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Fábio Luís Franco: "Politizar a morte é fundamental"
Reportagem Seriada

Fábio Luís Franco: "Politizar a morte é fundamental"

Psicanalista e filósofo, Fábio Luís Franco trata da morte e dos mortos como meio de pensar a vida e os vivos, principalmente em tempos de pandemia
Episódio 35

Fábio Luís Franco: "Politizar a morte é fundamental"

Psicanalista e filósofo, Fábio Luís Franco trata da morte e dos mortos como meio de pensar a vida e os vivos, principalmente em tempos de pandemia
Episódio 35
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As políticas de gestão da morte refletem a importância que temos em vida, principalmente aqueles corpos mais vulneráveis, negros e periféricos. Para o filósofo e psicanalista Fábio Luís Franco, da Universidade de São Paulo (USP), “politizar a morte é fundamental” como “forma de politizar a vida”.

Mas o que significa exatamente politizar a morte? Segundo Franco, é entender os processos de produção da morte e dos mortos, muitos ligados a dinâmicas políticas que determinam o valor que se confere à vida de certos indivíduos em detrimento de outros.

“Alguém que sabe que será chorado, que sabe que a sua morte será lamentada, é alguém que também entende que sua vida tem algum valor”, argumenta o pesquisador.

“Quando o presidente fala e homogeneíza as mortes, quando naturaliza as mortes da Covid”, continua Franco, está em curso uma estratégia de dessensibilização dessa morte. Esse procedimento foi sistematicamente adotado pelo Governo Federal durante a pandemia para mascarar a responsabilidade da gestão pública tanto no número de óbitos quanto para minimizar a morte em si.

Autor de “Governar os mortos”, recém-publicado pela editora Ubu, Franco conversou com O POVO sobre como mecanismos de desaparecimento levados a cabo pela ditadura militar no Brasil se combinaram a outros expedientes da necropolítica nos últimos meses, expressando-se na gestão sanitária. Confira a entrevista.

 

 

Assista à entrevista com Fábio Luís Franco

O POVO – Em “Governar os mortos” (Ubu), o senhor examina mecanismos de desaparecimento institucional durante o período militar a partir do caso de uma vala descoberta décadas depois, em 1990. Como isso se aproxima do Brasil de hoje?

Fábio Luís Franco – Eu, de fato, tomo o caso da vala clandestina do cemitério de Perus (bairro de São Paulo onde fica o cemitério Dom Bosco) como um caso paradigmático. Paradigma, na acepção que uso, é um conceito tomado de empréstimo de um filósofo italiano chamado Giorgio Agamben, para se referir a um caso particular, historicamente e geograficamente circunscrito. É uma vala que foi aberta no início dos anos de 1970, no cemitério da cidade de São Paulo, mas que, ao mesmo tempo em que é histórica e geograficamente situada, permite que nós compreendamos e visualizemos um campo mais amplo de problemas e questões que o ultrapassam, tanto do ponto de vista do espaço quanto no tempo.

Nesse sentido, enquanto paradigma, a vala de Perus permite também que nós pensemos certos fenômenos da atualidade. Inclusive, o post-scriptum do livro tenta pensar esses efeitos e dispositivos (que eu chamo de “necrogovernamentais”, que são dispositivos de gestão dos mortos e da morte) no caso da pandemia no Brasil, particularmente da gestão realizada pelo governo federal. Então pensar dispositivos de necrogovernamentalidade é pensar como certos mortos – e aqui me refiro de fato aos corpos mortos, não faço menção abstrata a uma ideia de morte – têm um destino radicalmente diferente de outros corpos mortos.

Fica evidente pela gestão da pandemia no Brasil, por dados já revelados, que são os corpos negros e pobres aqueles que mais morreram na pandemia, que estiveram mais expostos aos efeitos da gestão genocida do governo. Apesar de ser um caso muito particular (vala de desaparecidos durante a ditadura), permite que a gente visualize a noção de necrogovernamentalidade e formas de gestão dos mortos que são muito contemporâneas. Um outro caso que acho que vale a pena mencionar, tentando trazer a discussão para a atualidade, é como esses dispositivos de desaparição já estavam em funcionamento antes da ditadura e permanecem funcionando no pós-ditadura, vinculados às instituições de gestão dos corpos mortos.

Uma das recomendações, por exemplo, da Comissão Nacional da Verdade, no seu relatório final, era a reestruturação das instituições de perícia e dos IMLs. Isso está fortemente ligado a uma discussão sobre como elas criavam determinados tipos de corpos como corpos não-identificados, como corpos desaparecidos. A criação do corpo desaparecido ou não-identificado é uma produção institucional também. Não é um acaso, não é algo que acontece porque alguma coisa falhou simplesmente. Ela é algo que faz parte de uma política de gestão de determinados corpos.

O POVO – Isso é feito com que objetivo?

A outra matriz são os desaparecimentos forçados, perpetrados no âmbito das guerras contrarrevolucionárias, que tiveram lugar contra os movimentos de independência das colônias, como as colônias francesas. Isso é muito bem expresso numa afirmação do Paulo Malhães, aquele ex-agente da ditadura brasileira envolvido na administração de diferentes tipos de equipamentos clandestinos de tortura e desaparecimento no Brasil. Quando fala à Comissão Nacional da Verdade, ele diz: o desaparecimento vem para produzir terror. Uma coisa é ver o corpo. Terror muito maior se produz quando não se tem acesso ao corpo, quando não se tem notícias do que aconteceu, do paradeiro.

Essas duas matrizes se juntam na ditadura brasileira, que se vale desses dispositivos já existentes nessas instituições de gestão dos corpos, mas os vincula a uma estratégia política e sistemática de ação e de repressão aos movimentos de oposição à ditadura. E não só aos movimentos de oposição declarados. É importante lembrar que o desaparecimento aconteceu envolvendo muitos setores da população de que sequer temos notícias. O desaparecimento dos indígenas, de grandes setores da população LGBTQIA+, como foi revelado em diferentes pesquisas; desaparecimento de trabalhadores, de camponeses. Essa máquina “desaparecedora”, visando produzir uma espécie de guerra psicológica pela intensificação do terror, é o que orienta o funcionamento desses dispositivos de gestão.

Fábio Luís Franco, psicanalista e filósofo(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Fábio Luís Franco, psicanalista e filósofo

O POVO – E aí saltamos para a pandemia de Covid, com os seus mais de 600 mil “desaparecidos”, ou seja, pessoas que não puderam ser pranteadas.

Fábio Luís Franco – No caso da pandemia, temos três coisas para comentar. Uma, como você mencionou, foram os muitos corpos que não puderam ser pranteados e cujo processo de luto foi negado, por muitas razões, inclusive porque os protocolos sanitários impediam a realização de velórios e aglomerações daí decorrentes. Mas é importante lembrar também duas outras coisas. Primeiro, uma espécie de efeito de desrealização ou de desaparição da própria morte provocada pela Covid-19, por meio de uma estratégia de dessensibilização social mobilizada, por exemplo, em discursos do presidente, que dizia: veja, mortes acontecem mesmo, acontece com todo mundo, “e daí?”, todo mundo vai morrer mesmo. Foram várias as vezes em que ele tentou, via naturalização da morte, desrealizar, ou seja, tirar a realidade dessas mortes que estavam sendo provocadas por uma política deliberada de exposição da população ao contágio generalizado.

Temos uma desrealização da morte, que é um dos efeitos que identifico como parte dos dispositivos de necrogovernamentalização. A terceira coisa que me parece importante lembrar ainda sobre a Covid tem a ver sobre como o poder necrogovernamental, vinculado aos organismos federais, opera na tentativa de também produzir o desaparecimento dos números da pandemia. Falamos de 600 mil, é verdade, são os dados que temos, mas houve um período intenso de mudanças nas políticas de contagem dos mortos. Mudava-se do dia para a noite, e essa mudança vinha de cima pra baixo, pediam-se dados que não eram os dados inicialmente solicitados na contagem. Muitas coisas aconteceram envolvendo o SUS, para além da própria destruição do SUS, que prejudicaram enormemente a contagem desses mortos.

O POVO – Sumiram com o número de óbitos, e entrou o “placar da vida”, disseminado pela Secretaria de Comunicação do Governo. Foi uma forma que o presidente encontrou de mascarar essas mortes?

Fábio Luís Franco – Isso, muito bem lembrado. Era o “placar da vida” substituindo o de mortos, isso como política de Estado, porque era a Secom, uma secretaria de Governo, que estava veiculando essas informações e mudando a forma de exposição, de divulgação e de publicização desses dados. Claro que isso tem um efeito populacional e sobre as mortes, um efeito bastante importante porque efetivamente não sabemos quantos mortos tivemos. Sabemos desses 600 mil, o que é um número assustador. E para além deles? A partir desses dispositivos necrogovernamentais, sistematizados e estruturados pela ditadura brasileira, e da composição do ensinamento dos militares estrangeiros a respeito do desaparecimento forçado com os próprios processos de instituições já existentes no país, me parece que isso nos diz muito sobre o que vem se passando no Brasil atual com relação à gestão dos mortos na pandemia.

O POVO – Na ditadura, essa dessubjetivação das mortes tinha um propósito político, como o senhor já destacou. Nessas estratégias do governo federal na pandemia, como dizer que tem que “enfrentar o vírus feito homem”, percebe também um propósito político?

Fábio Luís Franco – Sim, certamente. Tento pensar algo disso primeiro fazendo referência a uma estratégia de produção de dessensibilização, acho que isso é importante. Critico um pouco essas leituras que dizem que o governo federal é insensível com relação a essas mortes. Não me parece que seja uma questão de insensibilidade. Parece que é uma estratégia concertada de produção de dessensibilização. Claro que tem uma estratégia de produção de desinformação, de caos informacional, muita gente vem trabalhando em torno disso, mas também penso nessa produção. As mortes acontecem, não tem a ver com o governo, é a morte, todo mundo vai morrer, como ele reiteradamente diz.

Com todas as mediações que é necessário fazer, sendo mais rápido e dando um salto um pouco maior, a desrealização das mortes por Covid permite essa política de contrainformação. Quantos morreram? A gente não sabe exatamente, os números estão aí, e, como falamos antes, estão sofrendo esses múltiplos processos de confusão e de caos de gestão. E aí entram as estratégias de contrainformação: “são mortes que acontecem”, “o que podemos fazer?”, “eu não sou coveiro”, “não faço milagre”.

Há uma inversão no discurso presidencial de quem é o responsável pela crise brasileira. Deixa de ser o governo federal – afinal de contas, ele não faz milagres, não é coveiro –, e os responsáveis passam a ser aqueles que choram, que lamentam, que criticam. Esses são os histéricos, que fazem mimimi. Portanto, essa estrutura, eu vou chamar, a partir de alguns autores da psicanálise, de maneira de pensar o Estado como uma unidade e como um corpo todo, numa lógica masculina (como chamo com Lacan), diante do qual toda crítica e toda oposição só podem ser vistas como algo perturbador. Aqueles que criticam e que denunciam, esses são os que perturbam de fato.

Fábio Luís Franco, psicanalista e filósofo(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Fábio Luís Franco, psicanalista e filósofo

O POVO – Há uma quase privatização da responsabilidade. A culpa não é do mandatário, do Estado, mas do indivíduo?

Fábio Luís Franco – É do indivíduo, algo muito conforme e adequado a uma lógica de funcionamento neoliberal, sobretudo vinculado a um segundo momento do neoliberalismo, à forma como o neoliberalismo foi afirmando a primazia do indivíduo, o que aparece num discurso famoso da Margaret Thatcher: não há sociedade, há apenas indivíduos, e esses indivíduos passam a ser os únicos responsáveis pelo sofrimento na pandemia e pelas consequências da pandemia. Ficamos sabendo, por exemplo, de pessoas terem que levar esses doentes para hospitais fazendo vaquinhas ou tendo de conviver por horas com um corpo até que esse corpo pudesse ser recolhido. Então é tudo responsabilidade dos indivíduos, nada ali passa por uma responsabilização estatal a partir da lógica de funcionamento desses discursos e desses dispositivos.

O POVO – A pandemia aprimorou essas técnicas de desaparecimento ou desaparição?

Fábio Luís Franco – Acho que a pandemia trouxe novos elementos. Uso essa noção de dispositivo, que é emprestada do Foucault, exatamente para dar conta da plasticidade desses mecanismos e dessa racionalidade de gestão dos cadáveres. Em certa medida, a pesquisa que apresento no livro poderia ser prolongada. Eu paro num dado momento ali, mas poderia ser ampliada para pensarmos como que as milícias, por exemplo, contribuem e trazem novos elementos para o funcionamento desses dispositivos de gestão necrogovernamental. E aí temos os casos de desaparecimento que não cessam de nos interpelar. Evidentemente, a pandemia e a gestão do governo federal na pandemia trazem outros elementos para esses dispositivos, como estamos percebendo.

A questão que fica é: como vem se dando a gestão dos cadáveres neste momento e a que se propõe essa gestão? Talvez o objetivo geral do meu trabalho, em vez de fazer um diagnóstico exaustivo e criar um modelo fixo e predeterminado para analisar as situações, seja lançar algum tipo de questionamento e de politizar as formas de gestão dos corpos como um problema permanente e constante para o qual precisamos olhar e sobre o qual temos de intervir. A pandemia apenas expõe, de forma ainda mais nítida, como que o tempo todo falar de política não é apenas falar das formas e condições de gestão da vida, mas das formas e condições de gestão da morte e dos cadáveres. Isso me parece algo central.

O POVO – Poderia citar mais exemplos de necropolíticas que foram adotadas pelo governo nesse período de pandemia?

Fábio Luís Franco – Nós temos no Brasil, lamentavelmente, um terreno muito fértil de formas e mecanismos de gestão da morte e dos mortos. Tento trabalhar com essa ideia de necropolíticas, no plural, principalmente para pensar que, no caso brasileiro, mas não apenas, para restringirmos um pouco o escopo da nossa conversa, a necropolítica, tal como foi pensada por Mbembe, ou seja, como uma política que toma a morte como seu objetivo primário e absoluto, não é exclusividade do Estado. É claro que conta com o Estado, depende do Estado, mas não se faz sem as articulações entre Estado e mercado.

Um outro caso importante de lembrar é pensar nas formas de gestão precarizada do trabalho, essas formas que expõem o trabalhador permanentemente ao risco da morte, seja da morte violenta no trânsito, no caso dos entregadores, seja no risco de morte em razão da própria precarização das condições de existência. Todas essas formas de exposição dos trabalhadores à morte participam, em certa medida, de uma política que se realiza e se articula com o mercado tendo, dentro dos seus objetivos, a exploração do trabalho via mortificação e exposição à morte.

O POVO – O presidente faz uso frequente da figura da morte nas suas falas durante a pandemia. Como psicanalista, como avalia isso?

Fábio Luís Franco – Eu tento não falar enquanto psicanalista, por duas razões. Primeiro, porque o psicanalista é uma função muito mais do que uma pessoa; e, em segundo lugar, porque me parece muito difícil falar dessas questões sem ouvir aquele a respeito de quem se fala. Mas, pensando no âmbito da minha pesquisa, me parece que o elemento fundamental aqui é: de qual política da morte estamos falando?

A política da morte não é algo que esteja fora da disputa. Uma política da morte não necessariamente está vinculada ao que estou chamando aqui de estratégias de desrealização e desaparecimento, de exploração do trabalho e da produção da intensificação do trabalho; ou daquilo que vou nomeando de estratégias de produção do cadáver não identificado. Isso é uma dimensão da necropolítica e da necrogovernamentalidade vinculada aos sistemas de poder que anseiam pela dominação e pela alienação, aos dispositivos do poder colonial e aos do imperialismo global. O discurso da morte está aí presente. Está presente não só nas falas do presidente, mas existe também nos movimentos sociais e políticos, nos movimentos das mães de jovens vítimas de violência policial. O tempo todo elas falam da morte. Mas se trata da mesma morte? Parece-me que não.

O que esses movimentos tentam fazer é disputar o que entendemos como política da morte. Que morte queremos. Isso é algo que, muitas vezes, cai longe do discurso ou das agendas políticas mesmo das esquerdas. O que significa, para nós, morrer? O que é uma morte digna? Aqui uma ideia fundamental, que trago da Butler, é: a morte é algo que dá significado à vida. Ela diz isso de uma maneira muito bonita quando fala que a gestão das condições de “enlutabilidade” diz algo das condições de vida de alguém. Alguém que sabe que será chorado, que sabe que a morte será lamentada, é alguém que também entende que sua vida tem algum valor.

Quando o presidente fala e homogeneíza as mortes, naturaliza as mortes da Covid, mas, ao mesmo tempo, tem um grupo que pergunta sobre quem quis matar o presidente, mas não fala, por exemplo, sobre quem matou Marielle... Pelo contrário, quebram a placa da Marielle e fazem de tudo para atrapalhar a Justiça... Veja, a gente está aqui num ponto de tensão em que a morte se torna objeto político fundamental: quais mortes são aquelas que devem ser lembradas e como e quais mortes são aquelas que devem ser desrealizadas e como? Politizar a morte é fundamental porque politizar a morte é uma forma de politizar a vida.

 

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