"O xadrez é classificado como um jogo de guerra, ou seja, dois exércitos se enfrentam no campo de batalha que, no caso, é o tabuleiro de xadrez. Ele se espelha em uma guerra medieval, uma guerra muito antiga, milenar", explica o professor e pesquisador Wilson da Silva, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que estuda a relação entre o xadrez e o ensino. E foi fazendo guerra no tabuleiro que o educador social e produtor cultural Raphael Montag, do Barroso, viu no xadrez a chance de movimentar a vida urbana.
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"A cidade se verticaliza, os streamings se popularizam, a cidade prioriza o tráfego de carros, a violência toma conta dos espaços vazios", avalia Raphael - que gerencia a Biblioteca Viva Barro. Localizada próxima a uma escola, a biblioteca apostou no xadrez para ocupar esses espaços vazios com socialização e desenvolvimento da autoestima de jovens na faixa de 12 anos a 15 anos. "É importante eles saberem que podem aprender algo complexo", declara.
Segundo o professor e pesquisador Wilson da Silva, o xadrez é um jogo muito fácil de aprender, qualquer pessoa pode aprender a mover as peças. "Se você pensar bem, são seis movimentos só que o iniciante tem que aprender e algumas regrinhas especiais; como essas peças se movem em uma matriz cartesiana, que é o tabuleiro do xadrez", diz.
Ao mesmo tempo, "a expertise em qualquer área do conhecimento requer milhares de horas de estudo, e o xadrez não é diferente. Ele é uma área da expertise humana, uma área de estudo da inteligência humana", ressalta Wilson. De acordo com o pesquisador do jogo, "uma vida pode ser pouco" para aprender a jogar bem, isto é, "jogar estrategicamente".
É por isso que Miguel Rodrigues Cardoso, aos 12 anos, joga pelo menos uma partida por dia. Dedicado há mais de dois anos, ele sente que só agora está aprendendo a jogar bem de verdade. "Eu era bom, mas agora é que eu comecei a evoluir", conta o pequeno morador do Barroso. É por experiência própria que, assim como o professor Wilson, ele atesta: "Pra ser bom mesmo, tem que praticar muito".
A dedicação de Miguel tem um propósito: competir em outros torneios de xadrez. Na primeira e única vez que competiu, ele conquistou a segunda posição em um torneio promovido pelo Centro de Design do Ceará (Kuya). No futuro, ele não sabe o que será, mas de uma coisa tem certeza: quer continuar praticando xadrez.
"Quando se combina os seis movimentos com as possibilidades de jogada do adversário, as possibilidades se tornam maiores do que a capacidade cognitiva humana", declara o pesquisador e enxadrista Wilson da Silva. O que pode soar desanimador para alguns é justamente o que torna o jogo eletrizante para quem o pratica.
"Aqueles que realmente se dedicam falam que o xadrez é viciante", conta Eder Abner sobre o seu período ensinando xadrez em bibliotecas comunitárias, antes de ser um Técnico em Manutenção de Aeronaves.
Na competição, o historiador Juan Dantas, do Curió, não joga; ele vive. "Você é 100% responsável pelo jogo", afirma. O enxadrista acredita que o jogador detém todo o controle, inclusive a reação do adversário.
Ele considera o xadrez um jogo de ego. "Você faz movimentos inesperados para assustar o oponente", conta. Ele faz aquilo que o professor Wilson da Silva chama de "jogar por abstração". O pesquisador explica que o xadrez exige que o jogador observe com "o olho da mente" antes de agir, prevendo as próprias jogadas e as consequências. Afinal, no xadrez, "peça tocada é peça jogada".
"Se eu ganhar é porque eu sou bom. Se eu perder, é porque eu sou ruim", é a sensação que descreve Juan Dantas sobre a intensidade da experiência de competir. Depois de ter participado de três campeonatos, tendo sido o campeão do primeiro, ele entende que o xadrez é um "jogo com alma". E a graça é ter com quem competir, antecipando as jogadas do outro e, aqui e acolá, desestabilizando o adversário.
Apesar da empolgação, Juan deixou de jogar após a pandemia de Covid-19. Entre estudos e trabalho, o jogo deixou de ser uma prioridade, mas ele jamais dispensaria uma partida. Por isso, tem guardado até hoje o "tabuleiro belíssimo" que ganhou no primeiro campeonato. "Se tivesse uma comunidade [de xadrez], já estaria feliz", diz o historiador.
Parte das razões que explicam seu afastamento são as limitações financeiras e de tempo para participar da Federação Cearense de Xadrez ou de clubes, que se localizam em bairros distantes do Curió, como a Aldeota e o Meireles. A questão da classe social não é uma novidade no xadrez. Ele era "considerado como o jogo dos reis e o rei dos jogos", conforme o pesquisador Wilson.
Para além do tabuleiro
Os dois anos de dedicação ao jogo foram suficientes para Juan carregar para a vida o pensamento estratégico que desenvolveu com o xadrez. Ele não acreditava muito nessa conversa de que o xadrez desenvolve a criança e o adolescente, mas acabou descobrindo na prática que até hoje se utiliza dos princípios do xadrez para tomar decisões importantes para si.
Investir o próprio dinheiro, ter disciplina para desenvolver a espiritualidade e até escolher a área de estudo e carreira foram decisões influenciadas pelo jogo que, segundo ele, é "impossível não mudar um ser humano" que o pratica. "Bom, eu sou pobre e o curso de Psicologia é integral e não vou ter como trabalhar, então eu vou fazer um curso noturno que eu gosto, mas não amo". Foi mais ou menos essa a linha de raciocínio de Juan quando decidiu que iria se formar em História.
Quando contou aos amigos, com naturalidade, que decidiu adiar o sonho sob essa justificativa, a reação de espanto deles mostrou-lhe que o xadrez desenvolveu nele um pensamento estratégico que ele aplica na vida. Acreditando que a realização do sonho de tornar-se psicólogo há de chegar, Juan leva consigo o princípio de viver "en passant".
Do francês "de passagem", "en passant" é uma regra do xadrez para capturar peões do adversário com o seu próprio peão. Ele avança apenas uma casa, enquanto o peão adversário passa ao lado avançando duas de uma vez e, ao fazê-lo, pode ser capturado. Foi essa regra que o ensinou a viver "no seu tempinho, sem pressa" e sem se preocupar com o tempo do outro.
A pesquisa de doutorado de Wilson da Silva, "Raciocínio lógico e o jogo de xadrez: em busca de relações", mostra que a prática regular do jogo estimula o pensamento lógico e aumenta as sinapses. "A expertise desenvolvida por quem joga xadrez como esporte pode ser transferida para outros domínios da cognição humana", pontua o professor. Ele também ressalta os benefícios sociais da prática.
Aprender a analisar as situações antes de agir e cumprir regras são parte dessas consequências mencionadas por Wilson da Silva. É por isso que bibliotecas comunitárias como a Viva e a Livro Livre Curió investiram no xadrez. De acordo com Talles Azigon, o idealizador da biblioteca do Curió, a inserção do xadrez nas bibliotecas serve para mostrar aos jovens das periferias de Fortaleza que "eles são capazes de participar de movimentos e atividades que ultrapassam as cercanias da nossa comunidade".
Dia Internacional do Xadrez
O Dia Internacional do Xadrez é celebrado em 20 de julho. A data é uma referência à fundação daFederação Internacional de Xadrez (Fide) - que aconteceu em Paris, na França, em 1924. Em 1966, aA Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) adotou a resolução para celebrar o xadrez ao redor
do mundo.