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O corpo que habito
Reportagem Seriada

O corpo que habito

As pressões estéticas e os tabus que envolvem a relação da mulher com o próprio corpo continuam na velhice. O momento pode ser de redescoberta em relação à sexualidade. É o que nos conta a bailarina Cláudia Pires nesta reportagem sobre o envelhecer feminino, na qual cinco mulheres partilham suas experiências no debate sobre as mudanças sociais que influenciaram a forma como esse processo natural é encarado atualmente
Episódio 5

O corpo que habito

As pressões estéticas e os tabus que envolvem a relação da mulher com o próprio corpo continuam na velhice. O momento pode ser de redescoberta em relação à sexualidade. É o que nos conta a bailarina Cláudia Pires nesta reportagem sobre o envelhecer feminino, na qual cinco mulheres partilham suas experiências no debate sobre as mudanças sociais que influenciaram a forma como esse processo natural é encarado atualmente
Episódio 5
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Vestido branco, longo e fluido. Pés descalços, cabelos soltos. Confortável na própria pele e no espaço onde faz morada, Cláudia Pires, coordenadora dos Laboratórios de Criação do Porto Iracema das Artes, percorre os cômodos em movimentos ensaiados para contar a própria história.

Para comemorar os 50 anos recém-completos, a bailarina abriu portas de casa e acolheu as visitas que chegaram para prestigiar o espetáculo Com o tempo a teus pés.

“Acho que, no meu fazer de dança, nós temos muitas conquistas no que diz respeito às maneiras de expressão. Nós, mulheres, especialmente, não precisamos mais ser, obrigatoriamente, as princesas dos balés de repertório. Nós podemos, além de ser isso, seguir dançando, nos expressando, como mulheres comuns, de corpos diferentes, de histórias diferentes.”

O Brasil é o segundo colocado no ranking mundial em número de cirurgias plásticas, com mais de 2,2 milhões procedimentos realizados em 2018. A classificação é do mais recente estudo da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps, na sigla em inglês), que foi divulgado em dezembro de 2019 e mostrou novamente o País atrás apenas dos Estados Unidos.

Nesse cenário, o corpo jovem, magro e sensual é um verdadeiro “capital” na cultura brasileira. O conceito é da antropóloga Mirian Goldenberg. “As mulheres têm mais medo de perder isso, mas, ao mesmo tempo, como elas se cuidam muito mais, vão muito mais ao médico, se preocupam muito com a aparência, elas envelhecem melhor. Inclusive não só na saúde, mas na própria aparência, porque elas cuidam mais da pele, cuidam mais do dente, cuidam mais do cabelo, cuidam mais do corpo”, afirma.

Ao longo do tempo, são diversas as mudanças pelas quais o corpo passa. Os fios tornam-se brancos, as rugas surgem, os níveis de hormônio são alterados. Cada mulher lida com essas mudanças à própria maneira. Há quem decida assumir os cabelos grisalhos e quem decida pintá-los; algumas buscam procedimentos estéticos ou frequentam academia.

Como nas demais etapas da vida da mulher, esse processo é repleto de cobranças. “Existe uma série de marcadores que vão desde o corpo a maquiagem, adorno e roupa que fazem com que essa mulher seja muito mais presa (do que o homem)”, afirma a vice-coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Gênero, Idade e Família da Universidade Federal do Ceará (UFC) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Kelly Menezes.

A professora defende o poder de escolha sobre o que fazer com o próprio corpo, mas propõe a reflexão sobre os reais motivos para as decisões. “O que é o envelhecer bem? É o que mais se aproxima do corpo jovem e considerado belo. Esse sujeito idoso pode fazer o que quiser e puder com o corpo, mas é preciso provocar uma reflexão sistemática sobre estar fazendo isso porque quer ou porque existe uma imposição midiática e da indústria.”


Sexualidade em questão

Da mesma forma que as cobranças continuam em relação à aparência, há também aquelas sobre a sexualidade que são mais rigorosas para as mulheres. “É legitimado socialmente o homem viúvo relacionar-se de novo, mas existe um apelo de que a mulher fique até a morte sozinha”, exemplifica Kelly Menezes.

Mas a realidade pode ser diferente. A ruptura entre a vida sexual das mulheres na juventude e na velhice, segundo Mirian Goldenberg, não é “tão grande quanto se imagina”.

“As mulheres que gostavam muito de fazer sexo vão continuar fazendo, vão descobrir produtos e formas de continuar fazendo. Aquelas que nunca gostaram — e são muitas na minha pesquisa, principalmente as mais velhas, que não tiveram grandes experiências sexuais —, vão (pensar): ‘Poxa, agora vou me aposentar de algo que nunca foi bom para mim’”, explica a antropóloga.

O mesmo foi observado pela professora Paula Brandão, coordenadora do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (Uece), que estudou o envelhecimento de mulheres da classe média de Fortaleza. “Algumas revelaram: ‘Sou aposentada inclusive sexualmente, não tenho mais interesse, não tenho mais libido, entrei na menopausa’”, conta a professora.

Ela explica que buscou perceber o envelhecimento como um processo, considerando os motivos que podem ter levado a esse tipo de sentimento.

“Às vezes, essas mulheres não tiveram uma vida sexualmente ativa, casaram cedo, casaram virgens, só conheciam aquela experiência com os maridos. Aquelas que a vida toda foram sexualmente ativas não abrem mão da sexualidade delas, não. Mesmo que seja um dia, uma aventura.”

A médica ginecologista e sexóloga Rayanne Pinheiro aponta a dificuldade para lidar com o tema. “Mesmo com toda essa caminhada (para quebrar tabus), principalmente as pessoas mais jovens ainda têm dificuldade em pensar que os pais e os avós têm vida sexual. Ainda tem muita negação nesse sentido. Por terem dificuldade de imaginar, ainda não lidam tão bem.”

Essas cobranças, junto a questões hormonais — que tornam o envelhecimento mais “abrupto” para as mulheres —, podem levá-las a ter dificuldade para lidar com as mudanças que ocorrem no corpo, segundo a geriatra Danielle Ferreira.

“A menopausa realmente é um momento que marca bastante. Mas hoje, se falarmos de sexualidade, vejo que as mulheres já estão ficando mais abertas à (ideia de) que isso não significa que você tem que perder a sua sexualidade”, afirma a médica.

Menopausa com mais qualidade

Na menopausa, Rayanne Pinheiro aponta as possibilidades de tratamentos para a paciente ter mais qualidade de vida. É o caso de lasers para melhorar a perda da lubrificação ou da elasticidade do canal vaginal. “Temos uma gama de opções para lidar com isso de forma mais saudável. Sempre digo para as pacientes que, quando se tem um estilo de vida saudável, costuma-se ter muito menos sintomas.”

As mudanças fisiológicas, de acordo com a psicóloga Valéria Fátima da Rocha, não retratam a dimensão da sexualidade. Membro da ONG Eternamente Sou, centro de referência e convivência para idosos LGBT, ela defende que é preciso “desgenitalizar o prazer”.

“Temos que lembrar que a normatividade heterossexual não é muito discutida. Simbolicamente, o gozo sexual está diretamente ligado à penetração. Neste sentido, as mulheres bissexuais e trans, na velhice, também têm o desafio de aprender com o corpo zonas erógenas de prazer que não seja somente a genitália”, afirma.

A repressão acerca do conhecimento do próprio corpo, porém, historicamente recai mais sobre as mulheres — principalmente, segundo Valéria, sobre as que hoje têm 70 anos ou mais.

Isso explica o fato de muitas mulheres LGBT relatarem nunca terem se masturbado sozinhas ou não se olharem nuas no espelho, “tamanho bloqueio e anulação iniciados na infância e continuados na velhice por ‘vergonha’ e falta de aceitação”.

Mas, no consultório, a sexóloga tem percebido pontos de mudança. Um deles é a busca cada vez mais cedo por alternativas que possibilitem um envelhecimento com mais saúde e com vida sexual ativa. Ao mesmo tempo, percebe a busca de mulheres maduras por uma vida sexual gratificante e a maior importância que se dá ao orgasmo. “Tenho pacientes com mais de 60 anos que estão me buscando para redescobrir o prazer”, declara Rayanne.

Outra mudança é na busca por outras parcerias após a viuvez ou a separação. “A sexualidade entra em um apoio, porque é uma redescoberta, é tudo novo, já que ela passou tantos anos com a mesma parceria. Muitas mulheres estão descobrindo a homoafetividade, mesmo na maturidade. Todas essas dinâmicas são circunstâncias novas desse momento.”

 

No terceiro e último episódio do podcast E.L.A.S - Liberdade para envelhecer, um bate-papo entre a jornalista e editora Regina Ribeiro e a ginecologista e sexóloga Rayanne Pinheiro busca esclarecer diversas nuances desse tema, que ainda é repleto de tabus. Acompanhe:

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ELAS

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E.L.A.S. - Liberdade para envelhecer

Série de reportagens investiga o processo de envelhecimento feminino a partir da experiência de quatro mulheres a partir de 50 anos.