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Entrevista: Pesquisador Thiago Nobre discute o modernismo no Ceará
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Entrevista: Pesquisador Thiago Nobre discute o modernismo no Ceará

|Literatura| Professor Lúcio Flávio Gondim entrevista o pesquisador Thiago Nobre sobre os movimentos do Modernismo no Ceará, passando pela importância do O POVO neste processo
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Livro
Foto: Divulgação Livro "Modernismo no Ceará (1922-1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética"

"Modernismo no Ceará (1922-1931): Práticas Letradas, Cotidiano e Experiência Estética" é escrito pelo professor e pesquisador Thiago Nobre. O livro analisa percursos históricos da literatura cearense. A publicação nasce da pesquisa "A Tribu de Antropofagia: Práticas Letradas, Cotidiano e Modernismo(s) em Fortaleza (1922 - 1931)", defendida por Thiago no mestrado em História pela Universidade Estadual do Ceará, em 2018. Nela, o pesquisador investigou a geração de intelectuais que dialogou, com aproximações e distanciamentos, com o Modernismo das demais regiões do país. Confira entrevista com o autor:

O POVO -Comecemos pelo fim do seu trabalho, quando trata da importância do O POVO na construção da literatura cearense. O que o espaço pensado por Demócrito Rocha, no qual estamos conversando agora, teve e tem a contribuir com nossa edificação narrativa e poética?

Thiago Nobre - Bom, qualquer tentativa séria de reconstrução e compreensão do movimento modernista no Ceará deve levar em conta Demócrito Rocha e o jornal O Povo. À época Demócrito Rocha usava o pseudônimo de Antonio Garrido, prática comum entre nossos literatos. Cirurgião-dentista de formação, Demócrito teve uma de suas inserções no jornalismo cearense com a publicação da revista Ceará Ilustrado (1924), no qual através de suas páginas é perceptível o seu interesse por um dos assuntos da ordem do dia: a poesia moderna. Tanto é que foi noticiado amplamente a vinda, em 1925, de Guilherme de Almeida para proferir no Theatro José de Alencar a palestra "A Revelação do Brasil pela Poesia Moderna". No qual fora publicada praticamente na íntegra e no qual, também, o poeta paulista enfatizou a importância da síntese através de uma propaganda do período: Pink Pills For Pale People (Pílulas Rosadas Para Pessoas Pálidas). No entanto, destaco outras questões importantes. Em 1928 foi criado por Demócrito Rocha o jornal o Povo, importante meio de divulgação dos autores modernos e das ideias modernistas. Demócrito se tornou um polo magnético e grande articulador e realizador do movimento modernista, divulgando, publicando e promovendo ações. Prova disso foram as várias notícias vinculadas quase que diariamente sobre o tema e também as várias seções criadas como, por exemplo, "Modernos e Passadistas", "Mudanismo", "De Antropofagia", "Literatura Antropofagista" e a promoção da enquete literária, em forma de partida de futebol, entrevistando os intelectuais da cidade sobre o Modernismo. Por fim, mas não menos importante, na redação do O Povo foi criada em 30 de maio de 1929, ao soar do boré, a agremiação literária intitulada "Tribu Cearense de Antropofagia".

OP: Lançar sua dissertação em forma de livro no ano em que 1922 é tão festejado quanto revisado foi uma decisão pensada a longo prazo? Como você percebe a importância desta publicação neste momento?

Thiago: Comecei a pesquisar o assunto, mais ou menos a partir de 2010, ainda como bolsista de iniciação científica na licenciatura de História da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Entre sebos e acervos fui descobrindo e me apaixonando. Não consegui trabalhar o tema na graduação devido ao caráter extremamente fragmentário e disperso, tendo estudado outro movimento literário posterior, que foi o Grupo Clã (tido como a 2ª geração do Modernismo no Ceará). Entre 2015 e 2018, ao ingressar no Mestrado Acadêmico em História (UECE), pude desenvolver a pesquisa defendendo a dissertação "A Tribu de Antropofagia: práticas letradas, cotidiano e modernismo(s) em Fortaleza (1922 - 1931). Venho, pelo menos desde 2020, trabalhando para a publicação do livro Modernismo no Ceará (1922 - 1931). Minha pesquisa tenta estabelecer novas questões e também um nova cronologia em um assunto ainda pouco explorado. Acredito que os trabalhos mais recentes sobre a temática sejam o meu e o do prof. Rodrigo Marques. Ao meu ver é impossível pensar o modernismo daqui sem levar em conta três aspectos importantes: [1] A pesquisa do elemento popular e a Literatura regionalista cearense; [2] A influência de autores e obras de vanguarda diretamente da Europa; [3] A influência exercida pela Semana de Arte de 1922, pelo desenvolvimento do Modernismo Paulista e pelas redes de sociabilidade. É por isso recuo minha temporalidade até 1922 pois um movimento estético também é geracional, e isso precisa ser levado em conta. Combato com vigor as interpretações que entendem o Modernismo no Ceará como uma cópia mal feita, atrasada e indecisa do movimento de São Paulo. Apenas foi diferente, nem melhor e nem pior. Valorizo a nossa particularidade.

OP - Dois livros foram publicados no Ceará no centenário da independência brasileira. A existência deles dialoga, como você escreve, com duas feridas já clássicas: a falta de apoio estatal e nossa baixa inserção no "Campo Literário". Como essas ausências culturais contribuem para um enfraquecimento histórico em nossa compreensão de país e de povo?

Thiago - Para entender o movimento modernista no Ceará precisamos recuar até pelo menos 1922, quando é possível perceber o surgimento de uma nova geração de intelectuais que ansiava por inserção e reconhecimento no campo literário de Fortaleza na década de 1920 e início de 1930, disputando o capital simbólico e antagonizando com a geração anterior devidamente consolidada e assentada sobre os louros de batalhas passadas. E aqui me apoio da teoria dos campos do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Evidência dessa diferenciação geracional foi a publicação de duas obras coletivas, em 1922, na cidade de Fortaleza, ano importante de comemorações cívicas para a jovem república brasileira. A Poesia Cearense no Centenário (org. Sales Campos) congregou os literatos tradicionais da terra e teve apoio do governador Justiniano de Serpa. Por outro lado, Os Novos do Ceará no Primeiro Centenário da Independência do Brasil, (org. Aldo Prado) coligiu os autores estreantes. Tanto na guisa ao prefácio escrito por Aldo Prado como no prefácio sem autoria (para Otacílio Colares a pena irreverente seria a de Jáder de Carvalho) é possível perceber a insatisfação, a busca de reconhecimento e disputa por capital simbólico dessa nova geração de intelectuais: "A reacção, agora, mais do que nunca, se faz mister. A hostilidade dos medalhões contra os novos mostra-se franca, decidida, manifesta, embora que impotente. Cabe tão somente aos rapazes de merito expurgar o pequeno mundo intelectual cearense do grupo indecoroso e indesejável dos charlatães, dos embusteiros, que são a vergonha dos tempos que correm. Contra esses cabotinos - expoentes de miséria moral e deficiência intellectiva - está iniciada a reacção!". E complementa Edigar de Alencar, em seus escritos memorialísticos: "A turma daí, a que organizou a Poesia Cearense no Centenário, foi cheia de fricotes. Parcial e aduladora. Injusta e servil. Daí a reação dos novos, que publicaram na época também uma coletânea fracota mas que fez história e significa como protesto". Não podemos esquecer, também, que um ano antes o livro Jardim das Confidências (1921), de Ribeiro Couto, entusiasmou os jovens intelectuais de Fortaleza. A poesia trazia algumas inovações nos temas e na forma, descrevendo fatos do cotidiano da cidade de São Paulo e não obedecendo à risca as métricas tradicionais, o que se convencionou chamar de Penumbrismo. O Penumbrismo encontrou um grande reverberar nas camadas jovens e nos intelectuais de segunda classe, assim como nos estudantes e comerciários de Fortaleza. Nas mesas do Café Riche, importante local de sociabilidade dessa geração, discutiam e recitavam Ribeiro Couto de cor. Embora eles não fizessem a mínima ideia da diferença entre o chuvisco daqui e a garoa de lá. Não é à toa que as poesias do livro Os novos do Ceará no primeiro Centenário da Independência do Brasil tenham sido fortemente influenciadas pelo Penumbrismo de Ribeiro Couto. Sânzio de Azevedo também reparou esta característica e afirmou que o "[...] Modernismo na terra de Alencar, apesar de precedido por notas de surdina penumbrista, vai explodir mesmo é em clangores de forte telurismo".

OP - Apesar da força do "O canto novo da raça", quando se pensa em uma literatura cearense, a prosa ainda toma posição central para o grande público sobretudo com nosso romance e conto. O que perdemos por não conhecer com profundidade a produção lírica local?

Thiago - É importante ressaltar que o Modernismo no Ceará, em seu período heroico, não pode ser compreendido somente tomando em conta os livros publicados, pois se vamos por esse caminho temos a impressão errada de que o movimento foi incipiente e sem importância, apenas um decalque mal feito da Semana de Arte de 22. No entanto, os livros precisam ser articulados com as publicações na imprensa da época, pois grande parte da produção e da experimentação estética dos modernistas daqui foi realizada nos jornais e nas revistas. Os livros publicados no período com a temática modernista podem ser contados nos dedos de uma só mão como, por exemplo, O Canto Novo da Raça (1927) de Jáder de Carvalho, Franklin Nascimento, Sidney Neto, Mozart Firmeza (pseudônimo Pereira Júnior); Terra de Ninguém (1931) de Jáder de Carvalho; Meteoros (1930) de Mozart Firmeza; Carnaúba (1932) de Edigar de Alencar; Mandacaru (escrito em 1928 antes que O Quinze) de Rachel de Queiroz e publicado postumamente em 2010. Todos eles livros de poesia. Se vamos por esse caminho realmente temos a impressão que tivemos um movimento pálido e raquítico. E para mim isso foi uma grande descoberta na pesquisa, proporcionando novas possibilidades de análise.

OP - O caráter fragmental da produção moderna do Ceará é um dos pontos trazidos por você como causa de uma não adequação de nossa arte no padrão historicista do Modernismo no Brasil, que você nomeia de "São Paulo centrismo". Como provocar o reconhecimento dessas criações em um cenário de crescente apagamento regional na Educação, trazido com o Enem e com o "Novo Ensino Médio"?

Thiago - Eu engrosso as fileiras das pesquisas que reinterpretam as experiências modernistas brasileiras a partir de suas particularidades e diversidades em uma temporalidade estendida, no qual se critica a noção de pré-modernismo e a centralidade desmesurada à Semana de Arte de 1922. Ambas dando a entender que existiria um "vazio cultural" que só seria superado a partir desse evento cataclísmico, logo em seguida irradiando suas frequências renovadoras para o resto do Brasil. Esse tipo de abordagem que estandardiza todas as experiências modernistas a partir de um modelo ideal, é justamente o que vários autores vêm criticando pelo menos desde o final de década de 1970, imprimindo novas inflexões interpretativas à História do Modernismo no Brasil, como é caso de Eduardo Jardim, Silviano Santiago, Flora Süssekind, Francisco Foot Hardman, Nicolau Sevcenko, Monica Pimenta Velloso, ngela de Castro Gomes, etc. Cada um ao seu modo vem alertando para a necessidade de repensar o moderno se reavaliando as rupturas e continuidades, compreendendo o Modernismo como resultado de um processo histórico em que se podiam combinar as mais diferentes tradições, possibilidades e experimentações. Nesse sentido, devemos entender esses processos em suas pluralidades, ou seja, Modernismos. Venho de uma geração em que se era obrigado a ler Literatura Cearense para o vestibular e, querendo ou não, fui muito influenciado pelos mestres cearenses. Acho muito ruim a maioria das pessoas não conhecerem e não terem acesso à Literatura Cearense devido à vários motivos, mas cito somente um: autores cearenses antigos ou contemporâneos não são reeditados. São esquecidos já na primeira edição.

OP - Sua pesquisa tenta dar ênfase a eventos poucos difundidos da década de 20 no cenário literário cearense indo além, por exemplo, do suplemento Maracajá e da folha literária Cipó de Fogo. O que ainda se oculta sobre o período que seu texto visa a pensar? Tem interesse em fazer ver esses novos objetos e perspectivas em futuras pesquisas?

Thiago - Outras empreitadas importantes foram as publicações das folhas modernistas Maracajá, Tangapema e Cipó de Fogo. Maracajá e Tangapema saíram como suplementos literários e Cipó de Fogo como publicação independente. Maracajá teve dois números (7 de abril e 26 de maio de 1929) e saiu como suplemento literário do jornal O Povo. Tangapema, pelo que sei, deve ter tido apenas um número, infelizmente não encontrada, saindo como suplemento literário do jornal O Ceará. Cipó de Fogo teve somente um número em 27 de setembro de 1931, saindo como edição independente. Eu gostaria de expandir minha pesquisa em um futuro doutorado em História. No entanto, fazer pesquisa no Brasil não é nada fácil. Várias são as dificuldades. Ainda há muito o que se pesquisar e documentos a se descobrir. O que mais me interessa é o movimento contraditório do meu objeto de pesquisa: Como essa geração vai do Penumbrismo ao Modernismo? Como se dá a descida Antropofágica? Mesmo com o elemento popular sendo fonte da identidade nacional o elemento negro foi apagado? Qual a diferença do indigenismo romântico e do moderno? Qual o papel de Rachel de Queiroz (pseudônimo Rita de Queluz) e de Suzana Alencar Guimarães no movimento modernista (participantes ativas mas invisibilizadas)? Quais as rupturas e continuidades entre Padaria Espiritual, Modernismo da década de 1920 e o Modernismo do Grupo Clã da década de 1940? Muitas são as perguntas e questões. Porém, neste centenário da Semana de Arte de 22 e do Modernismo no Ceará, espero ter podido dar algumas respostas ao público leitor. E, por que não, ter contado uma boa história.

 

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