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Buracos no mundo
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Buracos no mundo

Perder amigos, parentes, conhecidos, uns após outros, é ser engolido por vazios abismais. É vivenciar uma falta, um apartado repentino, um adeus sem adeus. É um cara a cara com a enorme falta que você me faz
Tipo Crônica
Líbelula na Lafo das Ninfeas, no Parque do Cocó (Foto: DEMITRI TÚLIO)
Foto: DEMITRI TÚLIO Líbelula na Lafo das Ninfeas, no Parque do Cocó

O professor Bragança de Miranda dizia-nos, em sala de aula, que, quando uma criança nasce, o mundo abre um espaço para ela. Eu nunca mais esqueci esta ideia. Agora, com as notícias terríveis, e quase diárias, de mortes de conhecidos, amigos e parentes, as palavras do meu mestre reviram-se em meu sofrimento, voltam desdobradas em nova questão. Pergunto-me sobre os espaços que ficam vazios no mundo, com tantas partidas repentinas, antes do tempo. Que fazer destes buracos, destes ocos, destes vãos, destes vácuos? Gilmar de Carvalho, por exemplo, ao nascer, tinha seu quinhão de espaço no mundo, e nem precisava de muito. Mas ao crescer e tornar-se adulto, foi, com seus ombros estreitos e seu corpo franzino, alargando esse espaço em suas andanças pelo meu Ceará. Em cada livro, cada orientação de aluno, cada conversa com rendeiras, emboladores, repentistas, cada café e bate-papo com amigos, ia escavando picadas, veredas, vales, planícies. Aos 70, sem se dar conta, tinha já aberto um cânion.

Por certo, Bragança teria melhor resposta e reflexão a fazer sobre o caso dos espaços vazios deixados agora no mundo. Mas, na solidão do confinamento e na urgência de cada um de nós, a de entender como viver agora sem nossos próximos, a aluna tateia, engatinha, esboça uma saída para o problema filosófico. Talvez, é o que espero, estes vazios abismais, para onde olhamos agora e que nos olham de volta, vão, aos pouquinhos fechando sua grande boca. Do escuro, hão de voltar não ecos, mas sussurros, risos, fragmentos de horas de folga de outros dias, no passado. Naquele dia com Gilmar, naquele dia com a Sandra, naquele dia com Araci, naquele dia com o Manuel, naquele dia com a Gal, naquele dia com. Os nomes dos meus mortos vão saltar de dentro do abismo do meu luto, vão transformar-se em histórias amorosas. Parece que foi ontem. E foi.

O cânion que abriu Gilmar, por exemplo, não se fecha com a partida dele. O mundo vai retomar um pedaço, vai mordiscar as bordas do terreno, vai enterrar uns canteiros para obras. O mundo não para, não. O essencial ele não leva. No seu espaço, o professor teve tempo de plantar ideias novas na mente de seus alunos, de escrever livros que serão lidos, relidos, reeditados, de iniciar pesquisas que serão completadas, de deixar escritos que ainda vão ser revelados, de inspirar pessoas, de construir afetos, de fazer um magote de amigos para além dessa vida. Sandra teve tempo de criar os filhos, agora grávidos de netos seus e que terão, ao nascer, um espaço de amor em família, o costume das tapiocas e cafés e das entreajudas, nisso era ela campeã. Araci deixou-nos ontem com as mãos cheias de presentes que ela mesma confecionava, quadros que ela pintava lindamente e, principalmente, o feito de ter aberto um espaço inédito para seu tempo, o da primeira mulher engenheira do Ceará. Gal, outra pioneira, abriu espaços largos como atriz, pintora, mas, de todas as formas, como o ser humano lindo que era.

Estes fazeres, pensares, dizeres, contares não partem com nossos afetos, não se perdem no enorme buraco do vazio que deixam seus donos. Não têm carne, ossos, sangue que se transformem em pó, mas existem, têm eles também um lugar, uma forma de existência. São plantas, galhos, troncos, sementes que foram jogados no terreno. Rizoma que germina, desenvolve-se, conecta-se no solo do mundo. Por isso, os cânions abertos transformar-se-ão em canteiros. No lugar das bordas escarpadas, falésias altíssimas, abismos colossais do nosso luto, teremos um jardinzinho florido para a Sandra, uma paisagem de girassóis para Araci, uma praia de areia finas e alvas, além de um coqueiral para a Gal, uma Caatinga sertaneja para o Gilmar. Embora ainda não dê para ver, olhos embaçados demais, espero um dia caminhar por estas trilhas, encontrar pedrinhas deixadas a propósito aqui e ali, fotos desbotadas de dias inesquecíveis, velhos postais de viagens, cartões de aniversários, cartas de reconciliação, botões e flores secas dentro de livros, escapulários, mechas de cabelos. Para cada coisinha, risos, gargalhadas, comentários, um desfiar de histórias. Pequenas ou grandiosas, histórias apaziguadas, elas também abrindo um novo lugar nesse mundo de meu Deus.

Ariadne Araújo é jornalista

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