vezes parte dos percursos que as antecedem ou sucedem - da chegada no local marcado em um carro ao acompanhamento do café passado pelos anfitriões-personagens para ser servido durante a conversa - ou inserções que revelam os bastidores, como ajustes de microfonagem antes de uma entrevista começar a “valer”.

Essas marcações pontuais não criam relações mais fortes ou profundas entre conteúdo e forma, mas ajudam a alçar o filmar para outro lugar. A presença da equipe, dos bastidores e de momentos que facilmente poderiam ser cortados do resultado final acabam por agregar ao filme na medida em que ajudam a estabelecer a atmosfera de abertura e interesse da obra por cada fala e história dividida. A partir de todos esses mecanismos e escolhas cinematográficas, “As Cores do Divino” busca abrir reflexões, humanizá-las, mostrar que há muitas possibilidades a serem experienciadas e que cada indivíduo traz consigo as suas.

As Cores do Divino

Pré-estreia com debate hoje, às 19 horas, no Youtube
Estreia amanhã, 28, em embaubafilmes.com.br
Gratuito até 12/7.

A partir de 13/7, segue para locação no site da Embaúba e outras plataformas

"O filme não pretende ter um discurso único sobre o tema que propõe"

"As Cores do Divino" é o primeiro longa-metragem dirigido pelo cearense Victor Costa Lopes. Na entrevista abaixo, o realizador conta sobre o processo de pesquisa do documentário, escolhas formais e narrativas e reflete sobre discursos de diversidade.

O POVO - Para dar partida, queria entender essa intenção de discutir esse tema em específico. Por que fazer um filme sobre LGBTQs e experiências religiosas?
Victor Costa Lopes - A ideia surgiu a partir de uma inquietação muito pessoal, certa confusão de não entender porque, apesar de toda a violência e toda a invisibilidade que várias instituições religiosas promovem contra a população LGBT, existiam pessoas LGBTs que permaneciam nessas religiões. Paralelamente, queria tentar entender - uma vez que vários LGBTs rompiam com as religiões - como conseguiam ou não manter de alguma forma a espiritualidade e a fé, se uma coisa estava relacionada à outra. Queríamos entender como se dava essa ligação e como as pessoas, a partir das próprias vidas, podiam falar sobre isso. A noção das “próprias vidas” é muito importante porque essa discussão muito facilmente pode ir para um campo mais institucionalizado, e desde o início a ideia era conseguir conversar com pessoas, no sentido mais humano da palavra, que tenham suas fragilidades, contradições, dúvidas, incertezas, mas também suas certezas, opiniões, narrativas. Foi uma busca em torno de pessoas e não necessariamente de falas institucionais.

OP - Como foi o processo de pesquisa das histórias e quais foram os critérios da busca pelas personagens?
Victor - O filme ganhou o edital LGBT de 2016 da Secult e inicialmente a gente mandou como um curta, mas queríamos um número mínimo de entrevistas que nos possibilitasse fazer um longa se fosse o caso, se elas rendessem e fossem bacanas. Por que entrevistas? O formato muitas vezes é pouco utilizado no documentário porque tem relação direta com o "talking heads" e todo um estilo documental que muitas vezes é criticado por ser superficial, institucional, assertivo demais. Por mais que eu concorde com parte dessas críticas, antes eu vivi uma experiência com outro projeto documental, uma série documental sobre pessoas trans que têm alguma visibilidade nas redes sociais. Uma das coisas que a gente fazia ao acompanhar a vida delas era conversar, então de alguma forma a gente colocava em prática a linguagem da entrevista - que às vezes se misturava com o relato e outros tipos de encenação que muitas vezes não eram lidos necessariamente como uma entrevista "talking head", mas que não deixavam de ser basicamente relatos, pessoas falando sobre suas vidas diante de uma câmera e performando de alguma forma. Quando o “Cores” surgiu na minha cabeça, já pensei que deveria ser um filme só de entrevistas, não só por uma questão do processo ser muito mais rápido e possível com a pouca grana que a gente tinha, mas também como uma vontade de experimentar essa linguagem e entender o que é possível de construir em termos de conversa e trocas de experiências. Foi nesse sentido que fomos atrás dos personagens: pessoas que nos rendessem encontros, nos dessem abertura. A gente teve a oportunidade incrível de contar com o Ed Borges na pesquisa de personagens, com colaboração do Isaac Martins e da Larissa Vasconcelos. A gente foi tentando pensar em pessoas que tivessem o máximo possível de diversidade: pessoas de diferentes idades, diferentes religiões, diferentes gêneros e orientações sexuais, diferentes realidades sócio-culturais. Para além desses critérios um pouco mais protocolares, um muito importante foi que esses personagens tivessem algo a falar que não fosse só no âmbito da discussão institucional, que tivessem histórias de vida e abrissem essas discussões para um âmbito mais palpável, humano.

OP - O filme se baseia, formalmente, em entrevistas clássicas do gênero documental, mas existem pequenas inserções que “quebram” essa forma. Primeiro, queria entender mais da escolha de mostrar a si e a equipe nos planos. Ligado a isso, mas caminhando por outro ponto, também queria saber sobre como se chegou à forma geral que o filme traz - blocos de entrevistas que se resolvem em si, sem retomar personagens, mas dando espaço pra algumas ligações temáticas.
Victor - Para mim, linguagem documental (do filme) era a entrevista porque era uma forma que as pessoas tinham de performar suas próprias narrativas. Isso enquanto encenação cinematográfica me interessa bastante. Normalmente a gente gravava nas casas das pessoas, então elas estavam ali nos seus cenários. Quais rastros da vida daquela pessoa eram impressos por aquele mínimo contato, pela narrativa que elas passavam, pelo cenário que escolhiam gravar. Quando penso nos planos da equipe e de transição, eles têm dupla função: dar alguns intervalos para a verborragia do filme, ter algumas pausas e silêncios entre uma conversa e outra, uma suspensão dentro do próprio dispositivo de entrevista, e também quebrar um pouco um caráter institucional que ele pudesse ter. Se os personagens estão dizendo dessa forma, é porque estão dizendo para alguém. Que contexto é esse? Fomos pensando que esse desenho de ir apresentando a equipe e o contexto de gravação seria potente para evidenciar as performances dos personagens. A estrutura de montagem tem muito a ver com a ideia de rastro. Se a gente chega nos personagens, conversa, vai embora e ele fica pra trás, o filme assume menos um caráter de tentar dar conta de tudo. Foi uma opção ir e voltar nos personagens, seria uma proposta até instigante de montagem, mas a opção desses blocos foi, também, para lidar com o fechar. A gente se despedia e aquela vivência, narrativa e experiência vai ficar ali. Tem certo acúmulo, também, porque a gente vai passando por um personagem e uma vez que nos despedimos, chegamos num novo com o acúmulo dos anteriores e, ao mesmo tempo, mais imerso naquela entrevista porque sabemos que ela vai ser única e daqui a pouco vou ter que me despedir daquele personagem. O formato ressaltaria a noção do encontro, que é esse elemento muito importante. Óbvio que tudo está sujeito a um procedimento de montagem, mas a noção de ter um encontro por vez traz um pouco mais forte a noção de que é no “aqui e agora” que está acontecendo a experiência fílmica. Mas a ordem do filme não é a ordem que foi filmada, então houve um pensamento em relação a esse encadeamento de questões. Quando vou ver um filme que é um conjunto de entrevistas com pessoas LGBT sobre religião, posso ter uma expectativa do que vou encontrar. A partir do momento em que os personagens vão colocando as questões, as expectativas vão sendo reforçadas ou contraditas.

OP - Pensando a temática do documentário, as discussões que se colocam em cada fala proferida e ligando isso ao contexto sócio-político do Brasil, que discurso você percebe como o principal que se manifesta a partir de “As Cores do Divino”?
Victor - O filme não pretende ter um discurso único sobre o tema que propõe, até porque ele surge a partir de uma dúvida, de uma - a priori - contradição. As contradições nunca foram um problema. Quando a gente vai a campo fazer o filme, estamos abertos às experiências, quaisquer que sejam elas. Se fosse um filme que desde o início pretendesse trazer uma mensagem específica em relação ao conteúdo que quer abordar, talvez tivessem alguns depoimentos que a gente não colocaria. Uma vez que eles existem e os personagens vivem e agem dessa forma, nos parece interessante que essas formas de vida e pontos de vista sejam ali representadas, estejam presentes. Talvez a mensagem maior, em termos de discurso, seja justamente a própria diversidade de experiências - que é, no fim das contas, pelo que a gente luta. O filme não tenta depor nem a favor nem contra a religião. O que ele tenta é compreender essas diversidades de experiências. Quando digo que é por isso que a gente luta é porque em todo o movimento LGBT o grande carro-chefe é esse. Não é unificar as pessoas em um só rótulo, é justamente ressaltar o quanto somos pessoas muito diferentes entre nós e merecemos respeito, dignidade. Se pessoas que não são LGTBQIA+ têm direito a casa, adotar filhos, cultivarem ou não a sua fé, por que nós não teríamos? A principal mensagem talvez seja esse abraço à diversidade e, ao mesmo tempo, a evidência de certa contradição que existe nos espaços religiosos que pregam invisibilidade e violência. Ficou muito forte em todo o processo a noção de amor que todos os personagens, cada qual da sua forma, trazem. Um amor que se desdobra em fé, aceitação, respeito, autodescoberta, mas todos trazendo a noção que, a meu ver, deveria ser o carro-chefe das religiões. O filme também busca confrontar essa contradição em várias instituições religiosas: onde está o amor que normalmente se prega? O filme faz isso a partir dos próprios relatos das pessoas que vivenciaram isso e assumindo as contradições nesse discurso. Porque para a gente falar de diversidade, a gente também precisa falar de contradição - se não, não existe diversidade.

Foto do João Gabriel Tréz

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