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'Pluribus': série transforma a alegria coletiva em ameaça silenciosa
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'Pluribus': série transforma a alegria coletiva em ameaça silenciosa

Nos dois primeiros episódios da série Pluribus, Vince Gilligan transforma a alegria coletiva em ameaça silenciosa e Rhea Seehorn brilha numa distopia poética e provocadora.
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A atriz americana Rhea Seehorn constrói uma distopia poética e provocadora (Foto: Aplle TV/Divulgação)
Foto: Aplle TV/Divulgação A atriz americana Rhea Seehorn constrói uma distopia poética e provocadora

Em tempos em que a ficção científica insiste em retratar o colapso e a ruína, Pluribus, nova série do premiado Vince Gilligan para a Apple TV, tem a ousadia de imaginar um apocalipse ao contrário - um mundo tomado por uma pandemia de felicidade. É uma ideia bizarra e, ao mesmo tempo, fascinante: de repente a humanidade fica infectada (ou algo parecido) pelo bem-estar e pela serenidade coletiva que elimina o conflito, a dor e, junto com eles, qualquer possibilidade de escolha.

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O resultado é uma distopia silenciosa e desconcertante, onde o conhecimento amplo está presente integralmente em cada indivíduo e todo mundo ajuda todo mundo, numa guerra de gentilezas.

Nos dois primeiros episódios, disponibilizados na sexta-feira, 7, Gilligan, roteirista de "Arquivo X" e também criador das marcantes séries "Breaking Bad" e "Better Call Saul", mostra mais uma vez sua habilidade em unir inteligência narrativa e dilemas morais profundos.

A protagonista, Carol Sturka, interpretada por Rhea Seehorn, é uma escritora de sucesso e, não se sabe o motivo, não é atingida pela felicidade forçada. A partir daí, ela entrega uma performance impressionante, cheia de nuances e rachaduras internas, lembrando por que já era um dos grandes nomes do universo "Better Call Saul". Sua Carol não é uma heroína convencional: é alguém que carrega o peso de ser uma exceção melancólica e em luto, num planeta inteiro anestesiado e feliz.

O primeiro episódio já coloca o espectador dentro desse novo estado de mundo sem precisar de enigmas indecifráveis. Gilligan evita grandes mistérios iniciais e prefere a clareza: um rato mordeu uma cientista, o fenômeno aconteceu, as pessoas mudaram, e algumas poucas estão imunes.

O foco, então, passa a ser no encontro inicial entre os não felizes. Logo eles percebem que não pensam da mesma forma sobre o destino para a humanidade. Alguns acreditam que o mundo deve permanecer assim e querem se juntar ao coletivo; outros percebem poder tirar proveito; e há os que veem nisso uma terrível prisão invisível. Essa diferença de visão é o motor moral da trama - e o que torna os diálogos tão afiados.

A direção também brilha pela coragem do silêncio. Nada de trilhas sonoras insistentes nem efeitos tentando empurrar emoção. O som que domina é o vazio - o respiro do mundo depois do acontecimento. Essa ausência de música é poderosa: o silêncio é o som da felicidade imposta, da paz artificial. E é nesse vazio que Carol se movimenta, tentando entender o quanto antes como salvar bilhões de pessoas que, aparentemente, encontraram o paraíso - ainda que perdendo a própria consciência, como zumbis do bem.

Visualmente, "Pluribus" mantém o padrão técnico altíssimo das produções da Apple TV. Filmada no Novo México, a série cria uma paisagem limpa, em que tudo parece em ordem demais, bonito demais, tranquilo demais - e é justamente isso que perturba. O apocalipse aqui é ensolarado e cheio de sorrisos.

O nome "Pluribus" vem do latim e pluribus unum - "de muitos, um" - expressão que resume com precisão o espírito da série: a fusão de todas as individualidades em uma felicidade coletiva, uniforme e assustadora.

Os dois episódios inaugurais revelam uma narrativa que cresce na angústia, não na ação. O ritmo é controlado, quase contido, mas cada cena adiciona uma camada de desconforto. O mistério central não está exatamente no que aconteceu com o mundo, mas no que resta de humano quando todo o sofrimento foi apagado.

É impossível não se inquietar com a metáfora: se a dor desaparece, o que ainda nos define como espécie? "Pluribus" também sugere que o livre-arbítrio depende, em parte, da imperfeição. A tal pandemia da felicidade é, no fundo, uma prisão insuportável.

Com nove episódios previstos e uma segunda temporada já confirmada, a série é bastante intrigante, até porque seu criador mantém o estilo provocador, enquanto Rhea Seehorn confirma ser uma atriz de sensibilidade rara. Não há tiros e lutas - apenas a sensação crescente de que algo terrivelmente pacífico ameaça o que há de mais essencial em nós.

E vale o conselho, que não serve para mim: quem não tem paciência de esperar um episódio por semana - os capítulos de cerca de uma hora cada são lançados toda sexta-feira, até 26 de dezembro - vale a pena guardar a série e assistir a tudo de uma vez.

Nesse caso, tente ficar longe de revelações importantes e se prepare para uma maratona que será um mergulho intenso num dos universos mais originais e provocadores da ficção recente, certamente um marco na televisão. Vale cada segundo.

 

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