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A desinformação corrói o senso de realidade, diz pesquisadora
Reportagem Seriada

A desinformação corrói o senso de realidade, diz pesquisadora

Co-líder do Trust Project Brasil, Angela Pimenta prevê desafios ainda maiores para o jornalismo em 2022, mas afirma que instituições estão mais preparadas para lidar com a desinformação
Episódio 2

A desinformação corrói o senso de realidade, diz pesquisadora

Co-líder do Trust Project Brasil, Angela Pimenta prevê desafios ainda maiores para o jornalismo em 2022, mas afirma que instituições estão mais preparadas para lidar com a desinformação
Episódio 2
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Um dos nomes à frente do “Trust Project Brasil”, Angela Pimenta cita dois desafios para o jornalismo profissional em 2022: a migração de usuários para plataformas cujas regras de governança são mais frouxas, tais com o Telegram, e o que ela chama de “gotejamento” de desinformação.

Gotejamento, segundo Pimenta, é um processo por meio do qual a desinformação é progressivamente disseminada na sociedade, de modo a minar consensos em torno de temas de interesse da coletividade.
Um exemplo: a eficácia das urnas eletrônicas. Mais um: a vacinação. Ambos, não por acaso, foram alvos de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) ao longo de 2021.

“O senso de realidade compartilhada nesse caso diz respeito a aceitar o resultado de uma determinada eleição”, explica Pimenta em entrevista ao O POVO. Para ela, o gotejamento de mentiras tenta sabotar aos poucos esse tecido social comum, compartilhado entre membros de uma mesma comunidade, de acordo com o qual o voto eletrônico é seguro.

“Quando se começa a questionar isso”, diz Pimenta, “começa-se a corroer esse senso de realidade compartilhada”.

Angela Pimenta, jornalista, doutoranda no Programa de Mídia e Tecnologia da Unesp, mestre em Jornalismo pela Columbia University School e atualmente é co-líder do Trust Project no Brasil(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Angela Pimenta, jornalista, doutoranda no Programa de Mídia e Tecnologia da Unesp, mestre em Jornalismo pela Columbia University School e atualmente é co-líder do Trust Project no Brasil

Nesse cenário, cabe ao jornalismo ajudar a manter esses laços sociais coesos, seja desfazendo, pela checagem contínua, campanhas de desinformação, seja mobilizando-se em consórcio para adotar mecanismos comuns de credibilidade que tornem o trabalho jornalístico ainda mais criterioso.

Doutoranda no Programa de Mídia e Tecnologia da Unesp, Pimenta é mestre em Jornalismo pela Columbia University School (2001). Presidiu o Projor entre 2015 e 2019. Hoje, é co-líder do Trust Project no Brasil ao lado de Francisco Rolfsen Belda. Na conversa que se segue, ela trata do conjunto de obstáculos que o jornalismo deve enfrentar neste ano eleitoral.

 

 

O POVO – Há alguma diferença de natureza ou de formato entre essa fake news de 2018, que surgiu principalmente na campanha, e as fake news ou discursos de desinformação que são produzidos hoje?

Angela Pimenta – Esse é um assunto importante, e a gente precisa prestar atenção aos conceitos. Quando a gente pensa naquilo que é problemático, vamos tentar entender a internet como se fosse um grande oceano. A britânica Claire Wardle foi quem iniciou, com uma coalização de veículos americanos e depois franceses, essa noção de se verificar conteúdo gerado pelo usuário. O conteúdo gerado pelo usuário, aquele que não é uma fonte oficial, tende a ser mais problemático. Se eu estou anônimo ou de uma maneira marota na internet, não sou o IBGE, não tenho cargo oficial, é mais fácil de eu tentar falar algo sem que eu venha a ser checado, sem que um órgão, um veículo como O POVO, vá lá e fale que isso que essa fonte diz contradiz algo que foi dito no passado.

Então aquilo que circula na internet, como memes e coisas apócrifas, certamente é mais complicado. Dito isso, a gente precisa distinguir a motivação de quem produz conteúdo problemático. O que é conteúdo problemático? É aquilo que não bate com os fatos. Pode estar onde estiver no espectro da política, mas se, no debate público, está enunciando alguma coisa que diz que é verdadeira, mas não bate com os fatos, e pode ser até uma opinião baseada naquilo que é falso, aí tem um problema.

E esse problema é percebido de três formas. A primeira é aquilo que é um erro, um erro de informação, mas que não tem a intenção de enganar. Mas se eu, como usuária da internet, for uma usina de informação errada, mesmo que esteja acreditando piamente naquilo, isso é um problemão. Mas não tem a intenção de enganar, e por aí estão, por exemplo, os erros jornalísticos. Quando se tem um erro honestamente cometido e mais honestamente corrigido, isso é o que em inglês se chama de “misinformation” e no Brasil a gente traduz como informação factualmente errada. No meio do caminho, a gente tem a chamada desinformação.

 

Quando alguém assedia, também não é um discurso, do ponto de vista factual, falso. E muito menos o discurso do ódio. O que a gente está vendo, desde 2018, quando houve uma inundação de conteúdos falsos, é um maior cuidado sobretudo de parte das autoridades e crescentemente das plataformas também. Com isso, temos os agentes da desinformação indo para plataformas que não têm governança nenhuma, principalmente Telegram.

O POVO – O discurso antivacina foi sendo progressivamente disseminado, não apareceu de uma hora para outra. Isso é um exemplo de discurso de desinformação que vai sendo construído por diversos agentes?

Angela Pimenta – Sim, é verdade. Felizmente, a hesitação vacinal não é prevalente no país, mas, volta e meia, a gente conversa com alguém que manifesta medo ou temor às vacinas. Eu acho que é meio cedo para dizer aonde vai a desinformação de cunho político no ano que vem. A gente está vendo esses balões de ensaio de vacina, de máscara, de isolamento social e logo vamos começar a ver isso em relação a candidatos.

O POVO – O período de pandemia serviu para aprimorar essas técnicas de desinformação?

Angela Pimenta – Quando todo mundo está em casa, não pode abraçar as pessoas, pra sair tem que estar de máscara. Isso indispõe as pessoas em relação a essas medidas, que são claramente restritivas. Só que uma maneira desinformadora de encarar isso é dizer que tem um grande irmão, um estado perseguindo, que os cientistas estão se arrogando poderes que eles não têm. Outra forma de ver isso é: um vírus novo, é transmitido pelo ar, não existe nada perfeito contra ele, está mudando rápido, e o que temos de melhor é a combinação de quatro coisas – distanciamento social, máscara, higiene e vacina.

Mas as teorias conspiratórias vão dizer, sobretudo de cunho libertário, que preza liberdade individual acima da liberdade coletiva, que isso veio para nos perseguir. Para quem tem essa semente de rebeldia e identificação com esse argumento, é mais fácil acreditar em conteúdos factualmente incorretos que venham daí. E isso se chama viés de confirmação, quando somos predispostos a deixar esse gotejamento contínuo de mentiras entrar na nossa cabeça. Também somos predispostos a acreditar mais naquilo que nos favorece e desacreditar naquilo que nos desagrada ou prejudica. Isso é um perigo porque ignora o contraditório.

O POVO – A desinformação tem sempre algum elemento do real no qual ela se calca ou às vezes manda a realidade às favas e parte para a elaboração de uma realidade própria?

Angela Pimenta – Esse é um ponto muito interessante. A questão é a seguinte: para ela ser crível, a enorme maioria desses conteúdos se apoia na realidade. Então a gente vai ver muitas das coisas malfeitas, mas que tentam enganar, querem imitar fontes verdadeiras para ter uma aparência factual. Ou usam uma afirmação antiga, mas que não corresponde mais à realidade, como se fosse atual. Nisso se encaixa, por exemplo, a velha história de que o médico Dráuzio Varela teria dito no começo da pandemia que não era necessário uso de máscara. Ele disse isso em janeiro. Quando veio março e a OMS mudou de opinião, ele viu as evidências e claramente disse que não era mais assim, só que começaram a usar o material anterior dele como se fosse atual. Isso é uma distorção de contexto. Ele disse aquilo, mas não hoje, disse no passado. A grande maioria dos fatos tem um pé no presente. É muito raro a gente ver uma mentira 100%.

O POVO – As mentiras mais facilmente desmascaráveis talvez sejam mais simples de lidar, mas essas que misturam elementos de factualidade com mentira constituem um desafio para o jornalismo hoje?

Angela Pimenta – É um superdesafio, porque o jornalismo abriga em grande medida o debate público. Do ponto de vista desse debate público, quando opinião não é time de futebol, quando é sobre política pública, e a vacinação é um claro exemplo dela, os fatos alicerçam. A filosofa Hannah Arendt escapou do nazismo e estudou profundamente essa questão. Ela chamava essa noção de produção factual embasada de realidade compartilhada. O que nos liga, a mim e você, é a língua portuguesa, é a profissão, mas é uma série de consensos já estabelecidos.

 

O senso de realidade compartilhada nesse caso diz respeito a aceitar o resultado de uma determinada eleição. Quando se começa a questionar isso, começa-se a corroer esse senso de realidade compartilhada. Isso é tão importante que, recentemente, no discurso de aceitação do Nobel, aquela repórter filipina Maria Ressa tem um parágrafo muito interessante. Ela disse: “Sem fatos você não pode ter a verdade. Sem a verdade, você não pode ter confiança. Sem confiança, não temos realidade compartilhada. Nem democracia. E torna-se impossível lidar com os problemas existenciais do nosso mundo: clima, coronavírus, a batalha pela verdade”. É um crescendo muito perigoso. Para uma sociedade ir para frente, é preciso um consenso mínimo. O contrário absoluto disso é uma guerra civil. Precisamos acreditar em coisas mínimas.

O POVO – Recentemente o TSE absolveu a chapa Bolsonaro/Mourão em relação às acusações que pesavam contra ela de 2018, mas sinalizou claramente que em 2022 o jogo vai ser diferente. Acredita que TSE e STF estão mais equipados hoje para enfrentar esse problema da desinformação?

Angela Pimenta – Estão, sim. As plataformas também percebem de maneira mais clara o papel delas. A gente tem um ambiente muito mais escrutinado. O que vai ser complicado são duas coisas. O esgoto, aquilo que vai estar fora da luz do dia. Parte do conteúdo do Telegram, por exemplo, se inclui nisso. Outra questão é esse efeito do gotejamento, daquilo que não é exatamente uma mentira, mas que é enganoso, que é dúbio. A linguagem é riquíssima, há um enorme instrumental de poder denegrir alguém sem exatamente incorrer em crimes claros de calúnia, injúria e difamação.

 

  • Edição Érico Firmo e Fátima Sudário
  • Texto Henrique Araújo
  • Identidade visual Amaurício Cortez
  • Edição de Arte Cristiane Frota e Isac Bernardo
  • Recursos digitais Catalina Leite e Wanderson Trindade
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