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100 anos de folia: as histórias do Carnaval brasileiro
Reportagem Especial

100 anos de folia: as histórias do Carnaval brasileiro

No segundo ano consecutivo sem carnavais de rua por causa da pandemia, o Vida&Arte traça um histórico dos anos marcantes para a tradição no decorrer das décadas

100 anos de folia: as histórias do Carnaval brasileiro

No segundo ano consecutivo sem carnavais de rua por causa da pandemia, o Vida&Arte traça um histórico dos anos marcantes para a tradição no decorrer das décadas
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“Não há tristeza que possa/ Suportar tanta alegria/ Quem não morreu da espanhola/ Quem dela pôde escapar/ Não dá mais tratos à bola/ Toca a rir, toca a brincar”, entoava uma popular marchinha de Carnaval que percorreu as ruas do Rio de Janeiro em março de 1919. Os foliões tentavam, naquela época, encontrar diversão em meio à tragédia que haviam presenciado nos últimos meses.

Entre outubro e novembro do ano anterior, a antiga capital federal tinha se tornado um “vasto hospital”, como a "Gazeta de Notícias" noticiou, por causa da gripe espanhola. A doença matou aproximadamente 40 mil pessoas no Brasil, sendo 1/4 das vítimas do Rio de Janeiro. O País enfrentou um colapso no sistema de saúde com a falta de leitos e a abertura de hospitais de campanha. As funerárias também não conseguiam dar conta da quantidade de mortos, o que fez com que corpos fossem largados no meio da rua e homens de quaisquer profissões fossem obrigados pela polícia a sepultar cadáveres.

Maracatus, como o Rei Zumbi, em desfile na avenida Domingos Olímpio antes da pandemia, que tirou o Carnaval das ruas desde 2021(Foto: Aurélio Alves/ O POVO)
Foto: Aurélio Alves/ O POVO Maracatus, como o Rei Zumbi, em desfile na avenida Domingos Olímpio antes da pandemia, que tirou o Carnaval das ruas desde 2021

Só que, em poucos tempo, a população obteve uma imunidade em rebanho - e muitos pesquisadores até hoje tentam explicar exatamente o que aconteceu. Os que sobreviveram adiantaram as festas carnavalescas para comemorar que estavam vivos: a partir daquele momento, ninguém sabia se sobreviveria ao dia seguinte, então que pelo menos a vida fosse celebrada. O bloco Cordão do Bola Preta - um dos mais tradicionais da cidade carioca - desfilou pela primeira vez. Todos usavam roupas típicas espanholas e se valiam de “artimanhas” para conquistarem uns aos outros. Comerciantes, que estavam com suas atividades paradas por causa da epidemia, esgotaram seus estoques de lança-perfume e fantasias. Perucas também foram vendidas a quem estava careca, porque uma das sequelas da doença era a perda de cabelo.

“Quem não morreu sentiu-se no dever de celebrar a vida, brincando o Carnaval como nunca antes. A cidade saiu em peso para os corsos, ranchos e batalhas de confete. Os pierrôs e caveiras não se contentavam em pular — invadiam as casas e arrastavam os renitentes para a folia. Pela primeira vez, o samba superou os outros ritmos nas ruas”, escreveu o jornalista e cronista Ruy Castro em texto divulgado no site da Academia Brasileira de Letras. Era, assim, uma tentativa de encontrar felicidade apesar da tragédia e do luto que acometeram a sociedade no período.

Muitos paralelos podem ser traçados com os dias atuais. Estamos em uma pandemia que vitimou mais de 640 mil pessoas no País. Depois de um longo período com o sistema de saúde colapsado, os brasileiros retornaram a uma certa normalidade por causa da vacinação. Mas muitas festividades continuam restritas para não haver o aumento do número de casos. Uma delas é o carnaval de rua, que foi proibido de acontecer pelo segundo ano consecutivo. E, enquanto os cidadãos não podem festejar a vida e a própria sobrevivência ao coronavírus, o Vida&Arte traça um histórico de momentos importantes do Carnaval para lembrar que, um dia, voltaremos a dançar nas avenidas. De 1919 a 2022, veja as resistências, as comemorações e as histórias que marcaram a tradição no Brasil.

 

 

O Carnaval em Fortaleza: um percurso histórico

Em paralelo aos marcos históricos do carnaval brasileiro, as festividades carnavalescas em Fortaleza também adotaram suas próprias práticas

No início do século XX, Fortaleza era uma cidade ainda provinciana em relação às outras capitais. E isso também impactava na maneira como os fortalezenses comemoravam as festas de Carnaval. Até o período da belle époque - movimento de importação da cultura francesa no Brasil -, a capital conhecia majoritariamente os entrudos, uma espécie de comemoração que acontecia entre familiares e amigos, mas não chegava a um público massivo.

Mas, em meados dos anos 1910, a região passou por um crescimento urbano, com novas instituições e edificações. “O carnaval da belle époque (ou carnaval veneziano) vai expressar uma dominância dos setores comerciais, ligados à exportação da borracha. Esse carnaval representa uma maior fidelidade dos cidadãos aos festejos carnavalescos”, explica Vanda Lúcia de Souza Borges, professora do o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e autora da tese de doutorado “Carnaval de Fortaleza: Tradições e Mutações”.

A partir daquele momento, iniciaram tradições como corsos, carros alegóricos, além de expressões artísticas que faziam críticas às políticas vigentes. “Eram festas públicas, feitas com as famílias da classe dominante. Também tinha festas em clubes de elite”, afirma a pesquisadora.

Foi na década de 1930 que Fortaleza passou a ter carnavais de rua, em que a população menos abastada podia não somente assistir, mas também elaborar suas próprias festas. Houve, por exemplo, a criação do bloco Prova de Fogo, em 1935, e o maracatu Az de Ouro, em 1936. “Foi nesse período que surgiu o carnaval popular. Até então, os eventos eram de iniciativas das classes mais abastadas em nossa cidade provinciana… A festa ganha contornos populares, com participação do povo, que vai dividir o palco com as classes dominantes”, indica.

Az de Ouro foi um dos primeiros grupos de maracatu no Ceará(Foto: Divulgação/Maracatu Az de Ouro)
Foto: Divulgação/Maracatu Az de Ouro Az de Ouro foi um dos primeiros grupos de maracatu no Ceará

Além de tirar a exclusividade das pessoas ricas, as agremiações trouxeram uma inovação estética. “O carnaval de Fortaleza deve ser pensado a partir desse conjunto de influênicas que vinha das maiores cidades do Brasil. Aqui era uma extensão da festividade que foi se consolidando como uma expressão de caráter nacional e de participação popular, que fundou essa noção de integração e nacionalidade”, avalia Vanda Lúcia.

Segundo ela, o maracatu, por exemplo, inova nas fantasias, nas vestimentas, na dança e na música que eram vistas durante os eventos carnavalescos da primeira metade do século XX. Os grupos, inspirados pela cultura afrobrasileira, tinham o objetivo de valorizar as pessoas negras e sua história no País. No começo, essas manifestações não eram tão bem aceitas pelas classes dominantes, mas foram ganhando seu espaço na imprensa e nas tradições fortalezenses.

“As agremiações que surgiram na década de 1930 e que sobrevivem até hoje dão a identidade do carnaval de rua de Fortaleza. Não é a maior parte dos brincantes atualmente que integra essas manifestações, porque apareceram outras formas de brincar, como os trios elétricos, mas elas constituem a imagem do carnaval de Fortaleza”, diz.

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Vozes da África: 40 anos de Carnaval

O maracatu Vozes da África foi fundado em 1980 com o objetivo de tornar a manifestação cultural em um espetáculo

O carnavalesco Márcio Santos trocou o samba pelo batuque depois que conheceu o maracatu. Ele já participava de uma escola de samba e era encantado pelo carnaval e pelas tradições folclóricas. Quando descobriu o Vozes da África, onde atualmente trabalha como vice-presidente, não pôde evitar o encantamento. “Me apaixonei pelo maracatu e sempre me dividia entre o samba e o batuque. Até que eu decidi ficar no maracatu e estou aqui desde 1996”, explica. O grupo do qual começou a fazer parte era tradicional em Fortaleza, porque foi fundado no início da década de 1980 e é um dos responsáveis por tornar a manifestação cultural em um espetáculo.

Com mais de 40 anos em atividade, tudo começou quando intelectuais, escritores, poetas, folcloristas e carnavalescos, sob liderança do jornalista Paulo Tadeu Sampaio de Oliveira, decidiram criar o Vozes da África. A data de fundação era representativa: 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. O nome do grupo também era simbólico, porque fazia relação com o poema homônimo de Castro Alves, que trata sobre as violências e as condições precárias que os negros enfrentaram durante a escravidão.

Na primeira apresentação pública, conquistou o título de campeão do carnaval de rua da capital cearense. O tema do desfile era “Alquatune, a Princesa Africana”, que contava a história da princesa africana que foi escravizada no Brasil e, posteriormente, virou uma importante líder quilombola no Quilombo dos Palmares. Ela, que foi avó materna de Zumbi dos Palmares, consolidou um espaço de resistência com seus conhecimentos estratégicos e políticos.

Vozes da Africa desfilava todos os anos no carnaval de Fortaleza antes da pandemia(Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita Vozes da Africa desfilava todos os anos no carnaval de Fortaleza antes da pandemia

“No início dos anos 1980, nós tínhamos quatro ou cinco grupos de maracatu. Essa manifestação já estava mais fria. Aqui estavam muito fortes as escolas de samba, mas não existiam tantos grupos de tradição folclórica. Então o Vozes da África foi pensado para não ser somente um espetáculo durante os carnavais de rua, mas que estivesse presente em outros momentos”, explica Márcio Santos.

Por causa disso, a agremiação participou de eventos em outras regiões do Brasil, como Brasília, Recife, São Luís e Florianópolis. O grupo ainda foi para países estrangeiros, como Uruguai, Paraguai, Espanha, Bélgica e Finlândia. Em 2005, por exemplo, representou o País no “Festival Des Folklores du Monde”, na França, e se consagrou como o único maracatu cearense a se apresentar no exterior.

O objetivo é, portanto “quebrar preconceitos”, assim como diz seu vice-presidente. Ao levar a manifestação cultural de origem afrobrasileira para outros lugares e extrapolar os limites do carnaval, reafirma as tradições que valorizam os negros.

Sobre a importância do maracatu para o Ceará, Márcio Santos comenta: “Durante muito tempo, dizíamos que não existia negro no Ceará. Hoje o maracatu, que é um patrimônio imaterial da cidade, é uma representação da cultura negra no Estado e quebra essa ideia de que aqui não tem negro. A importância é essa: de reafirmar que nós existimos”.

No atual momento, porém, o carnavalesco identifica todas as dificuldades que o grupo passa para se manter ativo. Com dois anos sem apresentações por causa da pandemia, ele critica a falta de apoio governamental. “Compreendemos a situação que estamos vivendo, mas estamos em uma situação complicada. Vemos um descaso do poder público. Hoje o grupo se mantém por meio de instituições como o Sesc. Temos uma exposição no RioMar Kennedy e estamos procurando outros parceiros. A dificuldade nos ensinou que não podemos só esperar o poder público”, afirma.

Ele e todos os membros sentem saudades do que antes era recorrente: o acolhimento do público, a movimentação do barracão e a vivência diária. Mas, quando todos puderem voltar para a avenida, o Vozes da África já tem seu tema do desfile: água. “No próximo enredo, a gente vai falar sobre a água, para lavar todo esse passado e todas essas coisas ruins. Vamos falar das águas do planeta, do mar, de Iemanjá e de Oxalá”, indica.

E, enquanto o grupo permanece sem suas atividades cotidianas, Márcio Santos persiste em seu trabalho que considera uma missão. “Minha formação, apesar de eu ter uma formação acadêmica em História, foi no barracão. Hoje me reconheço como artista plástico e em várias outras áreas dentro do grupo. É onde me reconstituí como pessoa. O maracatu é a minha vida”.

 

 

As relações com o maracatu cearense

Catherine Furtado, doutora em Educação e professora do curso de Música da Universidade Federal do Ceará (UFC), conheceu o maracatu há 15 anos. Em texto, ela escreve sobre sua trajetória como brincante e como pesquisadora de percussão popular

Quando penso nos meus 15 anos de trajetória como batuqueira, professora, pesquisadora e carnavalesca, eu sinto que o trecho dessa loa me banha de alegria e com a força dos tambores. “O Batuque Meu” é uma loa de autoria de Descartes Gadelha e Bênson Queiroz, feita para o maracatu Rancho Alegre no carnaval dos anos 1960. Eu a conheci na interpretação da cantora Inês Mapurunga em seu livro-musical “Maracatus, Afoxés, coroações, rezas e outros batuques” (2016) e em suas apresentações em palco. Foi assim a sensação quando comecei a batucar nos grupos de maracatus da cidade de Fortaleza.

Fui apresentada pelo nosso estimado griot (difusor de tradições) Descartes Gadelha em uma oportunidade de irmos juntos ao Maracatu Solar. A riqueza das cores, dos diversos tambores e da entrega artística das pessoas foi um embalo de encantamentos. Maravilhada pelos sons, entre graves e agudos dos diversos tambores, eu acredito que foi daí que os maracatus passaram a tocar todos os dias dentro de mim, de noite e de dia.

Nos ensaios carnavalescos, eu entendi que não tocava apenas um instrumento musical, mas que, na verdade, aquele instrumento musical, o Tambor, reverberava toda a cena musical, dramática, histórica e cultural da nossa sociedade brasileira. E, sim, somos resistentes e criatives! Além disso, a música percussiva possibilita de forma direta, lúdica e vibrante uma conexão profunda com nossa ancestralidade. Então, de forma geral, foi nesse traçado que caminhei nas encruzilhadas dos tambores carnavalescos.

Catherine Furtado, professora de música da UFC e percurssionista, fala sobre sua relação com o maracatu(Foto: Rômulo Santos/Arquivo Pessoal)
Foto: Rômulo Santos/Arquivo Pessoal Catherine Furtado, professora de música da UFC e percurssionista, fala sobre sua relação com o maracatu

Nessa possibilidade, a inspiração, a partir dessa ambiência cultural trazida diretamente pelo tambor, pelo carnaval e pelo maracatu, me possibilitou cultivar a percussão nos espaços acadêmicos como, em especial, no curso de Música da UFC, local onde atuo como professora de percussão, e no projeto de extensão Grupo de Música Percussiva Acadêmicos da Casa Caiada da UFC, onde atuo na regência artística. É nessa realidade que os Saberes Percussivos saem das minhas pesquisas como, por exemplo, na minha tese de doutorado sobre “Os saberes percussivos nas escolas públicas da cidade de Fortaleza”, e ganham prática em ressoar o abraço da academia e da comunidade, que é algo tão necessário à nossa educação musical.

Com isso, o ensino e a aprendizagem através das trocas da oralidade, corporalidade, improviso e a presença de mestres e maestras da cultura no espaço educativo ganham a construção de um fazer artístico criativo e com influências diretas da nossa cultura afro, afro-brasileira, nordestina e indígena. E isso é o que nos mostra a escola do nosso maracatu, que, de forma rica e contínua, nos atravessa todos os anos com seus diversos temas dos desfiles, batucadas em sua diversidade de ritmos e andamentos, características plurais e singulares da nossa musicalidade do maracatu cearense.

Explorar essa diversidade em pesquisa e como brincante é priorizar uma atitude compromissada na relação ciência e a arte como uma necessidade séria e fundamental para o desenvolvimento crítico, intelectual e artístico de todo ser humano, por isso, a música percussiva e todo seu contexto afro-brasileiro é ato artístico, científico e social para nossas bases educativas.

Maracatu Obalomi em desfile de carnaval em 2020, o último antes da pandemia(Foto: Aurelio Alves/ O POVO)
Foto: Aurelio Alves/ O POVO Maracatu Obalomi em desfile de carnaval em 2020, o último antes da pandemia

Sabemos que ainda estamos em período da pandemia e isso nos coloca em cuidados obrigatórios para não realizarmos aglomerações características de um momento carnavalesco, mas isso não nos impede de manter a reverberação de uma obra artística pulsante e com Asè dentro de nossas memórias e sustento na ciência que as vacinas salvam e que esse período passará.

É perceber que, com isso, o toque de um tambor é articulado com os sonhos, desafios e criações de uma comunidade. E que, nessa construção, é preciso, sim, apoio financeiro e reconhecimento dessa grande obra que é uma escola carnavalesca e que nos traz nos seus mais diversos espaços físicos, como nas ruas e nas avenidas, o abrilhantamento da nossa cultura.

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