Desde o século XVII, quando navegadores holandeses e indígenas da etnia potiguara se encontraram pela primeira vez onde hoje é a Praia de Iracema, essa parte tão icônica da cidade de Fortaleza se constitui como elo entre diferentes povos e gerações.
O bairro tal como o conhecemos hoje foi batizado por meio de um concurso realizado na década de 1930, quando passava sua primeira grande transformação. A homenagem à indígena Iracema, personagem do escritor cearense José de Alencar, ocorria ao mesmo tempo em que as famílias de pescadores, que chamavam o local de Praia do Peixe, começavam a dar lugar às casas de veraneio.
Vieram a Segunda Guerra Mundial e os norte-americanos, seguiu-se o avanço do mar sobre a praia, na pós-construção do Porto do Mucuripe, e alternaram-se momentos de frenesi boêmio e outros de completo abandono. Até que, no início da década de 1990, um pacajuense de nascimento, mas fortalezense de alma (e, mais recentemente, com direito à título oficial), resolveu fazer do bairro casa e local de trabalho.
O ator, dramaturgo e produtor cultural Carlos Rinaldo Costa Moreira, o Carri Costa, já conhecia a Praia de Iracema, desde a adolescência, quando saía com os amigos da Piedade até lá para ver o mar, se divertir e fazer arte. “Era um local fabuloso. O mar para mim sempre foi muito apaixonante. Era também um local de entretenimento, para o qual a gente podia se deslocar seguindo numa rua só, que era a João Cordeiro”, relembra.
“No momento em que eu estava desenvolvendo o meu trabalho enquanto artista iam para lá todos os boêmios e as pessoas das artes da nossa cidade”, prossegue Carri Costa. “Ali era o local onde eu via um espaço para fruição daquilo que eu queria enquanto artista: de ter um espaço cultural e teatral, onde eu pudesse morar também”, acrescenta ao narrar o momento em que decidiu se mudar para o imóvel, em 1993, onde fundaria o Teatro da Praia.
A época da fundação do Teatro da Praia coincidiu com outra grande transformação no bairro, que foi a construção do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), inaugurado oficialmente em 1999. O complexo cultural e turístico não veio sem controvérsia e o artista observou e observa com olhar crítico todo esse processo.
“Os nossos embates com o Dragão do Mar foram gigantes. Ele chegou aqui, a princípio, com intenções interessantes e a gente abriu diálogo, mas ele interferiu profundamente nas questões urbanísticas e, de repente, boa parte do bairro ficou abandonada. Tudo se voltou para o entorno do Dragão do Mar”, queixa-se Carri.
"Era um local fabuloso. O mar para mim sempre foi muito apaixonante. Era também um local de entretenimento, para o qual a gente podia se deslocar seguindo numa rua só, a João Cordeiro"
Nos poucos mais de 20 anos que se seguiram, novamente a Praia de Iracema oscilou entre momentos de um aparente renascimento como referência cultural e boêmia da cidade e outros de ostracismo, até chegarem os atuais tempos pandêmicos.
“A única coisa que podemos fazer é fortalecer esse orgulho de ser fortalezense, por meio da valorização daquilo que fomos e de onde viemos”, defende com a propriedade de quem travou diversas lutas, sem perder a ‘molecagem’ típica desse chão.
Uma síntese da cidade. Nasci, como quase todo mundo, em um hospital, mais precisamente no Centro. Ao longo dos 37 anos seguintes, perambulei de forma quase itinerante por diversos bairros. Há pouco mais de dois anos eu, a Rafaela e o nosso filho, Júlio, passamos a viver no Mondubim, o bairro mais populoso de Fortaleza. Desconhecido da maioria dos fortalezenses, ele é, no entanto, uma síntese dessa cidade que é ao mesmo tempo urbana e rural, desenvolvida e abandonada, local de muita vida, mas também de dor. Um local de passagem e de permanência.
* Repórter de economia do O POVO
Especial mostra a relação das pessoas com Fortaleza, a partir de duas perspectivas: um inventário amoroso-geográfico e as transformações da cidade