A maioria dos eleitores do Ceará afirma ser favorável à Lei de Cotas. A conclusão é da segunda rodada da pesquisa Ipespe encomendada pelo O POVO entre os dias 20 e 23 de agosto. Segundo o levantamento, 75% são a favor da reserva de vagas nas universidades para pessoas com baixa renda, negros, indígenas e pessoas com deficiência.
Cearenses com renda de até dois salários mínimos e que possuem apenas com o Ensino Fundamental completo tendem a ser mais favoráveis às cotas do que aqueles com maior renda e escolaridade. Nesses aspectos, a renda parece fazer maior diferença: enquanto 78% dos mais pobres apoiam ações afirmativas, essa mesma resposta é dada por 66% daqueles que recebem mais de cinco salários mínimos.
Olhando para o grau de instrução, a variação é menor: 78% dos que terminaram o Ensino Médio são favoráveis, enquanto apenas 70% daqueles com Ensino Superior declaram apoio às cotas.
Outros recortes feitos pelo Ipespe comparam a adesão às cotas no Interior e na Região Metropolitana, conforme gênero e segundo faixa etária. Ainda que com variações dentro da margem de erro — estimada em 3,2 pontos percentuais para mais ou para menos —, os dados mostram que mulheres do Interior tendem a ser mais favoráveis. A ação afirmativa tem mais simpatizantes com idades entre 25 e 44 anos. O levantamento, entretanto, não considerou a cor/raça dos eleitores entrevistados.
Para a antropóloga Izabel Accioly, as cotas diversificaram as universidades brasileiras e tais mudanças impactaram positivamente a sociedade. “Quando a gente pensa em cotas, a gente tende a pensar nas mudanças para a pessoa que conseguiu a vaga, mas a política de cotas transformou o próprio ambiente universitário”, avalia. “Esses estudantes trazem percepções diferentes do que aquelas do perfil dos estudantes que ocupavam previamente a universidade. A gente vê as pesquisas se modificando, abordando temáticas que são mais caras ao povo brasileiro.”
Vera Rodrigues, professora na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), acrescenta que há um maior apoio às cotas devido ao avanço da conscientização racial. “Isso vem das ações do movimento negro e também da nossa insistência em fazer valer a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas e universidades”, diz. “Ainda falta caminhar para o letramento racial, o entendimento do que a questão racial implica na sociedade brasileira. A raça não é um detalhe.”
A primeira vez que a antropóloga, socióloga e professora Zwanga Nyack, 26, ouviu falar da Lei de Cotas foi durante a segunda série do Ensino Médio. Na época, ela trabalhava em uma fábrica de costura durante o dia e estudava à noite em uma escola pública em Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza. “Estava no período de inscrições para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Uma professora falou sobre o Exame e a possibilidade de a gente entrar na universidade”, lembra.
Para buscar mais informações sobre a prova, assim como sobre a Lei de Cotas, Zwanga buscou a bibliotecária da escola, que a informou que ela não poderia se inscrever no Exame por ser uma estudante do período da noite e que "isso não iria mudar muito" a sua vida, conta a antropóloga. A negativa, em vez de dissuadir, potencializou a decisão de Zwanga.
“Esse acontecimento foi singular na minha vida. Foi a partir dele que decidi que queria entrar na universidade. Meu terceiro ano do Ensino Médio foi todo voltado para isso. Fiz a prova pela primeira vez e fui aprovada no curso de Ciências Sociais, em 2014. Entrei nessa modalidade [cotista], no primeiro momento, me entendendo como estudante de escola pública e parda, para além do fator socioeconômico”, disse.
A socióloga explica que, de fato, só foi possível ter um conhecimento mais aprofundado sobre a Lei de Cotas e como a política mudou sua vida após adentrar a universidade. Segundo ela, sua turma na Universidade Federal do Ceará (UFC) foi a primeira após a implementação da lei, ou seja, com 50% de cotistas.
“A Lei de Cotas mudou minha vida radicalmente. Sou a primeira pessoa da família a entrar em uma universidade pública e entendo que a minha entrada na universidade só foi possível porque tive esse acesso à lei, foi uma possibilidade a mais. A partir disso, minha vida tomou vários rumos que nem eu mesma esperava”, destaca.
Hoje, Zwanga é doutoranda em antropologia social no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), além de ter passado pelo mestrado na mesma instituição, em 2019. Na UFC, a graduação foi concluída em 2018 e, a partir disso, outros caminhos foram trilhados.
“A minha caminhada sendo feita desse modo só me foi permitida por conta dessas políticas. Tive minha vida radicalmente transformada nos mais diversos sentidos, tanto em termos de entendimento de mim, entender o que me compõe, quanto as aberturas profissionais”, lembra.
De acordo com a socióloga, a política afirmativa permitiu ter acesso a institutos sociais e realizar trabalhos na periferia. Entre eles, a preparação de cursinhos pré-vestibulares voltados para a juventude das comunidades de Fortaleza, além de outras cidades no País, atuando como professora de Sociologia. “Dar um incentivo a mais e ajudar nos processos”, destaca Zwanga.
A antropóloga analisa que a criação da política da Lei de Cotas possibilitou a mudança do perfil dos estudantes que ingressaram nas universidades públicas brasileiras. “Pode ser um pouco mais singela em alguns cursos, mais gritantes em outros, sobretudo naqueles que são considerados mais elitistas. Corpos negros, corpos
O Ipespe também questionou os eleitores de cada um dos principais candidatos ao Governo do Estado e à Presidência da República sobre suas opiniões quanto às cotas para entrada nas universidades. Em todos os grupos, a resposta favorável foi majoritária, inclusive entre eleitores de Jair Bolsonaro (PL) — cujo governo tem se manifestado contrário à Lei de Cotas e cujo plano para o mandato 2023–2026 não menciona a ação afirmativa.
Na disputa presidencial, a maior adesão às cotas (92%) se mostra entre os cearenses que afirmaram intenção de voto em candidatos fora do trio de PDT-PL-PT. Em seguida estão os eleitores do petista Lula (80% favoráveis), os sem candidato (78%), os eleitores do pedetista Ciro Gomes (73%) e os eleitores de Bolsonaro (66%).
Já na corrida estadual, o maior apoio às cotas (92%) também se mostra entre os cearenses que declararam intenção de voto em candidatos fora do trio de líderes (PDT-PT-UB). Eleitores do petista Elmano Freitas vêm em seguida, com 80% favoráveis à política afirmativa. O ranking segue com eleitores do pedetista Roberto Cláudio (77%), os sem candidato (76%) e eleitores de Capitão Wagner (70%), do União Brasil.
Foram ouvidos mil eleitores do Ceará, com idade a partir de 16 anos, entre os dias 20 e 23 de agosto de 2022. A margem de erro do levantamento é de 3,2 pontos percentuais para mais ou para menos e o intervalo de confiança estimado é de 95,45%. A pesquisa está registrada no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com o número BR-04538/2022 e no Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE) sob o protocolo CE-07968/2022.
A primeira da família a ingressar na universidade pública. Natural de Itaitinga, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), e estudante de escola pública, a advogada Laryssa Figueiredo, 24, entrou no curso de Direito na Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2016, por meio da política de Lei de Cotas. Ela conta que isso a permitiu “sonhar com uma realidade diferente” do que aquela que estava traçada.
“Cresci em um bairro periférico. A realidade de outras pessoas que não tiveram acesso à educação que eu tive foi uma realidade bem difícil, de violência, empobrecimento, marginalização. Na minha vida, enxergo a Lei de Cotas como um divisor de águas. Eu teria tido uma vida completamente diferente, tanto a nível pessoal quanto profissional, se eu não tivesse ingressado na universidade pública. Isso não teria sido possível sem a Lei de Cotas”, destaca.
Ela conta que a partir da política afirmativa foi possível ter experiência com pesquisa acadêmica, atuar em escritórios de advocacia e, principalmente, aprofundar-se na área que resolveu seguir — os direitos humanos. Atualmente, a advogada atua como assessora técnica em uma organização voltada à causa e diz que o próximo passo é o ingresso no mestrado.
Para Laryssa, a Lei de Cotas ajudou a aumentar a diversidade racial na universidade, principalmente em cursos que eram considerados elitizados na época. Ela conta que em uma conversa com seu pai, após aprovação no curso, ele disse para ela nunca se sentir "constrangida", "envergonhada" ou "deslocada" por ter conquistado o espaço.
Laryssa acredita que a Lei de Cotas é uma tentativa de reparar um dano grave que existe no Brasil, em relação à desigualdades sociais e minorias. “O nível escolar, social e socioeconômico que pessoas cotistas passam a vida tendo é muito diferente de pessoas que estudam em colégios particulares ou de pessoas que não fazem parte de qualquer minoria racial", comenta.
Para ela, a universidade, após a política de cotas, "abriu portas para além do cenário profissional e acadêmico"." É um enriquecimento cultural e intelectual."
A socióloga Carliana Nascimento, 27, também pôde mudar de realidade. Ela foi estudante de escola pública, vindo de família de baixa renda e moradora da periferia de Fortaleza, no bairro Pirambu. O destino traçado era entrar no mercado de trabalho para ajudar a família. No entanto, com a Lei de Cotas mudou o curso ao permitir a entrada na universidade pública.
A professora de Sociologia esteve entre os jovens que chegam ao ensino superior graças às ações afirmativas. Ingressou no curso da Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2015, na modalidade de licenciatura. Além da graduação, Carliana obteve ainda pela UFC mestrado e, atualmente, é doutoranda. “A universidade chegou só para uma elite branca. Então, popularizar a universidade só foi possível a partir das cotas”, comenta.
Carliana conta que vem de uma família de mulheres costureiras e, se não tivesse entrado na universidade logo após a conclusão do Ensino Médio, não teria tentado novamente no ano seguinte. Afinal, precisava entrar no mercado de trabalho para auxiliar nas despesas de casa.
Ela afirma que há quatro anos não pensaria em estar cursando um doutorado; tudo foi seguindo um caminho aberto a partir da política afirmativa de cotas. Durante a graduação, a professora lembra de ter participado de vários percursos acadêmicos. O objetivo, segundo ela, era viver tudo que a universidade tinha para oferecer porque era um universo sempre muito distante da sua realidade.
“O que aprendi como socióloga não foi só na sala de aula. Ciências Sociais é um curso que estuda muito, onde a gente lê muito, mas eu tive acesso a outros debates que a universidade possibilitou, como debates raciais. Entrei na universidade me declarando como parda, mas hoje eu me reconheço como parda/negra. Outros debates como desigualdades sociais, que eu não conhecia, além de curso de idiomas. Coisas que para mim não existiam antes”, relata Carliana.
Para destacar os dez anos da política de cotas, a professora cita o cantor Chico César, que lançou, nessa segunda-feira, 29, a música “As Cotas”, em parceria com Carlos Rennó e produzida pela União Nacional dos Estudantes (UNE). Ela comenta que a música remete muito a sua história. “Não é só sobre essa abertura de portas, o resto da nossa história é a gente que vai trilhar. Estou trilhando essa história. Há sete anos, estou na UFC e foi tudo a partir das cotas”, diz.
Para a professora, as cotas influenciaram não só a sua vida, mas de um grupo de pessoas para quem a realidade das universidades era distante. Carliana complementa destacando que, a partir de exemplos parecidos com o dela, outras pessoas também têm oportunidade de acesso à universidade. “O sonho é possível. As cotas fazem isso, abrem portas. O que falta para a galera da escola pública é só oportunidade. Tendo oportunidade, a gente vai longe”, pontua.
Sancionada em 2012, a lei nº 12.711, chamada Lei de Cotas, prevê a reserva de 50% das vagas das universidades e institutos federais de ensino superior a estudantes de escolas públicas. Dentro dessa reserva, estipula regras para destinar vagas a alunos de baixa renda, negros (que correspondem à parcela de pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência.
O Consórcio de Ações Afirmativas, que reúne pesquisadores de diferentes universidades públicas do país, mostra a ampliação do acesso nas universidades federais. Em 2001, o contingente de pessoas das classes C, D e E era de 19%. Em 2020, a proporção foi de 52%. No mesmo período, pretos, pardos e indígenas saíram de 31% para 52%.
“A Lei de Cotas permitiu que uma pessoa de uma cidade muito distante com dificuldades financeiras, de uma realidade totalmente diferente, que vem de uma família de domésticas, conseguisse ingressar na universidade pública”, resume a engenheira civil Cássia Nascimento, 25. Ela se formou em fevereiro, após ingressar no curso da Universidade Federal do Ceará (UFC), no campus de Russas, em 2017.
Natural do distrito de Dom Maurício, em Quixadá, a 163 quilômetros de Fortaleza, Cássia cursou o Ensino Médio em escola pública. Teve conhecimento da Lei de Cotas após fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e tentar uma vaga na universidade. Durante as inscrições para o curso, a engenheira civil recorda ter conhecido a política e percebido que se enquadrava no público cotista, por ser oriunda do ensino público e por se autodeclarar parda.
Cássia comenta que foi a primeira da sua família a ingressar no ensino superior e que muitos fatores poderiam ter interferido no acesso dela à universidade. “Os meus pais não têm nível superior. Meu pai só tem a quarta série. Tem todo um contexto histórico, principalmente para pessoas como eu, que estiveram a vida toda estudando em escola pública”, cita.
"Comparando o perfil de pessoas que entraram antes da Lei das Cotas e o das pessoas que entram hoje, com certeza, é outra realidade. As cotas permitiram esse acesso maior das pessoas ao ensino superior"
Atualmente, Cássia mora em Fortaleza e atua como analista de planejamento em uma construtora em Eusébio, na Região Metropolitana de Fortaleza. Além disso, ingressou em curso de pós-graduação.
Antes das conquistas atuais, alguns fatores a ajudaram a chegar na meta acadêmica e profissional. Devido ao curso ser em outro município que não o de origem da engenheira, as políticas de assistência estudantil a ajudaram a seguir na graduação. “Eu tive auxílio moradia, me envolvi em bolsas estudantis e vários outros projetos dentro da universidade”, conta.
Para ela, a política de cotas possibilitou que a universidade se tornasse um ambiente mais plural. “Você consegue ver a presença e a representatividade de mais pessoas ali dentro. Esse é um dos pontos positivos, tornar a universidade mais acessível. Comparando o perfil de pessoas que entraram antes da Lei das Cotas e o das pessoas que entram hoje, com certeza, é outra realidade. As cotas permitiram esse acesso maior das pessoas ao ensino superior”, conclui.
>> Entrevista <<
Antropóloga, professora na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e membra da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), Vera Rodrigues acredita que, ao aceitar a necessidade de cotas raciais, o Brasil admite a existência do racismo.
Em entrevista ao O POVO, a pesquisadora avalia os dez anos da lei, criticando a falta de avaliação dos mecanismos, mas reiterando a necessidade da existência deles. Vera aponta ainda a necessidade de criação de bancas de heteroidentificação para evolução do sistema e aponta que o legado das cotas já tem ultrapassado as fronteiras do ensino, chegando a outras áreas.
O POVO - O que é a Lei de Cotas? Porque ela existe e qual é a importância dela?
Vera Rodrigues - Nós temos as cotas sociais, que são para o ingresso de pessoas que vieram da escola pública, e as cotas raciais, que entraram como uma subcota dentro desse universo. Elas são um mecanismo possível de uma ação afirmativa que visa combater as desigualdades raciais e sociais na educação.
Historicamente, nós, população negra, sempre estivemos subrepresentados nos espaços de educação, especialmente no ensino superior. Lá no início de 2002, se não me engano, tínhamos 2% apenas de universitários negros num país como o Brasil, cuja maioria da população é negra. Uma discrepância muito grande entre o percentual populacional e a representação dessa mesma população em espaços decisórios, espaços de prestígio, de acesso de bens e serviços, de formação, como é o caso das universidades federais.
Então as ações afirmativas, mais precisamente as cotas raciais, elas vêm alinhadas com a perspectiva de fazer o enfrentamento a essas desigualdades enfrentadas pela população negra.
OP - Qual é a avaliação que podemos fazer das cotas dentro desses 10 anos de vigência da lei?
Vera Rodrigues - Apesar de termos análises de pesquisadores, de associações, as análises que temos são dispersas. Quando a lei foi aprovada, estava previsto que o governo faria um acompanhamento em nível nacional. Isso não aconteceu. A fim desse decênio, entendemos que é preciso focar em três pontos: monitoramento, aprimoramento e defesa.
Monitoramento porque não se faz qualquer política pública se não há um diagnóstico de que como política está andando, sabe? Precisamos saber, da forma mais ampla possível, quais foram os cursos acessados, quais foram os índices de ingresso, permanência e sucesso desses estudantes… Saber onde estão os gargalos e onde estão os pontos fortes.
Já o aprimoramento é porque a própria sociedade tem novos desafios. O estudante cotista necessita também de políticas de assistência estudantil, dos auxílios para moradia, para garantir o restaurante universitário, por exemplo. Quando há cortes ou redução nos orçamentos da educação, é óbvio que isso impacta nos estudantes, entre eles os cotistas que, por vezes, já têm um histórico de vulnerabilidade social. Isso sem falar na integração com outras políticas públicas, como a de transferência de renda.
Finalmente, a defesa é necessária porque não podemos ignorar que ainda temos uma correlação de forças pró e contra as cotas. Tramitam no Congresso Nacional projetos contrários à Lei de Cotas. Isso significa que dez anos depois ainda há muito a ser feito.
"Apesar de pensada para o âmbito da educação, a Lei de Cotas extrapolou limites da educação. Ela começou a atingir outros setores da sociedade brasileira. São dez anos de uma revolução silenciosa"
OP - E por quê ainda temos essas disputas?
Vera Rodrigues - Porque, apesar de pensada para o âmbito da educação, a Lei de Cotas extrapolou limites da educação. Ela começou a atingir outros setores da sociedade brasileira. São dez anos de uma revolução silenciosa.
Por exemplo, no Ceará, agora temos cotas para os concursos para ingresso no serviço público. Já é uma outra esfera, é o mundo do trabalho e do serviço público.
OP - As cotas permanecem como uma necessidade?
Vera Rodrigues - Sim, sem dúvida. As desigualdades raciais não têm dez anos, elas têm mais de 100.Não vamos desfazer em dez anos o que em centenas de anos foi construído e perpetuado cotidianamente. Nós temos processos inconclusos no Brasil.
Quem está à frente deste país, quem compõe o cenário político, judiciário e empresarial deste país? Já deu tempo para a gente ter resolvido isso, mas não foi. E a gente só avançou o que avançou porque se conseguiu forjar, a partir da luta do movimento negro brasileiro, um mecanismo prático de inclusão.
A população negra ainda é vista como algo que incomoda. Admitir a necessidade das cotas raciais é admitir o racismo no Brasil. E o Brasil nunca quis enfrentar isso.
OP - Diante disso, como as cotas podem avançar?
Vera Rodrigues - Pela legitimação das bancas de heteroidentificação. Temos uma política pública que parte da autodeclaração; mas a autodeclaração não é o fim, ela é o princípio. Acho que foi uma ingenuidade imaginar que teríamos nenhuma fraude nesse país. Por menor que seja a proporção dessas tentativas de fraude, elas existem. Se a gente não combater, a gente ajuda a matar a política, porque nenhuma política pública pode ser conivente com fraude.
Não se faz política pública sem mecanismos de controle. Ninguém pensaria, por exemplo, em fazer uma política de transferência de renda sem exigir cadastro, documentação, não sei o que lá mais. Por que a política de cotas raciais seria diferente?