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Super-heróis no divã: Marvel aposta na psicoterapia para simular profundidade em séries
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Super-heróis no divã: Marvel aposta na psicoterapia para simular profundidade em séries

Personagens centrais de "Wandavision", "Falcão e o Soldado Invernal" e "Loki", da Disney+, têm a si mesmos como antagonistas. Assim, a gigante do entretenimento tenta mostrar maior tridimensionalidade no simplório mundo dos "super"
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Série Loki é renovada para a segunda temporada (Foto: Divulgação / Disney)
Foto: Divulgação / Disney Série Loki é renovada para a segunda temporada

O "universo de super-heróis" é simples. Apesar de lidarem com seres que praticamente são deuses — ou são assumidos como tais —, as obras beiram o simplório no trato maniqueísta do mundo. É o trunfo do "bem" contra o "mal", discurso efetivo no cinema, nos quadrinhos, na política e até em relacionamentos. A base é a empatia e o objetivo é fazer com que o público torça para os mocinhos e saia, depois de tudo, incólume pelo processo.

Mesmo quando finge quebrar a lógica de "o bem vence o mal" — como no sucesso "Os Vingadores: Guerra Infinita" (2018) —, a Marvel tende ao status quo, ao familiar, ao confortável para o público. Eles fingem que mataram um personagem para sempre, o público finge que acredita. Assim, a gigante franquia do cinema se move num confortável tecido de obras formulaicas e, ao mesmo tempo, divertidas. 

Ao se voltar para a televisão — ou o que se aproxima ao antigo conceito de televisão, o streaming —, a Marvel tateia a profundidade de personagens menos centrais. Foi assim com Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen) em "Wandavision", Bucky Barnes (Sebastian Stan) em "Falcão e o Soldado Invernal" e parece ser assim em "Loki", na jornada do personagem-título encarnado por Tom Hiddleston. E, curiosamente, a plataforma, para explorar essa nova profundidade encontrada nos super-heróis, aposta sempre em ferramentas que derivam da psicoterapia.

O exemplo mais evidente é o de "Falcão e o Soldado Invernal". Sam Wilson (Anthony Mackie) literalmente tem experiência para lidar com sobreviventes de guerra com estresse pós-traumático. Justo o caso de Bucky Barnes, cujo passado é recheado de assassinatos atrozes. Em busca da "cura pela fala", no dizer do pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856—1939), o Soldado Invernal precisa quebrar a própria fachada para expor a fragilidade. Para isso, ele tem uma terapeuta e um amigo/rival. Acaba que existe uma concorrência na jornada psicológica de um e no despertar indentitário do outro, mas o foco aqui é psicanálise.

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Essa noção de uma fachada é o ponto de inflexão também do episódio de abertura de "Loki". A série não esconde o caráter terapêutico da relação entre o personagem-título e o agente Mobius (Owen Wilson) — um psicoterapeuta praticamente onisciente, artifício engenhoso dentro da sempre repetitiva lógica de viagem no tempo da ficção. A opção mais bonita do seriado é pegar uma versão prévia do deus da trapaça. Quem está ali não é o Loki que seria capaz de se sacrificar para impedir o plano de Thanos, mas o vilão responsável pela morte do agente Coulson — e subsequente criação dos Vingadores do cinema. 

Confrontado com o próprio futuro, Loki tem um insight — algo trabalhado na psicanálise, diga-se — sobre o próprio lugar dele no mundo e, mais do que isso, em si mesmo. Assim, ele entra em paz com a sua razão de ser naquela realidade absurda e assume uma postura menos antagônica ao terapeuta. É quase como se os poderes maravilhosos da realidade de Mobius conseguissem forçar que Loki estabelecesse uma relação de projeção com o "psicanalista" — você pode enganar a si, mas não ao seu "onisciente terapeuta". Tudo fica mais divertido ainda quando é revelada a identidade do vilão que o agente da Autoridade de Variação Temporal (AVT) persegue.

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Enfim, há "Wandavision". E, claro, no ápice a obra decide virar "filme de boneco" para investir em batalhas de superpoderes, mas é evidente que a vilã final é só uma concessão e tudo que ocorre é uma luta da Feiticeira Escarlate consigo mesma. O luto, tão abreviado na voracidade de uma megafranquia multibilionária como o Universo Cinematográfico Marvel (MCU, da sigla em inglês), ganha o peso da alteração de realidade de uma superpessoa como Wanda Maximoff.

O tom surreal, que desabrocha da memória afetiva da infância de Wanda na ficcional Latvéria — onde via seriados americanos enquanto aprendia inglês —, dá o tom da viagem interna. A opção vai além da mera indicação, do fan service vazio feito para empoderar o fã que "entende a referência". Vira solução estética, quebra o ritmo narrativo pré-estabelecido do MCU, mostra que pode ir além de lutinhas e poderes.

As obras derivadas — spinoffs — para Disney+ têm menos amarras que o corpulento MCU no cinema. Não precisam ser sucesso absoluto e girar a casa dos bilhões de dólares. Assim, há tempo para brincar de contar histórias.

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Talvez haja espaço para o erro. O caminho para a maturidade narrativa dentro das cifras absurdas e tramas sem nexo passa por aí. Atualmente, a Marvel (a Disney?) aposta num truque recorrente — esse de expor a tridimensionalidade dos personagens a partir de viagens dentro de si mesmos — para provar que vai além de roteiros rasos sobre supersseres se esmurrando.

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Tanto quanto na vida, porém, na arte às vezes a gente precisa fingir saber fazer algo até transcender. Cabe mais ousadia no mundo. No fim, ninguém cobra que, sei lá, o Doutor Estranho derrote a Morte, de quem Thanos é consorte, em um infinito jogo de xadrez. Mas não é pecado cobrar algo mais minimalista que o gozo constante de explosões em finais apoteóticos.

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