Há 120 anos, o Brasil poderia não saber, mas o nascimento de uma alagoana seria capaz de provocar mudanças profundas no entendimento sobre as formas de se tratar saúde mental. Não mais por métodos agressivos, como lobotomia e eletrochoques, mas por meio de um aspecto mais "simples", porém transformador: o afeto.
Nesse meio, a arte também se transformaria em um aliado fundamental. Compreensão defendida em peso por Nise da Silveira (1905 - 1999). Aos 15 anos, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia. Em 1944, ao entrar no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Rio de Janeiro, recusou-se a utilizar métodos agressivos para reabilitação de pacientes psiquiátricos.
A psiquiatra demonstrou a arte como mecanismo de tratamento. Nesse sentido, contribuiu para o fortalecimento da arteterapia no Brasil, prática que atua como elemento terapêutico a partir de instrumentos como pintura, colagem, modelagem, poesia, teatro, sons, músicas ou criação de personagens, usando linguagens artísticas como forma de comunicação entre profissional e paciente.
Em Fortaleza, o legado de Nise da Silveira é ressaltado na Caixa Cultural Fortaleza com a exposição gratuita "Nise da Silveira - A Revolução Pelo Afeto". São 157 obras de 11 artistas, entre pinturas, desenhos, fotografias, gravuras e esculturas, além de publicações e documentos históricos do Museu de Imagens do Inconsciente, do Rio de Janeiro.
A mostra também apresenta cartas trocadas com Carl G. Jung, fundador da psicologia analítica. Em 1954, enviou a ele fotos de pinturas de seus pacientes. Falar de sua trajetória é reverberar o uso da arte como forma de terapia e auxiliadora em processos de tratamento de saúde mental.
Realizada pela primeira vez em 2021, a exposição surgiu após intensa pesquisa de mais de um ano sobre a obra de Nise da Silveira, principalmente o livro "Imagens do Inconsciente". A curadoria da mostra é assinada por Isabel Seixas, que já tinha contato com discussões em torno da saúde mental e o tratamento por meio da arte a partir da Colônia Juliano Moreira, antiga instituição psiquiátrica no Rio de Janeiro.
"Era perto da minha casa. Conhecia pessoas que trabalhavam lá, então tinha alguma relação com esse imaginário da arte como ferramenta de tratamento para pessoas com transtornos psíquicos. Entretanto, só me debrucei mais sobre o assunto e o compreendi na pesquisa para a exposição da Nise", revela.
Ela destaca o impacto da luta antimanicomial de Nise da Silveira, tornando-se referência na busca por abordagens não invasivas: "Na época dela, o que se usava era lobotomia, eletrochoque, artifícios muito agressivos que tiravam o sujeito de suas percepções e sensações, tirando-o do que seria mais próximo de uma existência potente".
A mostra na Caixa Cultural Fortaleza visa introduzir o público na discussão sobre o que é "loucura" - e desmistificar o estigma que envolve esse termo. Segundo Isabel Seixas, a ideia é inicialmente apresentar esse conceito e, depois, como o contexto influencia esses pensamentos. Por fim, destaque para a própria personagem de Nise da Silveira no lugar da saúde mental.
"Ela foi uma mulher guerreira diante de um ambiente completamente contaminado por técnicas agressivas. Ela realmente revoluciona por meio de métodos tratados como se fossem menores: a arte, o afeto, as relações e as emoções. Ao longo da exposição o público entende o quanto ela se destacou e como foi difícil para ela, como uma mulher médica, lutar contra o que a maioria das pessoas estava aplicando naquele momento", explica.
A exposição está dividida em três partes que exploram a vida e o trabalho da psiquiatra. A primeira, intitulada "Contexto, Dor e Afeto", leva ao público a origem da abordagem terapêutica de Nise e o contexto dos tratamentos psiquiátricos da época. A segunda seção, "Nise - Ser Mulher, Ser Revolucionária", destaca a profissional como figura inspiradora e detalha sua metodologia de tratamento com a arte.
Por último, "O Atelier", que simula o ateliê de Nise, reunindo obras de seus clientes e de artistas, revelando como o afeto se transformou em metodologia científica para a reabilitação. Para Isabel Seixas, a exposição é relevante para mostrar a devida importância do que Nise da Silveira representa, "uma mulher cientista, nordestina e revolucionária".
A mostra ganha ainda mais força ao chegar a Fortaleza, cidade do Nordeste, região na qual nasceu. "É muito importante para que o público conheça e valorize essa grande personagem que se tornou herói da pátria", avalia. É oportunidade, então, de difundir ainda mais seu nome.
A exposição teve consultoria do museólogo e pesquisador Eurípedes Júnior. Ele é coordenador de projetos da Sociedade Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente e trabalhou ao lado de Nise da Silveira desde 1975, colaborando em documentários, publicações e exposições.
Eurípedes se dedica ao estudo das relações entre arte, ciência e saúde mental. Enquanto consultor da mostra, quis destacar os aspectos principais do legado de Nise da Silveira de forma "muito acessível para o público geral", que não fosse ligado exclusivamente para profissionais da saúde ou de Artes. "A ideia era ampliar o alcance dessas ideias", afirma.
Além de ter atuado como consultor da exposição, Eurípedes ministrou oficinas e lançou livro em novembro. Em uma das atividades, apresentou panorama do legado de Nise da Silveira, abordando a história da construção e desenvolvimento de seus trabalhos e a atualidade das ideias de Nise na saúde mental mundial pós-pandemia.
A outra oficina propôs investigação sobre o mundo das imagens e do consciente. O museólogo lançou também o livro "Do Asilo ao museu - Nise da Silveira e as coleções da loucura", que teve como ponto de partida sua tese de doutorado, fruto de vivência de 40 anos no Museu de Imagens do Inconsciente.
Eurípedes considera a exposição uma oportunidade de demonstrar a necessidade de valorizar as potencialidades dos indivíduos: "Ela apresenta ao público uma visão diferente do transtorno mental. Ele não é algo só patológico e que precisa ser tratado exclusivamente com remédios. É também uma experiência humana que precisa ser acompanhada, cuidada e ter espaços de liberdade para que as vivências possam vir à tona e serem compartilhadas com outras pessoas".
Casa AME
A arteterapia consegue acolher pessoas e agir em sua autoestima independentemente de faixa etária, classe etária ou localização. Em Fortaleza, iniciativas se desdobram em diferentes bairros e extensões. No Grande Bom Jardim, um espaço se destaca: a Casa Arte, Música e Espetáculo Dom Franco Masserdotti (Casa AME).
Inaugurada em janeiro de 2006, ela faz parte do Movimento Saúde Mental (MSM), organização com 29 anos de funcionamento e dedicada ao acompanhamento e à atenção socioterapêutica de milhares de pessoas. O MSM foi criado para oferecer escuta e acompanhamento terapêutico para famílias que viviam em condição de extrema pobreza.
A Casa AME promove práticas de arteterapia para proporcionar às comunidades do Grande Bom Jardim e adjacências autoconhecimento e alternativas ao tratamento emocional. Crianças, adolescentes, jovens, adultos e integrantes da Palhoça Terapêutica e do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) são beneficiados.
Ela oferece atividades como cursos de teclado, violão, piano, flauta, canto, pintura em tela, pintura em tecido, fuxico, bonecas, bordado, contações de histórias, teatro popular de rua e passeios culturais. O local conta com biblioteca comunitária. Hoje, é um Ponto de Cultura do Ceará.
"Temos demanda espontânea, mas a maioria das pessoas que acolhemos aqui vem do Caps, com o qual temos um projeto de co-gestão. A arteterapia reduz a ansiedade, melhora a autoestima, desenvolve a criação, criatividade e suas habilidades. A maioria dos integrantes vem de algum tratamento na parte de psiquiatria, outros chegam por curiosidade, querendo aprender algo para melhorar tudo o que estão sentindo", descreve Balbina Lucas, coordenadora pedagógica da Casa AME. Ela está no cargo desde março, mas integra o Movimento Saúde Mental desde 2013. .
Segundo a profissional, 80% da equipe da Casa AME é formada por voluntários. Uma delas é a artesã Iara Braga, 38. Se dependesse dela, todos teriam contato com a arteterapia: "Isso tornaria a vida de todos mais leve e calma". Apaixonada por macramê, ela conheceu a instituição após participar de ações promovidas pelo Movimento Saúde Mental na Casa AME.
"Eu me apaixonei. O sentimento da descoberta foi tão intenso que saí da área que atuava na gastronomia e migrei para arteterapia assim que conheci o espaço", relembra. Entre 2024 e 2025 ministrou curso de iniciação na arte do macramê. Ao final do curso, todos os participantes produziram suas peças e aprenderam a precificar suas obras.
"Foi nesse momento de aulas, juntamente com momentos terapêuticos, que senti o grande impacto em relação ao aprendizado de valorização na arte. Isso tanto para quem procura aprender a empreender quanto para quem busca somente um acalento para a alma. Essa é minha grande motivação: usar a arte para me profissionalizar, mas também para vivenciar a paz que ela traz!", acrescenta.
Escola Arte Livre
Em Fortaleza, a arteterapia também é apresentada a partir de iniciativas acadêmicas, como no caso da Escola Arte Livre, projeto de extensão da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC). O projeto foi iniciado em 2018 pela psiquiatra e professora Lia Sanders em parceria com o Instituto Federal de Educação e Tecnologia do Ceará (IFCE) a partir do professor Sebastião de Paula.
A Escola Arte Livre visa utilizar a arte para promoção de saúde e bem-estar e facilitar a multiplicação de estratégias semelhantes. São realizadas oficinas e cursos de arte, com exposições de trabalhos dos participantes, oficina de literatura em escolas públicas e iniciação ao desenho e à pintura.
Como relata Lia Sanders, a proposta inicial do projeto era criar um curso de iniciação ao desenho e à pintura que fosse formado por estudantes e pacientes, para que houvesse uma aproximação entre eles e, ao mesmo tempo que promovesse saúde, também "humanizasse" esse contato.
Em 2020, o curso passou a ser ofertado também para profissionais da saúde. O curso teve diferentes edições em um ciclo que durou cinco anos. Ao final, foi desenvolvido um manual de apoio para profissionais que desejem oferecer atividades de artes visuais em seu serviço de saúde.
Com sete anos de projeto, ela percebe impactos positivos nos participantes. "Por meio da expressão artística, você consegue resolver questões que muitas vezes são inconscientes". Ela também elenca a importância de implementar a arte no sistema de saúde: "Estamos com muitos problemas de saúde mental. As pessoas estão muito adoecidas. Precisamos pensar em formas de promoção de saúde. A arte não é o único caminho, acho que estamos adoecidos por diversos fatores, como não ter contato com natureza e não ter tempo livre. Mas a arte é uma possibilidade mais fácil para promoção de bem-estar nos equipamentos de saúde".
Uma das integrantes do projeto de extensão é a arteterapeuta Maria Euda Barbosa. Ela compreende que a área é a materialização do seu propósito profissional e pessoal, usando a arte — sua paixão — como ferramenta de transformação.
Ela ministra oficinas e desenvolve ações terapêuticas. "O ato de criação não é só uma forma de expressão, mas também um caminho para revelar o que não se consegue verbalizar. É uma grande aliada nos processos de autoconhecimento, promovendo bem-estar, equilíbrio emocional, melhora nas funções cognitivas e na autoestima, impactando direta e positivamente na saúde mental", atesta.
"Arteterapia é integrar cuidado"
No Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC), do Complexo Hospitalar da Universidade Federal do Ceará (UFC), há anos um grupo de arteterapia reúne pacientes em acompanhamento psiquiátrico no ambulatório de psiquiatria do HUWC. Ele ocorre semanalmente.
São trabalhadas diversas técnicas, materiais e propostas. Visitas culturais também são promovidos no grupo, além de bazares para a venda de produtos confeccionados pelos pacientes — o que pode ensiná-los sobre gerenciamento de dinheiro e gerar renda.
A situação é descrita pela terapeuta ocupacional Andrea Macedo, responsável pelo grupo de arteterapia ao lado da psicóloga Hilzanir Machado. "Todas as atividades são planejadas para estimular a expressão, a criatividade, o desenvolvimento de habilidades cognitivas e motoras, a socialização e o fortalecimento de vínculos", explica Andrea.
Segundo a terapeuta ocupacional, no grupo observa-se a melhora da expressão emocional e maior sensação de pertencimento. "A atividade artística funciona como um espaço seguro, onde os pacientes podem elaborar sentimentos, organizar-se emocionalmente e experimentar novas formas de expressão", elenca.
Andrea destaca como muitos pacientes acabam construindo novos vínculos nas atividades e fortalecendo suas habilidades sociais. Há melhorias também na organização de rotinas, no enfrentamento de dificuldades e no desenvolvimento de capacidades cognitivas
e motoras.
Andrea não titubeia ao descrever o significado da arteterapia em sua vida: "É integrar cuidado, sensibilidade e criatividade. Acredito no poder das atividades significativas como recursos terapêuticos - elas favorecem expressão, organização interna, construção de sentido e a retomada de projetos.
"A arteterapia oferece um espaço onde cada pessoa pode se sentir vista, acolhida e livre para expressar aquilo que muitas vezes não encontra palavras. É muito gratificante acompanhar processos de reconstrução subjetiva".
Nise da Silveira - A Revolução Pelo Afeto
Quando: terça a sábado, das 10h às 20h; domingos e feriados, das 10h às 19h; visitação até março de 2026
Onde: Caixa Cultural Fortaleza (av. Pessoa Anta, 287 - Praia de Iracema)
Gratuito