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Modernidade ou precarização? Trabalho "flexível" impacta a saúde mental dos brasileiros
Reportagem Seriada

Modernidade ou precarização? Trabalho "flexível" impacta a saúde mental dos brasileiros

Ministério do Trabalho impôs responsabilidade das empresas na prevenção e cuidado dos funcionários, em meio a um cenário de aumento de afastamentos por depressão, ansiedade e demais problemas. Ao mesmo tempo, leis consolidadas tornam-se mais escanteadas e novas relações de trabalho surgem, em uma quebra histórica no trabalhismo brasileiro
Episódio 4

Modernidade ou precarização? Trabalho "flexível" impacta a saúde mental dos brasileiros

Ministério do Trabalho impôs responsabilidade das empresas na prevenção e cuidado dos funcionários, em meio a um cenário de aumento de afastamentos por depressão, ansiedade e demais problemas. Ao mesmo tempo, leis consolidadas tornam-se mais escanteadas e novas relações de trabalho surgem, em uma quebra histórica no trabalhismo brasileiro
Episódio 4
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Abordagens da psicologia defendem o trabalho como “construtor da identidade do indivíduo”, enquanto teorias da sociologia o consideram uma maneira de demonstrar habilidades, superar obstáculos e contribuir para o desenvolvimento. O trabalho seria a base do valor e da existência humana. Como poderia, então, ter se tornado para muitos sinônimo de desgaste dela?

Mudança no mundo do trabalho impactou saúde mental dos funcionários(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Mudança no mundo do trabalho impactou saúde mental dos funcionários

Da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) até os dias atuais, os brasileiros conquistaram direitos como férias, salário mínimo, aposentadoria e licenças. Ao mesmo tempo, a tecnologia evoluiu, assim como a ciência e a saúde pública, o que facilitou - em teoria - algumas tarefas, agilizou processos manuais e assegurou um maior cuidado médico aos funcionários.

No entanto, especialistas indicam que a “modernidade” confunde-se muitas vezes com “precarização”. As leis estabelecidas ganharam possibilidades de flexibilização, com novas formas contratuais e de negociação com os trabalhadores. O individualismo cresceu, o mundo acelerou, a demanda por emprego tornou-se frenética, ao mesmo tempo em que o esperado do trabalhador mudou.

Ainda que tenha defensores, o novo modelo expõe-se na saúde mental dos funcionários: as pressões provocadas por um conjunto de fatores e agentes retornam de forma tão individual como é o meio de produção. Os problemas chegam como uma avalanche e o efeito é solitário, como se acúmulos fossem naturais e esgotamentos sinais de fraqueza.

Normas recentes visam a atenuar este contexto, com maior responsabilização por parte de patrões e empresas quanto à saúde mental dos funcionários. Outras iniciativas incluem ações de prevenção na rotina ambiente corporativo. 

 

 

Norma do MTE implica responsabilidade nas empresas quanto à saúde mental

 

A saúde mental, em específico, foi incluída como parte do Gerenciamento de Riscos Ocupacionais  (GRO) em portaria do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), implementada a partir de 26 de maio de 2025. A medida atualiza a Norma Regulamentadora (NR-01), com foco nas atividades laborais.

A mudança implica uma responsabilização explícita das empresas com os “riscos psicossociais” dos funcionários, que envolvem assédio moral, sexual, jornadas exaustivas e quaisquer outras atividades que esgotem o trabalhador mentalmente.

 

Quais riscos estão incluídos na norma

 

 

Caberá às empresas a inclusão dos fatores de risco no GRO. A partir disso, deverão ser tomadas “medidas mitigatórias”, por meio de profissionais escolhidos. Eles cuidarão de metodologias de identificação, controle e eliminação dos riscos, com foco na escuta dos trabalhadores.

 

O que cabe às empresas quanto à saúde mental dos funcionários

 

Ao O POVO+, o ministro do trabalho, Luiz Marinho, afirmou que políticas públicas desta natureza - com a participação de empresas - envolvem longos e “complexos” debates, que circulam “um conjunto de necessidades e exigências por parte” dos empregadores.

Luiz Marinho garantiu que hverá presença da militância cearense na direção do PT(Foto: José Cruz/Agência Brasil)
Foto: José Cruz/Agência Brasil Luiz Marinho garantiu que hverá presença da militância cearense na direção do PT

“Estamos discutindo, buscando construir esse processo. As empresas têm de se preparar. Nós estamos imbuídos de criar melhores condições para o estado emocional das pessoas, buscando discutir um ambiente para a produção, independente de qual o tipo de trabalho: no banco, na loja, na indústria. Um ambiente saudável melhora a produtividade e evita doenças, especialmente mentais”, acrescentou o titular do MTE.

Ele ainda alegou que as discussões em vigor envolvem a própria natureza das jornadas e dos contratos, o que falaremos mais à frente. “O debate sobre a jornada está incluído. Por exemplo, como a jornada 6x1 influencia (na saúde mental dos trabalhadores)”, disse, reforçando que há “um conjunto de questões em construção pelo setor produtivo e do Governo Federal buscando debater (o tópico)”.

A discussão sobre saúde mental no trabalho incluída na norma não é inovadora, conforme defende Rogério Araújo, diretor do Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho da SIT/MTE. Ele considerou que a alteração na NR-1 “apenas incluiu expressamente os fatores de riscos psicossociais relacionados ao trabalho no GRO”.

“Ou seja, todas as organizações devem avaliar e controlar todos os perigos e riscos existentes na organização, incluindo os decorrentes de fatores de riscos psicossociais relacionados ao trabalho”, disse, explicando que “fiscalizações relativas a esses fatores de risco psicossociais relacionados ao trabalho já ocorrem e continuarão a ocorrer”.

A inspeção das empresas, segundo ele, funcionará nos locais de trabalho e envolverão entrevistas com trabalhadores e empregadores ou seus representantes e análise de documentos.

Rogério Araújo é diretor do Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho da SIT/MTE(Foto: Sindicato dos Auditores Fiscais do Trabalho)
Foto: Sindicato dos Auditores Fiscais do Trabalho Rogério Araújo é diretor do Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho da SIT/MTE

Há ainda direito a dupla visita, por parte dos órgãos fiscalizadores, no prazo de 90 dias a partir da entrada em vigor da norma. Segundo o diretor, na avaliação dos riscos psicossociais, em específico, "há uma ênfase na forma de gestão e organização do trabalho”.

O estabelecimento da norma traz a possibilidade de penalização administrativa contra o agente que descumprir o previsto nela. A empresa poderá ser multada, através de autos de infração pela não observância da NR-1.

Além disso, segue havendo possibilidades de punições judiciais movidas pelos próprios trabalhadores, conforme explica Raul Aguiar, presidente da Comissão de Direito do Trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Ceará (OAB-CE).

“O trabalhador pode buscar reparação por dano moral. Pode buscar responsabilização da empresa em face de uma uma doença mental que eventualmente contraia adquirida em razão do trabalho, já que a doença ocupacional é equiparada a acidente de trabalho”, explicou.

O advogado considerou que a norma indica uma “nova realidade”, a qual as organizações precisam estar atentas. “Hoje, grande parte dos processos tem relatado esses assédios de ordem moral ou sexual. A norma é uma mostra que o governo está antenado com essa questão e está sensível, porque realmente é um problema cada vez mais recorrente esse adoecimento mental do trabalhador”, disse.

 

 

Riscos psicossociais aumentam com a flexibilização do trabalho?

A norma foi proposta em um contexto de aumento exponencial de casos de afastamentos por problemas de saúde mental no Brasil. O ano de 2024 representou um índice inédito: 440 mil pessoas receberam autorização médica para afastamento do trabalho por estes motivos. Em 2023, o número era de 288 mil, o que representa um aumento de 67% em apenas um ano.

Questionado, o diretor Rogério Araújo ainda elencou diretrizes da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Organização Mundial de Saúde (OMS) como motivadoras da portaria. “As duas instituições defendem o desenvolvimento de ações concretas por parte dos governos, dos empregados e trabalhadores e da sociedade como um todo”, comentou o servidor do MTE.

 

Afastamentos/licenças por doenças mentais no Brasil, por ano

 

O estágio máximo de esgotamento no trabalho é chamado de burnout. Não necessariamente todos os afastamentos dos índices acima se referem a este problema, porém todo diagnóstico de burnout é acompanhado de afastamento.

Uma funcionária que preferiu não ser identificada relatou ter passado por episódios de mal estar sem diagnóstico após enfrentar acúmulo de funções devido a reestruturações da empresa em que trabalhava. Ela mantinha as próprias demandas, enquanto entregava outros produtos diários e quinzenais. Houve ainda um período em que intercalava funções em dois setores ao mesmo tempo.

O resultado foi, além dos mal-estares, pensamentos “catastróficos e obsessivos”, segundo ela mesma. “Eu pensava ‘e se eu fosse atropelada? Seria ótimo, pois aí não iria trabalhar’, ‘e se eu fosse assaltada?’, ‘e se eu batesse o carro?’. Tinha choros incontroláveis, acessos de raiva, problemas de pele, gastrointestinais…”, contou.

 

Problemas psicossociais no trabalho

 

A mulher iniciou um tratamento psicoterapêutico, mas logo encaminhou-se para um psiquiatra. O médico receitou medicação e pediu afastamento da funcionária. “Depois de um tempo, depois de outras sessões, depois de muita análise eu fui entender que o meu pedido de demissão de forma abrupta e sem negociação havia sido uma resposta a um burnout”, disse.

Janaína Melo é professora de saúde ocupacional na Universidade Estadual do Ceará(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Janaína Melo é professora de saúde ocupacional na Universidade Estadual do Ceará

Hoje, ela diz seguir em tratamento, mas com sessões não voltadas unicamente às consequências da crise no trabalho. Apesar disso, alegou não saber ao certo do estágio mental em que se encontra. A sensação de alerta constante a persegue, junto do receio de que a síndrome retorne. “Eu consigo dar mais valor a outros aspectos da minha vida, mas acredito que o burnout me marcou de uma maneira definitiva.”

A psicóloga Janaína Melo, professora substituta na Universidade Estadual do Ceará (Uece), elencou uma mudança na configuração de doenças mentais relacionadas ao trabalho ao longo dos anos. Ao adentrar o âmbito da saúde ocupacional, em 2012, ela atribuiu a maioria dos casos que recebia a professores, médicos e demais funcionários em regime exaustivo e/ou de plantão. “Hoje está generalizado”, disse.

Especialmente após a pandemia de Covid-19 a procura por ajuda psicológica direcionada a problemas no trabalho teria aumentado, conforme a percepção dela. Isso porque, ainda que haja diversas causas, a psicóloga citou dois grandes motivos como causadores de crises no trabalho: assédios - morais e/ou sexuais - e jornadas excessivas de trabalho.

“A pessoa não vai apresentar o problema do nada. O problema vem de todo um contexto de trabalho exploratório ou em excesso que faz com que a pessoa desenvolva transtornos de saúde, físicos, mentais ou algum tipo de síndrome como é o burnout”, disse.

A psicóloga estimou que o número crescente de problemas mentais no trabalho pode ser até maior devido ao medo de perder o emprego e à alta concorrência, que, por sua vez também são a causa do problema, junto dos “baixos salários, da flexibilização e novos modelos de trabalho que surgem”.

 

 
 

 

Um outro olhar sobre o trabalho flexível e a saúde dos líderes

Há quem não considere o trabalho flexível como principal causador do aumento dos índices de problemas mentais no mercado. Há, na verdade, quem o prefira.

Joaquim Costa Bezerra Dias, engenheiro de software(Foto: Arquivo Pessoal/Joaquim Costa Bezerra Dias)
Foto: Arquivo Pessoal/Joaquim Costa Bezerra Dias Joaquim Costa Bezerra Dias, engenheiro de software

Joaquim Costa Bezerra Dias, 28 anos, já trabalhou nas duas modalidades de contratação: CLT e Pessoa Jurídica (PJ). "Prefiro PJ e remoto. É como me encontro hoje e não abriria mão por presencial/CLT", conta.

O engenheiro de software elencou pré-requisitos que o teriam ajudado na adaptação às atuais formas de trabalho dele, mas que podem não estar presentes nas experiências de outros trabalhadores.

A ausência de fundos garantidores da PJ, por exemplo, teria sido suprida por bons acordos contratuais e conhecimento prévio de gestão de finanças. No entanto, ele acrescenta que a forma de contratação pode ser “uma armadilha caso você não consiga negociar um contrato factível com o que você espera”.

E acrescentou: “A CLT tem a vantagem de ter uma seguridade dada pelo próprio estado, porém com encargos tributários um pouco maiores para aqueles que já recebem um valor considerável”.

Quanto o home-office, Joaquim considerou de boa utilidade caso o trabalhador saiba “delimitar espaço e tempo para cada atividade”. “Pode ser ótimo até para sua saúde mental”, completou, citando a própria experiência.

Lideranças ouvidas foram na mesma toada. O trabalho flexível foi citado como sinônimo de "equilíbrio" por Marina Mendonça, atualmente Coordenadora de Treinamento, Desenvolvimento e Seleção da Rede de Hotéis Vila Galé no Brasil.

Marina Mendonça, atualmente Coordenadora de Treinamento, Desenvolvimento e Seleção da Rede de Hotéis Vila Galé no Brasil(Foto: Arquivo Pessoal/Marina Mendonça)
Foto: Arquivo Pessoal/Marina Mendonça Marina Mendonça, atualmente Coordenadora de Treinamento, Desenvolvimento e Seleção da Rede de Hotéis Vila Galé no Brasil

Segundo ela, as relações devem contar com "limites claros", de modo a evitar sobrecarga, isolamento e dificuldades de desconexão. Uma das soluções estaria no acompanhamento das equipes, com promoção de boas práticas de gestão. "Independentemente do formato de trabalho", acrescentou.

Marina diz ter recebido a Norma Reguladora com "consciência da sua importância", mas a considera um alerta às empresas. O debate, explica, precisa ser incorporado "com orientações claras, treinamentos e o envolvimento diário de todos", o que inclui a liderança.

A saúde mental dos próprios contratantes torna-se, então, alvo de discussão. Sherydan Gomes, psicanalista, defende que é preciso “enfrentar os desafios do ambiente de trabalho, através de práticas voltadas ao autocuidado e a autoconexão, por meio do desenvolvimento das habilidades psico socioemocionais".

Sherydan Gomes é coordenadora do projeto Clube Areté, de experiências imersivas de saúde mental de lideranças(Foto: Divulgação/Sherydan Gomes/Clube Areté/AD2M Assessoria)
Foto: Divulgação/Sherydan Gomes/Clube Areté/AD2M Assessoria Sherydan Gomes é coordenadora do projeto Clube Areté, de experiências imersivas de saúde mental de lideranças

A flexibilização “é uma possibilidade”, mas não consiste na principal causa do aumento dos problemas mentais no trabalho, diz ela, em uma outra visão da psicologia sobre os dados atuais. “Não é o suficiente. A maior questão é gerenciar conflitos e demandas internas e isso só acontece quando se tem consciência das potencialidades e vulnerabilidades”, completou.

Neste contexto, a psicóloga criou o Clube Areté, experiência imersiva voltada para saúde mental dos contratantes e gestores. A iniciativa consistirá em seis encontros, um por mês, com a duração de 4 horas - cada. O primeiro ocorreu em 12 de abril de 2025.

Os líderes podem participar por meio do telefone 85 99994.0129, contato dos coordenadores. O interessado deve preencher um formulário e participar de uma entrevista presencial, com o intuito de “perceber as reais necessidades” e demandas a serem atendidas.

Viver em um ambiente corporativo é viver o inevitável, as relações humanas, e hoje elas se dão naturalmente na esfera presencial ou virtual e em cada um desses espaços quem vai conduzir a saúde ou adoecimento mental é a forma como esse mesmo sujeito estar internamente”, reforçou Sherydan, quanto às modalidades de trabalho. “A participação do líder (no evento) é interessante. Desenvolver a saúde mental irá gerar um efeito cascata positivo em toda a equipe”, disse.

 

Quando o cenário trabalhista brasileiro mudou tanto?

"Quando os trabalhadores estão em condições muito desfavoráveis, se mobilizam por necessidade e não por ideologia", constatou a historiadora Cláudia Freitas de Oliveira, se referindo à Consolidação das Leis do Trabalho.

Promulgada em 1943, a CLT foi fruto de greves bem ou malsucedidas, anos de lutas e prisões, conforme a professora da Universidade Federal do Ceará. Foi, portanto, um atenuamento de condições insustentáveis: uma conquista dos trabalhadores para eles mesmos.

Hoje, a professora também considera as condições de trabalho "desfavoráveis", para dizer o mínimo. Chamou-as de "terríveis" e "precárias", vinculando-as - como fez a psicóloga Janaína - com o estado mental dos trabalhadores brasileiros. No entanto, diferente de antes, não costumamos nos acumular em frente a fábricas ou nos organizamos em conjunto em busca de mudanças. O que causou essa mudança?

 

Marcos na legislação trabalhista ao longo dos anos

 

A professora Cláudia considerou 2016 e 2017 anos-chave para a mudança de conjuntura no trabalhismo brasileiro. No entanto, a solidão do esgotamento profissional se deu após décadas de implementação de uma política neoliberal no mundo e no Brasil.

Uma ruptura. Ainda que as leis trabalhistas brasileiras sejam da década de 1940, após a Segunda Guerra Mundial houve um aumento na procura por garantia de direitos assegurados no chamado bem-estar social. “Foi um momento, os anos de 1950, de muita luta, greves, mas também muitas conquistas”, explicou a professora da UFC.

O neoliberalismo, segundo ela, fortaleceu-se por volta dos anos 1980, com a queda de governos socialistas e a expansão do capitalismo. No Brasil, ainda que a época tenha sido marcada por greves e um fortalecido movimento sindical, houve a quebra de algumas garantias já nos governos de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso.

Cláudia Freitas de Oliveira é professora da Universidade Federal do Ceará, do departamento de história(Foto: Arquivo Pessoal/Cláudia Freitas de Oliveira)
Foto: Arquivo Pessoal/Cláudia Freitas de Oliveira Cláudia Freitas de Oliveira é professora da Universidade Federal do Ceará, do departamento de história

Os dois governos posteriores, vindos de um partido nascido do sindicalismo (Lula e Dilma, ambos do Partido dos Trabalhadores), não trouxeram grandes reformas, apesar de haver uma pressão crescente para modificações trabalhistas e na previdência social. Estas acabaram ocorrendo, mas em outros governos, “extremamente neoliberais”, segundo a professora, se referindo a Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022).

A reforma trabalhista flexibilizou as relações contratuais e empresariais no Brasil. Houve a possibilidade de contratação por regime de trabalho por produtividade ou autônomo, diminuição do aviso prévio para demissões e contribuição sindical facultativa.

 

O que mudou nas reformas do Governo Temer e Bolsonaro

 

A dita campanha neoliberal teria focado em um descrédito dos sindicatos e da necessidade de organização, conforme Cláudia Freitas. Como consequência, houve a individualização e foi fortalecida uma nova mentalidade nos trabalhadores - solitária e desconfiada. 

“Os sindicatos eram a grande arma. Quando a gente vê a situação hoje, há um deslocamento em que os trabalhadores veem problemas com questões subjetivas. ‘Poxa, eu deveria ter me dedicado mais’, pensamos. Essa é uma ferramenta utilizada pelo neoliberalismo para fazer um deslocamento sobre as questões estruturais que levam justamente aos adoecimentos”, disse a professora.

 

 

 

Empresas têm responsabilidade na saúde dos trabalhadores

Mesmo antes da implementação da NR-1 do MTE, algumas empresas já contam com programas de bem-estar e apoio psicológico para colaboradores. A Unimed Fortaleza, por exemplo, oferece o “Plantão Psicológico”, surgido por contingência à Covid.

Devido à alta incidência de colaboradores na linha de frente, o serviço se fez necessário no primeiro ano da pandemia e foi reforçado em 2021, com a contratação de psicólogas terceirizadas. O resultado foi positivo e o serviço acabou implementado de forma permanente na empresa.

O “Plantão Psicológico” atende colaboradores e terceiros, além de promover ações preventivas como oficinas, mediação de conflitos e demais atividades. Há ainda o código girassol, voltado no tratamento com o cliente e na violência no ambiente de trabalho. O atendimento varia entre os colaboradores, podendo ser pontual, mensal e até mesmo diário, a depender do caso.



Melissa Pereira, de 19 anos, está no sistema Unimed há aproximadamente 1 ano e trabalha como auxiliar de saúde no Centro de Imagem. Citou a rotina como cansativa, por lidar com pacientes na emergência.

Utiliza do Plantão Psicológico desde que entrou, procurando-os por conta própria. Da primeira vez ela cita ter precisado de ajuda para um caso familiar. Na segunda, o problema se deu com o contato com um paciente, que "excedeu-se" no atendimento.

O serviço psicológico foi descrito por ela como “essencial” no momento. “Ela me deu a assistência que eu precisava. Trabalhei em outros locais, mas não havia essa disponibilidade é um recurso que acho muito importante, até para normalizar a terapia. Eu mesma no início tinha receio”, contou.

 

Atendimentos por ano no Plantão Psicológico da Unimed Fortaleza

 

Segundo Paula Pamplona, psicóloga do Plantão, os dados do projeto mostram uma evolução, ainda que ela considere difícil quantificar. “A procura aumentou muito e o número de afastamentos por INSS diminuiu. Há ainda uma estabilidade, com menos sessões por colaborador, além dos recados que recebemos”, disse.

Hoje, as ações de prevenção demandam quase a mesma força de trabalho do atendimento após o ocorrido ou a crise. “Acho que as pessoas estão entendendo o que é saúde mental e como se diferencia da saúde física. Eu acho maravilhoso, pois uma coisa leva à outra”, disse Paula.

Atenuamento nos casos de problemas mentais no trabalho deve partir, muitas das vezes, das empresas(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Atenuamento nos casos de problemas mentais no trabalho deve partir, muitas das vezes, das empresas

Esse entendimento quanto à saúde mental seria o principal impacto esperado com a norma, conforme o diretor do MTE, Rogério Araújo. Ele ainda considerou um grande desafio “o entendimento das empresas sobre a necessidade de implementação de mudanças nas questões relacionadas à sua forma de gestão e organização do trabalho”.

Para a psicóloga Janaína Melo é preciso que as empresas compreendam uma mudança de mentalidade nos trabalhadores. Uma pessoa de 30 anos hoje, segundo ela, não considera que o trabalho é necessariamente assegurador de coisa alguma e, portanto, prefere muitas vezes priorizar tempo e bem-estar.

Neste sentido, Janaína considera que, “nessa transição, se passa a querer exigir o trabalhador uma coisa que ele não vai dar da mesma forma que antes". "Nossa mente não é mais a mesma. As relações de trabalho não são as mesmas e hoje as pessoas expressam mais o que elas sentem também. Não quer dizer que antes não tinha problema de saúde mental, só que não era valorizado”, explicou.

Já a historiadora Cláudia Freitas enxerga o problema de uma forma macro, geracional. Os novos trabalhadores, segundo ela, não se veem desta forma, sendo necessário o resgate de uma consciência de classe, já que, para ela, não há para “onde fugir”. “A precarização está em todos os lugares”.

“Então eu acho que a formação política é importante. Essa geração pensa que questões de classe estão obsoletas, só que enquanto existir trabalhadores e trabalhadoras, vai existir uma luta de classe sim, porque o patronato vai atuar dentro da sua própria lógica de operação, vai querer a mais valia e vai explorar sim”, disse.

Para ela: “Quando cai a ficha, das duas uma. Você pode mudar de setor achando que vai melhorar a sua situação. Mas, o caminho é outro: você tenta de alguma forma lutar de forma coletiva para minimizar esses problemas que são diários e que causam justamente o cansaço e o desgaste mental”.

 

 

Serviço: procure ajuda em caso de doenças mentais relacionadas ao trabalho

Caso você tenha se identificado com os sintomas descritos acima, procure ajuda psicológica. Como qualquer doença, quanto antes tratar, melhor.

O Governo Federal, vale lembrar, fornece atendimento gratuito via Rede de Atenção Psicossocial (Raps). Segundo o portal da gestão nacional, o tratamento pode ser iniciado por escolha própria (quando o usuário/a procura diretamente) ou por meio de encaminhamento proveniente de outros serviços da rede de saúde ou de setores interligados, como Assistência Social, Educação, Justiça e outros.

Clique e saiba mais como ter acesso aos Centros de Atenção Psicossocial.

 

 

"Olá! Aqui é Ludmyla Barros, repórter do O POVO+. O que acha das novas configurações de trabalho no Brasil? Conta nos comentários!"

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