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Universidade das Quebradas e uma revolucão dos saberes
Reportagem Seriada

Universidade das Quebradas e uma revolucão dos saberes

Ensaísta, escritora, editora, professora, pesquisadora, crítica literária, Heloísa Buarque de Hollanda é uma das principais vozes feministas do País. Sua atuação na universidade é marcada pela expansão do conhecimento acadêmico e o acolhimento aos múltiplos saberes das mais diversas vozes das periferias do Rio de Janeiro
Episódio 8

Universidade das Quebradas e uma revolucão dos saberes

Ensaísta, escritora, editora, professora, pesquisadora, crítica literária, Heloísa Buarque de Hollanda é uma das principais vozes feministas do País. Sua atuação na universidade é marcada pela expansão do conhecimento acadêmico e o acolhimento aos múltiplos saberes das mais diversas vozes das periferias do Rio de Janeiro
Episódio 8
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Gloria Anzaldúa (1942-2004), pesquisadora chicana, escritora e ativista queer, sentenciou: "Não é suficiente se posicionar na margem oposta do rio, gritando perguntas, desafiando convenções patriarcais, brancas. Um ponto de vista contrário nos prende em um duelo entre opressor e oprimido; fechados/as em um combate mortal, como polícia e bandido, ambos são reduzidos a um denominador comum de violência. A uma determinada altura, no nosso caminho rumo a uma nova consciência, teremos que deixar a margem oposta a fim de que estejamos nas duas margens ao mesmo tempo e, ao mesmo tempo, enxergar tudo com olhos de serpente e de águia".

Aos 81 anos, Heloísa Helena Oliveira Buarque de Hollanda compreende a vida com olhos "de serpente e de águia", como aconselhou Anzaldúa outrora. Ensaísta, escritora, editora, professora, pesquisadora, crítica literária e uma das maiores referências nos estudos feministas e de gênero do País, Heloísa Buarque de Hollanda cruza fronteiras — questiona, constrói, se reinventa. Graduada em Letras Clássicas pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, Mestra e Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atualmente professora emérita de Teoria Crítica da Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ, a paulista nascida em Ribeirão Preto defende uma universidade múltipla, atenta aos conhecimentos e saberes que correm subterrâneos muros afora.

Apaixonada por poesia e telenovelas, a filha do cardiologista Alberto Oliveira e de Nair Oliveira é autora de obras como "26 poetas hoje" (1976), "Macunaíma, da literatura ao cinema" (1978), "Impressões de viagem" (1980), "Cultura e participação nos anos 60" (1982), "Pós-Modernismo e política" (1991) e "Escolhas, uma autobiografia intelectual". Intelectual tão rara quanto necessária, Heloísa Buarque de Hollanda diz revolução.

 

 

Heloísa Buarque de Hollanda é ensaísta, escritora, editora, e crítica literária.(Foto: Chico Cerchiaro/ Divulgação)
Foto: Chico Cerchiaro/ Divulgação Heloísa Buarque de Hollanda é ensaísta, escritora, editora, e crítica literária.
                              

O POVO - Como nasceu seu interesse pela literatura, pela educação? Seu pai influenciou no desejo por essa trajetória acadêmica?

Heloísa Buarque de Hollanda: Na minha casa a gente tinha um culto aos livros. Meu pai era professor de Medicina, então eram livros de Medicina, mas era aquela coisa da biblioteca, ele ia viajar e trazia livros de presente… Era uma coisa de sentir o ambiente dos livros bastante forte. Meus pais também puxavam muito de mim e da minha irmã por nossa performance escolar. Se a gente chegava com uma nota nove, meu pai dizia: "E por que não foi 10?" (risos). A literatura sempre foi muito valorizada na minha casa; essa convivência com a universidade, com os livros, esse clima de estudos sempre foi o meu entorno.

O POVO - A senhora viveu a efervescência da universidade na década de 1950, início de 1960, e também o horror do AI-5 em 1968. Como foi sua formação?

Heloísa: Eu frequentava a Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, fiz Letras Clássicas – Grego e Latim. Era um clima muito agitado, muito feliz, todo mundo achava que estava ganhando, que estava conseguindo tudo, que o mundo ia mudar. Tinha todo um entusiasmo em volta... Eu fazia teatro, frequentava o diretório da PUC, participei daquele Jornal Metropolitano, que era o jornal também de alunos, todo revolucionário. Depois, afinal, eu comecei a frequentar as ações do CPC, que são os Centro Popular de Cultura. A gente ia fazer festas, ler poemas. Eu fiz muito isso, trabalhar com a cultura como recurso político.

O POVO - A sua aproximação com a luta feminista se forjou nessas ações sociais?

Heloísa: O feminismo era muito setorizado naquela época, era para poucas pessoas. Eu estava mais presente na luta racial, que era uma luta muito forte nos anos 1960. Martin Luther King, direitos civis… Eu estava mais engajada na luta negra. O feminismo passou a me sensibilizar quando eu fui fazer um pós-Doutorado fora do País, em 1982. Eu era de esquerda, revolucionária.

"Eu fiquei dois anos nos Estados Unidos estudando e outros dando aula. Foi um momento que enfatizou esse movimento de pensamento e foi muito incrível, eu participei disso e entrei de cabeça." Heloísa Buarque de Hollanda, sobre as novas teorias que circulavam nas universidades norte-americanas

O POVO - A senhora cursou seu pós-Doutorado em Sociologia da Cultura na Columbia University. Os debates sobre feminismo nos Estados Unidos estavam em franca ebulição...

Heloísa: Eu cheguei nos Estados Unidos em 1982, no momento em que surgiu uma Terceira Onda, as teorias feministas. Antes, existiam alguns livros — como o da Betty Friedan, por exemplo, que era uma jornalista que mostrou que as mulheres estavam angustiadas e insatisfeitas; tinha a Angela Davis, que lutava pelos direitos das mulheres negras —, mas você não tinha a ciência, você não tinha a teoria feminista como hoje você tem, como uma área de conhecimento.

Eu peguei esse começo, logo nos anos 1980, e fiquei vidrada! Eram teólogas que interpelavam a Bíblia, eram grupos de estudos sobre o Freud para mostrar como ele era falocêntrico, como eram as personagens femininas e as escritoras tão controladas… Tinha uma efervescência, só se falava nisso. As feministas começaram a interpelar os currículos também — por que os currículos só tinham homens? Era uma revolução dentro do departamento, uma disputa pelo direito de interpretar. Foi um momento muito quente, eu larguei o que estava fazendo e mergulhei nisso, mudei de departamento. Foi muito bonito porque não era só estudo: a coisa acontecia dentro da universidade o dia inteiro. Como foi na rua nos anos 1970, os anos 1980 foi dentro das instituições. Foi muito impressionante. Eu fiquei dois anos nos Estados Unidos estudando e outros dando aula. Foi um momento que enfatizou esse movimento de pensamento e foi muito incrível, eu participei disso e entrei de cabeça.

O POVO - Ao retornar dos Estados Unidos, como a senhora atuou na construção teórica do movimento feminista brasileiro?

Heloísa: Eu voltei falando muito, trabalhando, dando aula, escrevendo... E participei de uma coisa que foi muito importante, as bolsas da Fundação Carlos Chagas, de São Paulo. A Carlos Chagas foi uma das grandes responsáveis pela legitimação dos estudos feministas nas universidades: a gente dava bolsas para quem fizesse ensaios e pesquisas sobre mulher, então isso estimulou muito. A gente já tinha uma teoria bastante forte, mas era individual e tinha que ter uma carinha machista, porque senão não passava. Agora em 1980, com o apoio da Carlos Chagas, abre-se um leque para estudos feministas muito grande no Brasil e com muita competência.

"Há 11 anos, eu dirijo um laboratório de tecnologia social chamado Universidade das Quebradas, que busca uma troca de saberes com artistas da periferia." Heloísa Buarque ao falar sobre o projeto que dá voz às comunidades do Rio de Janeiro

O POVO - A senhora coordena o Programa Avançado de Cultura Contemporânea na Universidade Federal do Rio de Janeiro (PACC/UFRJ). Qual é a atuação do PACC?

Heloísa: No Programa Avançado de Cultura Contemporânea, a gente tenta fazer uma produção de saberes compartilhados. Tem uma mesa enorme, as pessoas sentam em torno dessa mesa e trazem suas pesquisas. A gente não dá aula: há encontros mensais onde todo mundo discute com todo mundo suas pesquisas, tem muita gente do Brasil todo. É um ambiente aberto, de convivência. O PACC carrega essa noção do saber compartilhado e as pesquisas geram laboratórios. Há 11 anos, eu dirijo um laboratório de tecnologia social chamado Universidade das Quebradas, que busca uma troca de saberes com artistas da periferia. A gente oferece aulas de Antropologia, Filosofia e Teatro, por exemplo, e os grafiteiros, rappers e demais artistas dão aula pra gente de literatura, de Sociologia… Quer dizer, são aulas de experiência, são trocas. A Universidade das Quebradas é um programa de extensão que dura um ano. A gente abre o edital e as pessoas se inscrevem — a gente escolhe 70 por ano, mas a demanda é gigantesca. É muito bonito, é o projeto da minha vida.

Heloísa Buarque de Hollanda, professor da UFRJ: ensaísta e crítica literária(Foto: Foto: UFMG)
Foto: Foto: UFMG Heloísa Buarque de Hollanda, professor da UFRJ: ensaísta e crítica literária

O POVO - A Universidade das Quebradas também tem uma ação com mulheres periféricas...

Heloísa: O projeto que é desdobramento da Universidade das Quebradas chama-se Mulheres da Quebrada. É uma parte das Quebradas só como mulheres e a gente faz várias coisas conjuntas. A gente fez, por exemplo, uma série chamada Pandemônicas na Pandemia, onde entrevistou todo mundo da favela: mãe, policial, chefe, enfermeira, grafiteira, sambista, poeta... A situação das favelas nesta pandemia não é brincadeira e as mulheres são quem mais sofrem, então a gente registrou isso tudo. Fizemos também uma ação chamada Livres Livros. As mulheres estão lendo e, em seguida, escrevem. Tem uma coisa quase de cura na escrita, né? Estudamos a Conceição Evaristo, ela tem uma fala coletiva — em cada palavra dela tem uma multidão ali. É uma experiência incrível.

"A minha ideia mais revolucionária era provocar a universidade a prestar atenção em outros saberes, os saberes das comunidades que são muito fortes. São saberes como ancestralidade, a lida com a violência..." Heloísa Buarque, sobre o projeto Universidade das Quebradas

O POVO - A universidade ainda é profundamente atravessada por um colonialismo epistêmico, por uma noção hegemônica de que alguns conhecimentos são mais legítimos que outros. Qual é a importância da multiplicidade de saberes na academia?

Heloísa: Quando eu criei a Universidade das Quebradas, minha maior preocupação era que a universidade ouvisse. De uma certa forma, é um laboratório decolonial — a gente é interpelado por outros saberes, tem debates que duram muito tempo, então essa multiplicidade é o eixo da Universidade das Quebradas. A minha ideia não era melhorar a vida das favelas, dos artistas da favela: a minha ideia mais revolucionária era provocar a universidade a prestar atenção em outros saberes, os saberes das comunidades que são muito fortes. São saberes como ancestralidade, a lida com a violência... O impacto da Universidade das Quebradas na academia, para mim, era mais radical do que a melhora possível nas favelas. A universidade precisa se abrir para construir, senão vai ficar resistindo com uma coisa europeia.

O POVO - Falando em diversidade, no último mês de março a senhora lançou a obra "As 29 poetas hoje" — revivendo um processo de décadas atrás, quando publicou “26 Poetas Hoje” em 1976. O livro é uma reunião de poetas feministas...

Heloísa: É um livro escrito por poetas com consciência feminista — então fala de coisas que a poesia nunca suportou, como aborto, corpo, menstruação, parto. É sangue, é violência, é impactante tudo o que passa pelo corpo da mulher. São poetas muito boas e com muita diversidade: negras, asiáticas, indígenas, trans… E também uma diversidade regional grande. Só do Ceará tem quatro (Nina Rizzi, Jarid Arraes, Dinha e Érica Zíngano). Eu adoro o Ceará, acho que protegi um pouco (risos).

" O feminismo tem origem em uma demanda coletiva, voto para todas, educação para todas, trabalho para todas." Heloísa Buarque, ao refletir sobre a essência do movimento feminista

O POVO - Ainda no tema literatura e feminismo, as pesquisadoras Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser — uma das suas referências e pares — defendem no livro "Feminismo para os 99%: um manifesto (2019)" que o feminismo neoliberal deixa os 99% para trás e estimula apenas o empoderamento individual das mulheres. Como essa lógica econômica afeta o movimento feminista?

Heloísa: Lá pelos anos 1990, o feminismo se tornou muito neoliberal. Era sobre o sucesso de uma mulher — ser a CEO do Banco Central, por exemplo. Era algo muito individual, uma vitória particular. Mas o feminismo não é isso. O feminismo tem origem em uma demanda coletiva, voto para todas, educação para todas, trabalho para todas. O efeito do liberalismo foi essa lógica meritocrática, essa mulher que chegou lá. Mas isso não nos interessa; o que nos interessa é que mude a posição de todas as mulheres.

O POVO - Para a senhora, portanto, o feminismo precisa ser anticapitalista?

Heloísa: Precisa. A composição da família é uma unidade capitalista: um homem, uma mulher e, supostamente, algumas crianças virão. Você tem uma mulher ali para reproduzir biologicamente e dar cada vez mais mão-de-obra para o mercado; e reproduzir socialmente, porque ela toma conta daquele marido, lava, passa e cozinha para ele ser uma força de trabalho melhor. Os filhos também são formados para o mercado. Eu costumo dizer que, quando um filho dá para poeta, a mãe fica desesperada — ele tem que ser é advogado para servir ao mercado. Se o filho não serve ao capital, diz-se que a mãe errou. Fica muito claro que a figura da mulher nessa função é um nivelador econômico, ao facilitar e formar mão-de-obra. Se a mulher quiser sair dessa posição, é necessário mexer no capitalismo. O capitalismo é fundado em cima dessa unidade familiar. Não é contra os homens que as mulheres que se conclamam, é contra esse modelo de família.

O POVO - A pesquisadora argentina Karina Bidaseca sustenta que a primeira colônia humana foi o corpo feminino; e o colonialismo é entranhado ao capital. Qual é a importância do feminismo decolonial em construção na América Latina? O Brasil se coloca neste debate?

Heloísa: O feminismo decolonial muda a lente. É muito potente olhar a partir do seu lugar, é muito mais eficaz. Na América Latina, o feminismo comunitário indígena é baseado na força das populações indígenas. Já no Brasil, a gente confunde com o feminismo negro, que é nossa prática cultural mais forte... Mas eu acho que a gente ainda vai descobrir a força da marca indígena na nossa cultura. A gente precisa falar muito das comunidades pobres para fazer uma virada brasileira, com os nossos elementos mais construtivos. Eu acho que a gente precisa pegar o nosso lado indígena e o nosso lado caboclo, essa mistura que o Brasil tem. A gente começou há pouco tempo, mas não tem mais caminho de volta.

Heloísa Buarque de Holanda, crítica literária e ensaísta(Foto: Foto: UFRJ)
Foto: Foto: UFRJ Heloísa Buarque de Holanda, crítica literária e ensaísta

O POVO - O feminismo negro constrói fundamentais debates sobre a branquitude como sujeito do racismo, sobre racialização. Quais pensadoras e pesquisadoras são referência no País?

Heloísa: O feminismo negro questiona diretamente a branquitude e isso é maravilhoso. É preciso racializar o branco para poder discutir a questão do racismo. A branquitude não aceita muito, mas eu acho que o caso do George Floyd nos sacudiu. O sujeito do racismo é o branco — o negro não é racista. Esse negócio de racismo reverso, por exemplo, é uma palhaçada. A branquitude tem que assumir essa função de sujeito. Das referências, a minha paixão é a Lélia Gonzalez, porque além do feminismo negro, a Lélia é decolonial. Pra mim, a Lélia e a Sueli Carneiro são lideranças. Tem um feminismo jovem que é muito interessante, mas elas duas ainda são as expoentes do feminismo negro no Brasil.

O POVO - O avanço do pensamento queer latino-americano também tem revolucionado o feminismo — aqui, com forte influência do filósofo espanhol Paul Preciado. Como se constrói a teoria queer no Brasil, o País que ostenta consecutivamente a terrível liderança no ranking mundial dos assassinatos de pessoas trans?

Heloísa: É completamente diferente do queer da Judith Butler nos Estados Unidos — que não traz essa violência profunda dos assassinatos. A posição das pessoas queer no Brasil é terrível, então não é possível analisar da mesma forma. No livro "Pensamento feminista hoje: Sexualidades no sul global", que lancei em 2020, muitos artigos brasileiros apresentam todo uma gama de realidade — no Brasil, o queer é cuir, com "c". O cuir, no País, é objeto de crise. A rejeição e a própria classe social majoritariamente cuir é muito vulnerável. A gente tem que falar de vulnerabilidade.

O POVO - O queer questiona inclusive ao feminismo essa noção de gênero...

Heloísa: O Preciado recusa completamente. Se a gente observar a curva do gênero na história, começa com identidade. Mas não é sobre identidade, é sobre relação — relação de gênero, relação de poder. Essas relações binárias, homem e mulher, são relações de poder. No debate cultural que durou muitos anos, "não se nasce mulher, torna-se mulher", a cultura te forma mulher. Mas a pergunta é: existe biologia? Menina é menina, menino é menino só biologicamente? Essa pergunta acaba com qualquer possibilidade de binarismo. Nos quatro livros que organizei ("Pensamento Feminista: Conceitos fundamentais"; "Pensamento Feminista Brasileiro: Formação e contexto", "Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais" e "Pensamento feminista hoje: Sexualidades no sul global"), em cada obra a gente mexe um pouco dá um passo para frente nessas reflexões.

Heloísa Buarque de Hollanda é ensaísta, escritora, editora, e crítica literária.(Foto: Chico Cerchiaro/ Divulgação)
Foto: Chico Cerchiaro/ Divulgação Heloísa Buarque de Hollanda é ensaísta, escritora, editora, e crítica literária.

O POVO -Judith Butler, uma das principais estudiosas sobre a questão contemporânea do feminismo e a teoria queer, foi inclusive agredida verbal e fisicamente em uma visita ao Brasil em 2017. Mas e a universidade, Heloísa, tem apreendido esses avanços nos debates sobre gênero, sobre decolonialidade?

Heloísa: Eu acho que ainda não. A academia ainda está discutindo coisas muito abstratas… A proposta decolonial implica que o pesquisador seja um ativista, porque você faz sua teoria a partir de uma realidade onde você está atuando. Não é uma coisa só bibliográfica: é uma coisa que parte da sua vida, parte da vida de outras mulheres, você está no campo e elabora uma teoria. Eu acho que o pesquisador que não é ativista não é um pesquisador decolonial, ainda está num modelo de universidade do século XIX, XX. A academia sempre expulsou o ativista afirmando ser empiria. "Empírico" é o maior xingamento, empírico não interessa, empírico é uma realidade bruta, empírico é uma desqualificação para a academia.

O POVO - Como criar uma academia mais diversa, mais plural?

Heloísa: A academia já está sendo questionada por uma geração mais nova. É preciso mexer nesse papel da mulher na universidade: as bibliografias são todas masculinas, o saber da mulher não é contemplado, a experiência social da mulher que pode gerar conhecimento não é reconhecida. Se a ciência é objetiva, essa objetividade é masculina — ela não existe. A universidade ainda é totalmente masculina. Eu não vejo sentido trabalhar o feminismo na universidade sem mudar a universidade.

O POVO - O Brasil vive um contínuo avanço do conservadorismo — e o recrudescimento de direitos historicamente conquistados afeta a todas. Qual é o lugar das mulheres nesse combate ao negacionismo, na criação de outros mundos possíveis?

Heloísa: É um horror o que o País enfrenta. Mas eu acho que podem ter retrocessos institucionais, revisão de leis, proibição de educação sexual nas escolas, cortes a fomentos nas universidades, só que é difícil mudar as cabeças porque a gente deu um passo muito grande nesta Quarta Onda do feminismo. O feminismo realmente entrou na cena, é uma política de vanguarda hoje. Feminismo e meio ambiente são políticas vanguardistas nas quais temos que atuar. Mexendo com o feminismo, mexemos no tecido social direto. É um momento muito lindo, né? Eu acho maravilhosas as mudanças, as revoluções.

 

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