Concurso de divas, gogo-boys, dark room, batalhas de drags e muito glamour: a noite pop em Fortaleza segue na memória da comunidade LGBTQIAPN+ (antiga GLS) que viveu a noite na cidade dos anos 1980 a 2010. Panfletos da época, vídeos antigos e relatos dos próprios frequentadores e produtores das festas ilustram para as novas gerações como eram as farras da capital cearense.
O influenciador digital Sam Barros, de 45 anos, é um dos porta-vozes dessa rememoração da noite de Fortaleza. Em suas redes sociais, ele discute como eram as festas que aconteciam no Centro. "Naquela época, a gente ficava sabendo das festas pelo boca a boca, ainda não existia internet, era por telefone público que a gente se comunicava. Nós do meio já conhecíamos as festa e fazíamos uma rotina no final de semana pelos lugares conhecidos com atrações de drags", relata.
A primeira boate que frequentou era a Style, na Senador Pompeu, que foi fechada e deu espaço para a Divine, também no Centro. Ele conta que viveu, na sua juventude, o auge das drag queens no Brasil, quando muitos nomes do Ceará ganharam espaço na cena noturna da cidade.
"Quem fazia sucesso naquela época eram realmente as drags e era comum que elas usassem sobrenome de carros bons, como a Tatiana Hilux e a Cinthia Citroen. Tinham uns bem famosos também, como a Carlos Colares", afirma Sam, que também destaca a boate Broadway como precursora neste contexto.
Para Leco Lima, produtor cultural que fez parte da criação de festas e boates pop na cidade, a cena noturna de Fortaleza é dividida em pré e pós criação da Broadway. Antes dela, as casas LGBTs da cidade ficavam em locais escondidos da periferia de Fortaleza devido ao medo que o público tinha de sofrer preconceito nos bairros mais movimentados.
Foi após o fechamento do Éden Club, um espaço conhecidamente heterossexual das classes A e B, que ele sugeriu a criação de uma casa pop LGBT naquele local. "Foi um grande tabu. Ela ficava no coração da Aldeota, era uma coisa que jamais poderia se pensar: ter uma boate LGBT onde funcionou o Éden Club durante décadas", narra.
"O conceito da noite e LGBT é uma pré e pós-Broadway, porque a gente começou a tirar um pouco da marginalidade, dessa ideia de estar escondido sem mostrar a cara e entrar em uma outra era. Era o momento de dizer 'Nós estamos aqui, podemos frequentar sim casas interessantes'. Foi aí que a gente fez grandes eventos e vários halloweens, com várias atrações com artistas nacionais, e começou a mudar a cara do cenário da noite de Fortaleza", explica Leco.
Após a Broadway, Leco trabalhou na Kiss, casa de festa pop localizada na Praia de Iracema, também ocupada pelo público LGBT : "De lá, teve várias outras, como a Donna Santa, a Lancelot, a Renascence e várias festas itinerantes, como a que aconteceu no Antigo Aeroporto, no Jardins e a do Theatro José de Alencar. A gente fez muitos eventos para esse público".
"Na época, tinham muitas drags famosas como a Dimmy Kieer, a Verônika, a Silvetty Montilla. Tinha também atrações de sucesso que vinham para cá animar as noites, como É O Tchan, Daniela Mercury, Anitta, Luiza Possi e outras. Não precisavam ser atrações voltadas só para esse público porque o nosso público também se encontrava em outras casas de shows, em forrós e tudo mais. A gente parou de segmentar só em atrações LGBTs", complementa.
A MusicBox, que ficava na Rua José Avelino, também era um "point" de amantes da cultura pop de Fortaleza na década de 2010. Foi lá que a fotógrafa Camila de Almeida começou a trabalhar com sua câmera. "Lá vivi grandes experiências e tive meu primeiro contato com artistas mais famosos, como Gretchen, Banda Uó, Kassis, Valesca Popozuda, além de drags famosas da época do Ru Paul, como Jujubee e Adore Delano", relata.
"O bonito de lá sempre foi a liberdade que as pessoas tinham para ser o que eram. Seja de maquiagens, cabelos, roupas, tudo era aceito. Muitas pessoas iam apenas para dançar as melhores músicas pop da época, outras iam para 'dar close', outros para entrar os crushs", continua Camila, que aponta o local também como um espaço de segurança para a comunidade LGBT .
Declarando ter sentimentos de "saudade e nostalgia", ela continua: "De certa forma, era um ambiente muito seguro para a comunidade LGBTQIA da época e ficou tão famosa que deixou de ser exclusiva da comunidade, muitos outros grupos passaram a frequentar e se divertir".
Uma das personalidades que amadureceu e fez carreira na cena pop de Fortaleza foi Edgel Joseph, conhecido como "A Mulher do Futuro". Há 15 anos, ele estreou como artista na boate Meet: "Era o auge da cena LGBT em Fortaleza".
"A Meet tinha um público com maior poder aquisitivo. Quando as pessoas iam para lá, elas se produziam mais por ser em um bairro nobre. O Dragão do Mar também bombava na época, tinha a Donna Santa, que era muito forte, tinha a Music Box, a Level… Cada uma tinha um público com um estilo diferente, às vezes, voltado mais para o forró, ou funk, ou eletrônico, pela questão mesmo de públicos. Sempre vinham artistas nacionais como a Lorena Simpson, a Valesca Popozuda e a Tati Quebra Barraco", aponta.
Da Divine para o mundo
Sucesso do "centrão" LGBT de Fortaleza, a Divine era casa que acomodava grande número de performances e público da cultura pop. Lena Oxa, que foi a primeira promoter e comunicadora da boate, conta que o espaço foi responsável pelo começo de carreira de muitas drags e transformistas da cidade.
"As festas da Divine eram lotadas, tinham grandes festas, e sempre tinha um artista da terra e uma atração nacional, como a Márcia Pantera, que era a top das tops. Eu colocava elas para duelarem, o que fazia a da casa se sentir realmente artista. Todo mundo queria ver aqueles duelos, muita gente ia assistir", diz.
A artista continua: "Eu lancei muitos artistas. E eu sempre trabalhei com novos talentos, porque eu sempre lutei para estar onde eu queria estar. Na Divine, todo ano eu fazia dois concursos de talentos, a das drags queens e a dos transformistas. Os três nomes que ficaram em evidência, eu colocava eles em evidência nas festas".
De acordo com Wilkson Gondim, produtor responsável pela Divine nos últimos anos de funcionamento, a capacidade da casa era de 950, mas o público sempre "se apertava nas laterais e nos corredores", fazendo o espaço comportar em torno de 1.000 a 1.200 pessoas dentro da boate.
"As noites de Fortaleza, na Boate Divine, eram um 'boom', no meio do Centro. Tinha as melhores festas lá, incluindo as de Halloween, que era sempre a nossa galinha dos ovos de ouro, porque era um evento muito esperado pelo público. Os portões chegavam a fechar porque não tinha mais como entrar. Foram festas grandiosas e, mesmo com palco pequeno, subiam em torno de 20 a 25 artistas ao mesmo tempo, para apresentarem seus shows", narra.
Segundo Wilkson, havia ainda o fenômeno dos jovens que tinham de esperar até meia-noite para entrar na boate porque esperavam completar a maioridade para fazer parte da festa.
"Lembro que tinha a Festa do Arco-íris, que era uma festa do pós-Parada da Diversidade. Todos iam para a boate porque tinha shows com muitos artistas. Em 2010, foram revelados muitos artistas da noite, como Lohana Layser, Rayana Rayovack e Mônica Lepinsky, que estão resistindo na arte drag até hoje", relata o produtor.
Sobre os shows e concursos da boate, ele explica: "A Divine tinha um concurso de divas, quem ganhava era considerada uma artista exemplar de performance, de dublagem e de glamour. Era um conjunto da obra. O Celso de Leopoldino, que era diretor artístico, colocava no elenco personalidades, novos talentos e as divas. Quando elas chegavam ao patamar de diva, se tornavam queridinhas dele e tinham caixas maiores e vários benefícios".
O sucesso das festas na Divine acontecia sem o recurso da internet, todas eram divulgadas no boca a boca e por meio de panfletos. Lena conta que, enquanto promoter, tinha várias estratégias: "Eu tinha como estratégia colocar uns pagodes, um banho de chuveiro para as pessoas verem homens pelados… eu tinha uma estratégia para atrair o pessoal".
"Assim que os panfletos de festa ficavam prontos, a gente levava para as saunas e também dava para pessoas-chave, como os cabeleireiros. A comunicação era intensa, como uma bola de neve. Nos banheiros, a gente também colocava esses panfletos no banheiro para os homens olharem enquanto faziam xixi", complementa.
Transformações
Por diferentes razões, as boates citadas nesta reportagem não estão mais em funcionamento. Para alguns que viveram a noite nas décadas passadas, o cenário é apenas diferente, não necessariamente melhor ou pior. O influenciador Sam Barros argumenta: "As boates e festas daquela época eram realmente para o público LBGT, poucas pessoas não eram mulheres e LGBTs. Hoje em dia, eu sinto que está muito mais diversificado e não dá para saber se o local é somente LGBT".
"A Valentina, que fica no Centro, tem uma pegada muito muito parecida com aquela época, tem show drag, além do pagode e funk", acrescenta.
Para Edgel, a Mulher do Futuro, o cenário atual não é tão positivo: "Hoje não existe mais a valorização dos profissionais da cena LGBT, como os DJs. A profissão já se popularizou muito, hoje todo mundo é DJ, todo mundo é fotógrafo e perdeu um pouco da qualidade e do glamour. Fora que hoje o gay está em todas as festas, que já são bem mais livres".
"Antigamente, os produtores não faziam atrações de pop e funk e eu fui um dos primeiros aqui a trazer alguns artistas dessa cena. Hoje, até os produtores que fazem festas para o público hétero já estão trazendo também artistas do público LGBT", analisa Edgel.
Finas vs centrão
Com a ascensão das boates pop em Fortaleza, também nasceu uma divisão do público de cada casa noturna. Quem frequentava boates da área nobre da cidade eram chamadas de "bichas finas", como explica a artista e produtora cultural Lena Oxa, enquanto as casas de show do Centro tinha público chamado de "centrão" ou "cangalha".
Idelizadora do programa "Glitter", sucesso na TV Diário no início dos anos 2010, Lena, que trabalhou por 9 anos na Divine, defende que o público "bicha fina" sempre terminava a noite nas boates do centrão. "Sempre teve uma divisão entre as boates, tinha a boate das finas e das cangalhas. As bichas ricas e finas ficavam na Aldeota e as cangalhas, no centro. A Divine era a do centrão e todo mundo fazia bico para a Kiss, para a Donna Santa e depois ia para Divine, porque lá tinha dark room e elas faziam o que queriam", conta.
Eram consideradas boates "bichas finas" locais como a Broadway e a Meet. Já a Divine, Kiss, Plumas e Paetês, Casa Blanca, Rainbow e Style integravam o centrão.