Sua pelagem era marrom clara, com faixas mais escuras ao redor dos olhos e ao longo do dorso que reluzia sob a luz artificial do estábulo. À primeira vista, era só mais uma cabra recém-nascida. Sua expressão calma não condizia com o significado que esse nascimento tinha.
Naquele cercado, com olhares atentos, ela representava um feito científico inédito: após três anos de pesquisa na Universidade de Fortaleza (Unifor), Gluca se tornava o primeiro clone de cabra da América Latina.
Gluca foi o primeiro clone geneticamente modificado da América Latina. Ela faleceu em 2023, após nove anos sendo um dos focos da pesquisa de clonagem da Unifor.
Ela não é apenas um animal replicado, mas o ponto de partida de uma pesquisa pioneira na produção de biofármacos a partir do leite, com o objetivo de revolucionar o tratamento de doenças raras e até mesmo o câncer.
A clonagem altera o código genético do animal para incluir um transgênico e produzir esses tratamentos, já que os biofármacos são proteínas complexas que não podem ser produzidas em laboratórios. Eles precisam de organismos vivos para sua produção.
No caso de Gluca, a modificação feita no DNA permite que o leite do caprino sirva como veículo de produção de proteínas terapêuticas contra as doenças.
A espera foi longa, de 2011 até o dia 27 de março de 2014. O nascimento de Gluca aconteceu por meio da iniciativa dos pesquisadores Marcelo Bertolini, Luciana Bertolini e da equipe do Núcleo de Biologia Experimental (Nubex), da Unifor.
Eles são animais comuns: nascem, crescem, às vezes acasalam, enfrentam a velhice e encerram o ciclo natural. Gluca passou por essa trajetória.
Em 2020, ela se juntou à Dolly, o primeiro animal clonado do mundo. A cabrinha faleceu, mas antes deu início a um rebanho repleto de clones e outros filhotes. Alguns mais diferentes, com cores e tamanhos diversos. Já outros, apenas se diferem por uma marquinha no focinho.
Hoje, existem mais de 70 animais sob a responsabilidade da Nubex, dos quais 15 são clones.
“Tudo está voltado em torno dessa pesquisa relacionada à produção de biofármacos no leite do caprino geneticamente modificado”, explica Leonardo Tondello, pesquisador do projeto e professor da Unifor.
O grupo de pesquisa da Unifor, ao longo dos anos, produziu diferentes moléculas (biofármacos) para diversas aplicações, e uma delas foi a molécula glucocerebrosidase para o tratamento da doença de Gaucher.
Uma das moléculas (biofármacos) desenvolvidas e testadas pelo grupo é um anticorpo monoclonal, o anti-VEGF, destinado ao tratamento oncológico em humanos.
Este anticorpo anti-VEGF combate diversos tipos de câncer, como de pulmão, ovários e cólon (colorretal).
O mecanismo de ação do anti-VEGF envolve a inibição da vascularização dos tumores, o que impede que eles recebam nutrientes e continuem crescendo.
A princípio, o leite de Gluca seria usado na produção de um medicamento para a doença de Gaucher – causada por uma alteração genética que leva à deficiência na produção da enzima glicocerebrosidase –, mas os objetivos foram logo ampliados.
A proposta faz parte de uma linha de investigação que busca produzir medicamentos que possuem alto custo a partir de animais geneticamente modificados.
O objetivo é reduzir os gastos com a importação desses fármacos e ampliar o acesso da população a tratamentos mais eficazes.
Com os custos tão altos, o Sistema Único de Saúde (SUS) enfrenta dificuldades para custear os tratamentos. Na prática, apenas pacientes com alto poder aquisitivo conseguem arcar com eles de forma individual.
Mas enquanto laboratórios como o Nubex apostam na clonagem como ferramenta para a produção de biofármacos, esse mesmo processo já vem sendo utilizado, em outra frente, como estratégia de mercado.
Entre as principais técnicas usadas para produzir animais geneticamente modificados, duas se destacam: a injeção de pronúcleo e a clonagem. É nessa segunda que se insere um processo que, embora complexo, já faz parte da rotina de muitos laboratórios ao redor do mundo.
Apesar de envolver técnicas sofisticadas e ainda em constante aperfeiçoamento, a clonagem já é utilizada comercialmente no Brasil e em diversos países.
Distante das aplicações medicinais, a clonagem comercial ocupa um espaço expressivo no mercado de animais de elite. Clones de cavalos atletas mais rápidos e com físico definido, bovinos de alto padrão que valem milhões, ovinos e caprinos com melhor qualidade.
Retira uma célula do animal que se deseja clonar. Ela então é fundida a um óvulo, que funciona como um motor biológico, iniciando o desenvolvimento embrionário.
O embrião é implantado no útero de uma fêmea que atua como barriga de aluguel. A partir daí tem início uma gestação comum, que ao final dará origem a um clone.
Na ponta do lápis, os custos envolvidos muitas vezes justificam a escolha. Clonar um animal pode sair mais vantajoso do que adquirir um exemplar natural, já que o clone, uma vez registrado, passa a ter existência própria e valor de mercado, podendo inclusive ter sua genética comercializada.
De acordo com Leonardo, embora o processo de clonagem ainda tenha um custo elevado, ele se torna relativamente acessível diante do valor dos animais originais.
“Você tem no Brasil hoje uma vaca que vale R$ 24 milhões. Um clone custa cerca de R$ 100 mil. Então, com esse investimento, você cria uma cópia geneticamente idêntica de uma vaca que vale 24 milhões”, comenta.
No cenário global, as pesquisas envolvendo clonagem avançam em outra direção: a tentativa de trazer de volta espécies extintas. Recentemente, a empresa americana Colossal anunciou avanços no projeto de “reviver” o chamado lobo-terrível. Uma espécie marcada pelo seu grande porte e que se tornou símbolo da série americana Game of Thrones.
O principal foco, no entanto, é a ressurreição do mamute-lanoso. Mas não se trata apenas de trazer um animal extinto de volta à vida; o objetivo é criar um elefante adaptado ao frio, com características biológicas tão próximas às do mamute que ele possa se parecer, andar e até mesmo soar como um. A ambição é que essa nova criatura possa, um dia, reassumir o papel ecológico que seus ancestrais desempenharam.
Contudo, a viabilidade desse projeto ainda enfrenta desafios significativos, dependendo da obtenção de DNA de mamute em bom estado e da disponibilidade de óvulos e úteros compatíveis capazes de sustentar a gestação de um animal tão grande e geneticamente híbrido.
O professor de Medicina Veterinária da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Vicente Freitas, compartilha que, no caso da empresa Colossal, o maior retorno para sociedade seria provar que a clonagem pode ser usada para salvar da extinção as espécies que correm risco atualmente.
A Colossal também argumenta que trazer o mamute de volta ajudará a aumentar a resiliência de habitats às mudanças climáticas e a conservar elefantes modernos. Além disso, eles possuem o objetivo de criar uma espécie de parque Jurassic World, no sul do Canadá, onde seriam criados os mamutes clones obtidos.
Apesar da iniciação desse plano com o lobo-terrível, que compartilha semelhanças milenares de seu ancestral, a União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN) se pronunciou formalmente que os espécimes obtidos com aparência de lobo-terrível não se tratam da espécie original.
Por meio de sua comissão específica para canídeos, a IUCN disse que o feito "não contribui para a conservação" ou para restabelecimento de ecossistemas.
Para Luciana Melo, professora e pesquisadora da Uece, o propósito desses projetos não é ecológico. Ela questiona: "Até que ponto essas pesquisas em engenharia genética visam realmente avanços em conservação? Por qual motivo estão sendo realizadas com animais já extintos? Em minha opinião, a resposta é: marketing".
Luciana também enxerga que a proposta de fazer um "Jurassic World" é estritamente comercial. Ela acredita que criar esse tipo de animal e ambiente de fato requer discussões éticas. Mas não porque os animais correm risco de não serem bem tratados ou de morrerem, mas pelo fato de estarem criando novos organismos.
“Estamos dominando cada vez mais as técnicas que permitem modificarmos virtualmente qualquer organismo, existe algum limite ético?”, questiona.
A pesquisa da Colossal também gerou preocupação com a "desextinção" – o processo de trazer animais extintos de volta. Essa iniciativa poderia banalizar a extinção, diminuindo a urgência em proteger as espécies que já estão em risco, sob a premissa de que poderiam ser "recriadas" no futuro.
Luciana, no entanto, discorda: “Eu realmente não acho que são essas pesquisas que irão desacelerar as ações em preservação de ecossistemas mas, se pensarmos bem, elas amenizam o peso ou desconforto que deveríamos sentir sobre nossa impotência nessas ações de preservação”.
O professor Vicente acredita que, apesar de ser um “feito extraordinário” trazer os mamutes de volta, ainda existem centenas de espécies que estão em risco de extinção. “É para essas espécies deveriam estar voltados nossos esforços”, destaca.
A Uece iniciou suas pesquisas com clonagem com um projeto voltado para a obtenção de caprinos transgênicos. A Professora Luciana está envolvida e é a responsável técnica pelo Laboratório de Conservação de Cervídeos Neotropicais (Laccerne).
Assim como na Unifor, o objetivo era que esses animais produzissem uma proteína humana (hG-CSF) em seu leite, para ser usada na fabricação de medicamentos.
Essa proteína é utilizada no tratamento de doenças que causam queda de imunidade, como aids e neoplasias. Apesar de conseguirem os animais transgênicos, embriões e algumas gestações, nunca foram capazes de obter animais clones vivos nesse contexto.
O veado-mateiro, ou veado-catingueiro, espécie do Ceará, corre alto risco de extinção por perda de habitat em áreas de serra como Guaramiranga.
Agora o projeto iniciou a pesquisa de clonagem de cervídeos, com foco no veado-mateiro (Mazama gouazoubira). “Nossas pesquisas visam conservar o material genético que está, quase que inevitavelmente, sendo perdido”, explica Luciana.
A esperança do Laccerne é que a técnica de clonagem possa ser utilizada futuramente em espécies que correm risco no momento.
Paralelamente, o projeto Bancco Bioceres coleta e criopreserva células de cervídeos resgatados no Ceará, servindo como um biobanco para conservação do material genético. Essas células podem ser usadas para estudar a diversidade genética e potencialmente para clonagem de indivíduos que vieram a óbito.
Mas o processo enfrenta desafios específicos que a pesquisa busca superar. Como explica a professora, a clonagem interespecífica, feita entre espécies diferentes, é mais complexa do que a de animais domésticos, já que, na maioria dos casos, não há exemplares da espécie original sob cuidados humanos, como em criadouros ou em zoológicos.
“Transferir para espécies domésticas próximas traz obstáculos como o tempo de gestação: cabras têm gestação de 5 meses, vacas tem 9 meses e cervídeos tem 7 meses. Então essa etapa torna-se complexa, requerendo recursos financeiros e parcerias adicionais”, completa.
O Laccerne também recebe cervídeos resgatados pela polícia ambiental (BPMA-CE) e pelo Instituto Pró-Silvestre (IP). “Alocamos, damos suporte emergencial e coletamos amostra para identificação e criopreservação”, explica.
Luciana pontua que, como proposta de conservação, essa ação contribui com o fortalecimento do Biobanco ao resguardar o material genético que estão perdendo a todo momento.
“Certamente eles são muito promissores para estudos genéticos e citogenéticos, ou quando associados a biotécnicas como a clonagem, em sua versão atual, ou com melhorias que ainda estão por serem descobertas”, finaliza.