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Todos os nomes para o estupro
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Todos os nomes para o estupro

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Livro Vista Chinesa, de Tatiana Salem Levy (Foto: Divulgação )
Foto: Divulgação Livro Vista Chinesa, de Tatiana Salem Levy

Narrar o que se guarda a sete chaves no próprio corpo. Tatiana Salem Levy deparou-se com a história seis anos atrás. A amiga, a diretora de TV Joana Jabace, fora estuprada enquanto caminhava num bairro exuberante do Rio de Janeiro, em meio à mata Atlântica. Era 2014, tempo de sonhos eufóricos e futuros projetados.

De lá até o término de "Vista chinesa", romance publicado agora pela Todavia, Tatiana se perguntava frequentemente sobre qual era a palavra certa para falar da violação de uma mulher.

Personagem inspirada em Joana e protagonista do livro, Júlia é arquiteta. Na faixa dos 40 anos, é também a mulher cujo corpo foi devassado como se fosse mata e depois atirado fora, uma fratura que ela repassa em carta endereçada aos dois filhos.

Do estupro, seguiu-se ainda uma série de violências, entre idas e vindas à delegacia na tentativa de identificar um rosto, de nomear o agressor, forçando a memória ao trabalho de fixar um traço que seja daquele momento de assombro: olhos, boca, orelhas, linhas do queixo.

"No mesmo instante em que meus pés deixaram o asfalto e pisaram as folhas caídas na umidade da floresta", descreve Júlia, "percebi que havia alguma coisa incômoda no contato da mão dele com o meu braço".

A narradora continua: "Sem mexer a cabeça, olhei para o lado e vi que ele usava luvas". Esse era o detalhe no qual a personagem/vítima se prenderia naquela agonia: as luvas.

Agora casada, mãe, profissional bem-sucedida, Júlia decide revelar aos filhos o que já sabiam de intuir nos silêncios da mãe uma dor não explicitada. "Enquanto vocês assistem a um desenho animado, eu me pergunto como começar esta carta", principia Júlia.

As páginas que se seguem são o relato brutal do episódio e o lento processo de reaver o próprio corpo, espoliado e marcado pelo homem que vestia aquelas luvas.

"É uma experiência irrepresentável, inimaginável para quem não a viveu de fato. Então eu sabia que ia falar de uma experiência que nunca vivi, eu ia tentar me colocar num lugar onde nunca estive", conta Tatiana Salem Levy, em entrevista ao O POVO.

Falando por videochamada de Portugal, onde mora com a família, a escritora de "A chave de casa" ressalva, contudo: "Mas também acho que literatura é isso, tentar se colocar nesse lugar que não necessariamente a gente conhece".

Sobre a decisão de narrar pormenorizadamente o estupro, sem recorrer a palavras destituídas da repulsa que o ato encerrava, Tatiana afirma que "era importante tentar falar e dar nome às coisas".

"Acho que seria fácil não nomear", explica. "Eu, a princípio, pensava em não descrever a cena do estupro. Acho que, de forma geral, se a gente descreve e nomeia demais, corre certo risco de cair no sensacionalismo e escancarar muito, afastando o leitor daquele ato de horror."

O tom e o andamento do romance mudaram quando as amigas, Tatiana e Joana, se encontraram novamente, e, nessa conversa, o caso foi revivido sob outra chave, em cores que expunham a crueza do gesto. "Quando comecei a entrevistar a Joana, essa minha amiga, fui pega de surpresa pela quantidade de detalhes. Não estava à espera de que ela fosse me contar de outra forma, com tão mais detalhes do que na época do acontecimento", lembra.

"Pensei: não vou poder agora recuar, seguir essa estratégia de não contar", Tatiana acrescenta. "Eu teria que justamente encontrar ou buscar as palavras certas para descrever a violência sem fazer com que o leitor perdesse a empatia."

Ao resultado, a artista chama de "alter-ficção", ou seja, uma autoficção do outro, num jogo com esse gênero quase viral, trabalho literário que fabula a partir da experiência real e de memórias alheias e obtém uma escrita desconcertante e de alta voltagem.

Primeiro livro publicado depois de a escritora brasileira se tornar mãe, "Vista chinesa" também constitui um modo de entender como a herança familiar se transmite e se estabelecem conexões materno-filiais dentro dessa trajetória escritural.

"Fiquei pensando nessa personagem que foi estuprada e que teve os filhos depois, o que eles saberiam desse estupro? Porque foram gerados por esse corpo que já tinha sido violentado", questiona-se.

A resposta, novamente, situa-se no quase monólogo de Júlia, uma fala aberta e franca na qual a personagem/narradora se expõe em fluxo de carta.

"Esses traumas geracionais", explica a autora, "as coisas que não precisam ser ditas e que, quando não são faladas, normalmente são mais fortes - essas são piores. É uma preocupação dessa mãe poder nomear as coisas. Para ela é melhor dar um nome. É melhor que eles saibam com as palavras do que com o silêncio".

 

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