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Uma conversa com a poetisa Suene Honorato
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Uma conversa com a poetisa Suene Honorato

Entrevista com a poetisa Suene Honorato, que lançou o livro "E se eu fosse máquina"
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Suene Honorato é poeta e professora da Universidade Federal do Ceará e está lançando seu terceiro livro, "E se eu fosse máquina" (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Suene Honorato é poeta e professora da Universidade Federal do Ceará e está lançando seu terceiro livro, "E se eu fosse máquina"

Hoje, entrevistamos Suene Honorato, poeta e professora da Universidade Federal do Ceará. Ela acaba de publicar seu terceiro livro, "E se eu fosse máquina". A obra é lançado por um selo editorial independente criada por ela e o também poeta e professor Atílio Bergamini, a "Longarinas". Conversamos com a escritora e docente sobre Poesia, Política, Educação, sua pesquisa sobre os povos indígenas e o que esperar do Brasil que se desenha a partir de nossa mais recente ida às urnas.

O POVO - Poderia falar para nós sobre sua produção poética, situando este novo livro ao lado dos dois já lançados em 2020?
Suene - Entre 2018 e 2019, indo aos saraus de Fortaleza, especialmente ao sarau da B1, comecei a escrever poemas pensando pela primeira vez em uma voz pública. Daí veio meu primeiro livro (publicado pela editora Patuá), N'oré îukaî xûéne!, que em tupi antigo significa "não nos matarão". É uma referência ao poema de Gonçalves Dias "I-Juca-Pirama", expressão traduzível por "aquele que será morto" ou "aquele que deve ser morto". Botei uma exclamação no título para marcar uma indignação coletiva na voz desse "oré" (o "nós" do tupi que não inclui todo mundo), contra a destinação à morte de certas parcelas da população, desde que vem sendo fabricada nossa "identidade" nacional. Também pensei o processo de escrita como coletivo porque escrevo com/sobre outras vozes, seja tensionando ou confirmando. Algumas vezes parto explicitamente de outros textos, alterando uma expressão ou outra - o que aliás não é nenhuma novidade. Ainda acredito que "todo mal do nosso séclo / é querer fazer um verso / assinado por só um". O fetiche romântico em torno da figura do autor segue firme e forte. Por isso alguns usos da palavra "poeta" me parecem rançosos. A literatura indígena tem tensionado esse gênio individual, atemporal e universal. Bom, mas isso é outra conversa… O segundo livro, Vinde, e poetizaremos!, que também tem uma exclamação no título, é bem diferente do primeiro, porque são "poemas-fichamento sobre O mestre ignorante, de Jacques Rancière", como indicamos no subtítulo. Eu tinha escrito os poemas como um exercício para mim mesma, mas Adelaide Gonçalves e Paula Godinho, duas grandes amigas a quem mostrei os originais, incentivaram a publicação. O livro saiu numa parceria entre Plebeu Gabinete de Leitura e Sem Nome Editora. Os exemplares não são vendidos e o pdf é livre. Quem quiser, é só me procurar. O livro do Rancière conta a história de Joseph Jacotot, um pedagogo francês do começo do século XIX que inventou um método para que trabalhadores analfabetos pudessem ensinar seus filhos a ler. Eu (re)leio esse livro desde 2008 e acho que ele me ensinou muitas coisas importantes sobre emancipação intelectual, que foram fundamentais para me ver como professora. Rancière disse que "refraseou" Jacotot; eu digo que refraseei o Rancière. E ficamos felizes porque o Rancière gostou do resultado! O terceiro livro, E seu fosse máquina, é mais parecido com o primeiro, em relação aos temas, formas e indignações. Para mim, esses dois livros têm um aspecto de crônica do cotidiano nestes tempos sombrios. A diferença é que neste eu quis enfatizar a responsabilidade do capitalismo pelas tragédias que vivemos. É uma autopublicação, em nome de um selo inventado por mim e por Atilio Bergamini, que batizamos de "Longarinas", em referência à música do Ednardo, que fala sobre teimar em resistir. O pdf também é livre. Estamos vendendo os exemplares de mão em mão, a preço elegível numa escala de valor entre R$ 15 e R$ 30.

O POVO - O chamado a uma Poesia antimercado e anticapital é rima de seus versos. Poderia nos contar sobre a produção e difusão do livro dentro dessa concepção política e estética?
Suene - Foi Exu quem me ensinou que mercado, em certos sentidos, não é o problema. Exu rege as trocas no mercado-ojá, como li num texto de wanderson flor do nascimento. O problema está no capitalismo. E o mercado editorial contribuiu imensamente para a evolução do capitalismo, como defende Benedict Anderson em Comunidades imaginadas. Então penso o livro anticapitalista como uma contradição em termos, como ironizo no poema "Livro, capitalismo". E, veja, quando Atilio e eu estávamos pensando em criar um selo editorial anticapitalista, dei uma googlada na expressão "poesia anticapitalista" e encontrei apenas 10 links. Não é surpreendente? Certamente há muitos livros de poesia que poderiam ser lidos sob essa classificação, mas a expressão para o Google praticamente inexiste. Outra questão é que há um preconceito sobre "arte engajada", uma espécie de senso comum (acadêmico, inclusive) que vê como opostos engajamento e qualidade estética. Não partilho dessa ideia. Aliás, também foi estudando literatura indígena que comecei a rever noções que uma formação tradicional, como foi a minha, não problematizou.

O POVO - Ainda sobre esse viés, pensando na lógica econômica editorial em um mundo no qual a leitura é um desafio crescente, de que modo o Ensino (Superior e Básico) pode promover uma partilha mais democrática da arte, em especial, a literária?
Suene - Essa é uma pergunta muito difícil, especialmente num momento em que as redes "antissociais", como diz minha amiga Adelaide, monopolizam a conversa. Ou melhor, a não conversa, pois a cena urbana mais comum é ver pessoas que não interagem, cada uma enfurnada na virtualidade em pontos de ônibus, restaurantes, shoppings, salas de aula etc. Há muitos problemas a resolver na educação, mas é também preciso pensar como a educação pode ser problemática. É preciso ter em mente a contradição envolvida aí, como alerta O mestre ignorante, de Rancière. A educação pode tanto ser emancipatória como embrutecedora. Também já dizia Paulo Freire.
O que é "a" literatura ou "a" arte? Elas também podem ser emancipatórias e embrutecedoras. A literatura nos torna pessoas melhores? Acredito que não. O que pode a poesia? Talvez nada. Talvez. Mas um dia ouvi Ailton Krenak dizer serenamente que temos que continuar fazendo as ideias circularem, que o capitalismo é algo muito recente na história da humanidade, que talvez eu não consiga imaginar sozinha outro sistema, mas que é preciso continuar falando sobre alternativas, sonhando com elas, mesmo que a gente não saiba direito o que seria esse mundo. Esse é o esforço coletivo a que venho me somando: imaginar um mundo em que caibam diferentes modos de vida; um mundo em que hierarquias sejam postas abaixo e, consequentemente, torne inviáveis expressões de racismo, machismo, homofobia, transfobia, misoginia, xenofobia etc., etc., etc.; um mundo em que todos, todos os seres possam existir em plenitude. E aí tudo que é gênero de prática e escrita que contribua, para mim tá valendo. Em outras palavras: estou menos preocupada com a literatura do que com o mundo. Daí o poema: "Quando o mundo / for bom e vivível / serei eu a primeira / a juntar meus próprios / livros / numa fogueira. / E vai ser bonito e forte / ouvir o crepitar / da árvore morta / que então / reviverá". A ironia no título: "À espera?". Por outro lado, quando o mundo for bom e vivível, "insetos, reinventaremos poesia" (em "Alô, alô, Marciana!").

O POVO - Os diversos massacres da/na pandemia são um dos temas mais presentes no seu novo texto. Sua pesquisa e trabalho com a população indígena se fazem outra vez presentes aqui. Como a Poesia se relaciona com os cadáveres de nossa história antiga e recente? Há esperança de que ela tenha mais voz no governo mais humano recém eleito no país?
Suene - O caso dos sujeitos e povos indígenas no Brasil é muito grave. Temos sido doutrinados há quinhentos anos para a absoluta incompreensão do que significa ser indígena no passado e no presente. Se uma pessoa indígena não corresponder à imagem de Peri ou Iracema, ela será questionada. Isso mostra o poder da literatura em fixar estereótipos, a despeito (ou não) das intenções dos autores. Temos muito a desaprender quando se trata de pensar a questão indígena no Brasil. Em relação ao novo governo, tenho esperança de que Lula ponha em prática uma "promessa" de campanha, a de ter aprendido com os erros e ser melhor do que foi nos governos anteriores. Sobre o tratamento da questão indígena, há muito o que rever. Historicamente, o Estado sempre foi imigo das pautas indígenas. Um texto muito empolgante a respeito de como as sociedades indígenas na América lidaram com o Estado é "A sociedade contra o Estado", de Pierre Clastres. Ele conclui que essas sociedades inventaram um lugar de poder esvaziado de poder, porque teriam percebido que o poder do estadista pode colocar toda a sociedade em risco.

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