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Livro "Mordaça" registra a relação da música com a censura no Brasil
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Livro "Mordaça" registra a relação da música com a censura no Brasil

O livro "Mordaça: histórias de música e censura em tempos autoritários", escrito pelos jornalistas João Pimentel e Zé McGill, traça um panorama da música brasileira durante os períodos políticos que abusaram do autoritarismo
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João Pimentel e Zé McGill reúnem depoimentos de nomes da MPB que sofreram com a censura                           (Foto: Luís Dantas)
Foto: Luís Dantas João Pimentel e Zé McGill reúnem depoimentos de nomes da MPB que sofreram com a censura

O cantor, pianista e compositor Ivan Lins ainda estava no início da carreira quando teve seu primeiro problema com a censura durante a ditadura militar (1964 - 1985). Ao lado do parceiro, Ronaldo Monteiro de Souza, os dois foram chamados ao prédio da Polícia Federal do Rio de Janeiro. Sentados, à espera do que viria em seguida, não tinham certeza do que estava acontecendo porque sequer faziam músicas políticas naquele período. Descobriram logo depois: o homem que trabalhava como censor acreditava que as palavras “frequetar” e “zmei” poderiam ter algum significado nas entrelinhas. Eram, entretanto, óbvios erros de digitação cometidos por alguém da gravadora e significavam, respectivamente, “frequentar” e “amei”. Naquela época, enviar músicas para aprovação dos censores era confiar na sorte. Os músicos dependiam de uma série de fatores, como a relação dos militares com seus advogados e a inteligência de quem aprovaria as canções.

A história de Ivan Lins é apenas uma dentre as centenas (até milhares) que podem ser contadas pelos artistas e outros trabalhadores da cultura que viveram o regime ditatorial. E agora muitos desses relatos estão reunidos no livro “Mordaça: histórias de música e censura em tempos autoritários”, escrito pelos jornalistas João Pimentel e Zé McGill. A obra, publicada pela Sonora Editora, traz um compilado de depoimentos de nomes como Chico Buarque, Gilberto Gil, Nelson Motta, Jards Macalé, Caetano Veloso, Geraldo Azevedo, Ney Matogrosso, Alceu Valença e Odair José. Os textos, porém, não se propõem somente a detalhar o momento da ditadura, mas todos os outros períodos em que houve censura no Brasil até o atual governo de Jair Bolsonaro.

“As primeiras entrevistas foram feitas em 2018, a maioria em 2019 e uma ou outra em 2020 e 2021. Neste tipo de trabalho, a demora em conseguir entrevistas fundamentais gera ansiedade. Mas acho que 90% da lista inicial foi cumprida. Não conseguimos Rita Lee e Milton Nascimento, mas outras histórias boas foram surgindo pelo caminho, como a do Genilson Barbosa, que comprova a teoria de que havia suborno na censura, e a do Ricardo Vilas, músico que estava no grupo trocado pelo embaixador americano Charles Elbrick”, fala João Pimentel sobre o processo de produção. Os dois optaram por focar em pessoas que ainda estavam vivas, sem deixar de citar quem também teve papel fundamental, como Gonzaguinha (1945 - 1991) e Raul Seixas (1945 - 1989).

Para Zé McGill, retomar essas experiências é uma maneira de resguardar e registrar a memória. “Apesar de ‘Mordaça’ não tratar apenas do período da ditadura militar, acho que a importância de resgatar histórias é combater possíveis esquecimentos. O Brasil é um país conhecido por ter ‘memória curta’ e o livro serve como alerta não apenas para as pessoas que viveram aquele período, mas também para as novas gerações. Além do mais, há várias histórias narradas no livro que são inéditas ou muito pouco conhecidas. Com tudo o que vem acontecendo no país, como diria Caetano Veloso: ‘É preciso estar atento e forte’”, reflete.

A obra também traça paralelos com o momento atual. Um dos fatos mais recentes aconteceu em julho de 2019 com o cantor e compositor BNegão, que teve um show interrompido em cima do palco pela Polícia Militar, no Mato Grosso do Sul. “Isso aconteceu porque o BNegão fez um discurso contra Bolsonaro e Sérgio Moro durante a apresentação, numa região do Brasil onde os bolsonaristas são empoderados”, explica Zé. O escritor cita outra situação, quando o clipe da música “O Real Resiste”, de Arnaldo Antunes, foi retirado da grade de programação da TV Brasil após mostrar imagens de Marielle Franco (1979 - 2018).

Segundo McGill, há muitos paralelos entre a década de 1970 e 2022. “Um dos principais inimigos de qualquer governo autoritário, como este, é o pensamento. E a censura sempre foi um instrumento de dominação usado por governos autoritários para controlar pensamentos, limitar ou eliminar vozes discordantes”, afirma. Ele cita, por exemplo, o desmonte da produção cultural por meio de restrições e obstáculos burocráticos. “Além de extinguir o Ministério da Cultura, Bolsonaro foi bem claro quando disse: ‘Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine’. Quer dizer, a censura agora mudou de nome: chama-se filtro. Fora isso, há os robôs e as milícias digitais, que atacam e tentam censurar qualquer produção cultural que não esteja de acordo com a ideologia deles, se é que eles têm alguma ideologia”, argumenta.

Apesar das várias adversidades que a música brasileira sofre nestes dois séculos, “Mordaça” termina com os ares de esperança típicos de Gilberto Gil, o personagem do último capítulo. João Pimentel explica porque escolheu o artista baiano para finalizar os textos: “Primeiro por amar o artista, o ser humano divino, o orixá Gilberto Gil. Depois pela visão otimista dele diante da realidade, a constatação de que o obscurantismo, o negacionismo, o reacionarismo e outros ismos do mal sempre existiram e existirão. Mas a seta do mundo aponta para a frente e os ‘guardas de fronteira’ não são suficientes para segurar os anseios, as lutas sociais, de gênero, de raça, enfim, a busca das liberdades individuais”.

Mordaça

Sonora Editora

335 páginas

Mais informações: no Instagram @sonoraeditora

Preço médio: R$69,90

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