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Barrica, o criador de mundos
Vida & Arte

Barrica, o criador de mundos

Socióloga da arte e docente na Uece, pesquisadora Kadma Marques reflete sobre vida e obra do artista cearense Barrica (1908-1993)
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Obra de Clidenor Capibaribe: o Barrica (1908-1993) (Foto: fotos Barrica/Divulgação)
Foto: fotos Barrica/Divulgação Obra de Clidenor Capibaribe: o Barrica (1908-1993)

Secretamente, ao abrigo de cada obra de arte, existe sempre a possibilidade do prazer renovado. Porém, as obras resistem. Não se entregam facilmente. Anseiam pelo tempo do encontro pausado com os que, com elas, aprendem a ver. Na condição de mestres do olhar, os artistas cumprem assim um papel social fundamental: concebem obras que transfiguram rotinas visuais e valores a elas ligados, aguçando os sentidos para a relação das pessoas consigo, com os outros e com a arte.

Por isso, não surpreende que sua matéria-prima seja muitas vezes buscada no sonho, na memória afetiva, na imaginação, no devaneio, no silêncio introspectivo, na inquietação e no espírito utópico, que ocupam zonas da mente onde formas e valores se mesclam indefinidamente.

Grande desafio abraçado por artistas modernos: converter elementos etéreos em formas plásticas materializadas. No Ceará do passado, essa conversão envolveu tanto a criação de estilos particulares, quanto uma história cumulativa de formas plásticas. Foram inúmeros os artistas envolvidos com a dupla dimensão dessa faina. Tantos entrelaçaram cores, gestos e vida, ao menos do século XIX aos dias atuais. Porém, neste primeiro texto de uma série dedicada às artes plásticas no Ceará, o destaque recairá sobre a figura de Clidenor Capibaribe: o Barrica (1908-1993).

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Não é somente a qualidade plástica de suas obras que justifica essa escolha. Certamente são muitos e belos os mundos por ele criados. Neles encontramos cores abertas ou fechadas, casas figuradas ou beirando a abstração, nuvens densas ou apenas sugeridas, árvores de copa pesada ou apressadamente esboçadas.

Obra de Clidenor Capibaribe: o Barrica (1908-1993)
Foto: Barrica/Divulgação
Obra de Clidenor Capibaribe: o Barrica (1908-1993)

Porém, de todas as telas, uma constante sobressai: o emprego poético da cor revelando pinturas com luz própria. Esta produção pictórica aguarda pesquisas. De fato, o olhar dedicado à beleza do todo compositivo, em outro momento bem poderia descortinar a sutileza adormecida nos detalhes de "barricas" (um estudo sobre a variação de cores e a densidade de suas nuvens ou árvores, seria muito bem-vindo).

Inquieto, o artista não se limitou a telas. As cerâmicas de Barrica assinalam um momento singular em seu percurso. Nelas, ele experimentou o estilo já definido, formulando paisagens ricas em detalhes, marcadas pelo apuro técnico e pelo talento para a elaboração de imagens em pequenas dimensões. Estas oscilam confortavelmente entre o sonho e a memória, provocando no apreciador a ruptura, mesmo que momentânea, com os limites do cotidiano.

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Barrica trabalhou também com cerâmicas
Foto: Barrica/Divulgação
Barrica trabalhou também com cerâmicas

Assim, Barrica figura entre os mestres da pintura cearense não apenas pelo estilo que não se restringe aos movimentos artísticos então existentes, mas também por integrar ativamente a fase heroica de emergência do campo da arte no Ceará, contribuindo tanto para a inauguração de entidades associativas (CCBA e SCAP), quanto para a constituição de instâncias de consagração (a exemplo do Salão de Abril).

Seu percurso ilustra de modo exemplar o momento seminal de avanço do campo artístico cearense na década de 30, contexto do fortalecimento das crenças acerca do potencial da arte e da distinção social do artista. Articuladas em uma "arte de viver", tais crenças definem o modo propriamente artístico de perceber a vida, revelando-se fundamental para que cada artista almeje "viver de arte". Porém, diferentemente de muitos, as transgressões de Barrica não passaram pela boemia.

A pacata vida familiar serviu-lhe de lastro em uma trajetória marcada pelo confronto com hierarquias sociais ou interesses financeiros imediatos. A mesma disposição deu base a ousadias formais de apropriação criativa do legado modernista da Semana de 22, demarcando divergências e afinidades presentes em seu trabalho plástico inovador. Hoje, sua pintura segue atemporal: pelas marcas de uma cronologia deliberadamente apagada pelo artista; e por um estilo que cativa a partir do emprego luminoso da cor, que eleva o humano, fazendo-o brilhar. Diante de suas telas, sentimo-nos gratificados pela existência de mundos plásticos que nos fazem sonhar.

A pesquisadora Kadma Marques escreve quinzenalmente para o Vida&Arte

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