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Encontros e despedidas, uma versão da pandemia
Reportagem Seriada

Encontros e despedidas, uma versão da pandemia

A área em frente do Hospital Leonardo Da Vinci, em Fortaleza, se transformou em uma estação de encontros e despedidas por conta da pandemia do novo coronavírus, que insiste há mais de 50 dias no Ceará. O POVO conta alguns desses momentos e se vale canção de Fernando Brant e Milton Nascimento
Episódio 1

Encontros e despedidas, uma versão da pandemia

A área em frente do Hospital Leonardo Da Vinci, em Fortaleza, se transformou em uma estação de encontros e despedidas por conta da pandemia do novo coronavírus, que insiste há mais de 50 dias no Ceará. O POVO conta alguns desses momentos e se vale canção de Fernando Brant e Milton Nascimento
Episódio 1
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Encontros e despedidas, de Fernando Brant e Milton Nascimento, é a canção dentro do texto jornalístico que dá conta de um ínfimo do cotidiano que se tornou dramático para tantas milhares de pessoas. Nossos familiares, vizinhos ou quem nunca vamos ter a chance de conhecer. Ínfimo é modo de dizer da tragédia particular e coletiva que vai desmanchando alguns mundos. Da hora em que o vírus chega, silencioso, ao desfecho de cura ou da infelicidade da partida por causa da Covid-19.

Eu e o repórter fotográfico Júlio Caesar fizemos vigília em frente aos hospitais de Campanha (Presidente Vargas) e Leonardo Da Vinci para contar os Encontros e despedidas de quem foi ter pela derradeira vez com bem-querer ou teve o alívio de retorná-lo vivo para casa. Avós, filhas, mães, irmãs, pais, tias...

 


A derradeira vez com a mãe

A neta, os dois filhos e o marido da neta foram ver pela última vez Maria Lúcia da Silva Nascimento. A mãe de todos, que viveu 80 anos por aqui, estava há uma semana na área vermelha do Hospital Leonardo Da Vinci e não resistiu à invasão da Covid-19. Ver alguém pela última vez virou um hábito antigo em Fortaleza, por conta da pandemia. Rápido, em dois meses, o novo coronavírus envelheceu alguns costumes, crenças e mentalidades.

"A hora do encontro também é despedida..."

Ninguém pode vê-la. Ninguém a via há pelo menos duas semanas quando foi internada na UPA do Autran Nunes, na periferia da capital cearense e, depois, transferida para o isolamento do Leonardo da Vinci, na Aldeota.

Souberam da morte da matriarca Maria Lúcia e correram para liberar o corpo, o último encontro. Não puderam se despedir num velório entre familiares, parentes, vizinhos e amigos da moradora do bairro João XXIII. “Ligaram para minha irmã e ela me deu o recado para vir buscar mamãe”, lamentava Aderson de Lima um dos quatro filhos da dona de casa.

A irmã de Aderson da Silva, Aldenísia, filha de Maria Lúcia, também estava internada por causa da Covid-19 a poucas ruas do Leonardo Da Vinci. Num outro Hospital, a Otoclínica, brigando contra a inopinada da infecção que se espalhou por Fortaleza. Não deu tempo se despedir da mãe.

"Tem gente a sorrir e a chorar. E assim, chegar e partir..."

“Vai ser caixão lacrado. Sem velório, sem nada. Sai daqui, vai direto para o cemitério”, ressentiu Aderson que entrava e saia com Haroldo, outro irmão, na recepção do hospital. Desde meio dia tentavam levar a mãe dali e descansá-la num sepultamento. Já passava das 16 horas e nada.

Enquanto o corpo de Maria Lúcia aguardava que as burocracias se resolvessem, para a despedida de longe no Jardim do Éden, um cemitério na Região Metropolitana de Fortaleza, outra família havia vindo buscar um bem-querer que a Covid-19 também ausentou deles.

 


Não coube no caixão, homem forte, grande...

“Meu único irmão, meu único irmão”, chorava e dizia em voz baixa Kátia da Silva. Francisco Sidney, 42 anos, era vigilante de profissão, mas estava desempregado (fazendo avulso) quando o vírus o contaminou no bairro Prefeito José Walter, no subúrbio de Fortaleza.

O último encontro, em vida, com o irmão se deu no dia 25 de abril, quando Sidney deu entrada na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Zé Walter e, no mesmo dia, foi transferido para o hospital Leonardo Da Vinci. “Antes, tinha ido para o posto de saúde. Lá, disseram que era apenas uma gripe ou reação à vacina H1N1, ele voltou para casa e depois piorou”, conta moça.

Para buscar Francisco Sidney, depois que o hospital avisou do falecimento, foi para lá quem poderia ir e quem se arriscou sair de casa para a despedida. Dona Ana, 88 anos, avó de Sidney foi ter com o neto. Não sabia dizer se estava com medo, não tinha nem parado para pensar da fragilidade e do risco de estar ali em frente ao Leonardo Da Vinci. “Eu vim, era um rapaz querido”, disse atrás da máscara. Em fevereiro agora, o marido havia morrido.

"Todos os dias é um vai e vem, a vida se repete na estação..."

A mãe de Sidney, Maria Eliene da Silva Dias, 64, também não teve tempo para pensar que ela e dona Ana eram de um grupo de gente vulnerável ao novo coronavírus. “Ele não é cachorro, é meu filho. Já basta que a gente nem vai ver ele mais”, me diz com tristeza e um sentimento arredio. “A filha dele, de dois anos, fica chamando por ele. ‘Papai, papai’. Dizer o que pra ela?”, pergunta e sai.

O corpanzil de Francisco Sidney, por último, não coube no caixão. Foi mais dor para Ana Priscila, a esposa, por causa de um erro da funerária. Foram para cima e foram para baixo e a funerária não conseguiu uma urna maior.

“Falaram em um caixão baleia, não sei o que é”, dialogou com a sogra Maria Eliene e outros parentes em frente ao Leonardo Da Vinci.

"Ele não é cachorro, é meu filho. Já basta que a gente nem vai ver ele mais" Maria Eliene, mãe

Às 16h23min de uma quarta-feira, após quase quatro horas e meia à espera da saída de Sidney, resolveram de maneira improvisada a acomodação do rapaz na urna funerária. “Passaram um laço, no caixão (que ia ser lacrado) e iam fazer uma troca no próprio cemitério”, disse a mãe Maria Eliene. Foram embora.

Um pouco antes, às 16h05min, o corpo de Maria Lúcia da Silva Nascimento, 80 anos, a personagem do começo dessa narrativa, havia também saído do necrotério do Leonardo Da Vinci. Depois de mais de quatro horas de expectativa (das duas famílias) para o encontro e a despedida estranha em tempos de Covid-19.


Renata de Oliveira foi levar artigos de higiene para o esposo que está internado. Os enfermeiros realizaram chamada de vídeo para avisar Renata da necessidade dos materiais e informar o estado do esposo(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Renata de Oliveira foi levar artigos de higiene para o esposo que está internado. Os enfermeiros realizaram chamada de vídeo para avisar Renata da necessidade dos materiais e informar o estado do esposo

Pasta de dente, escova, os óculos...

Quase na mesma hora que as famílias se preparam para se despedir de Maria Lúcia e Francisco Sidney, Renata de Oliveira, 38 anos, diarista, encontrava o alento da esperança.

O esposo, o marinheiro mercante Wladimir Sousa Santos, 43, estava se recuperando dos problemas agravados pelo coronavírus. “Recebi uma chamada de vídeo, a enfermeira fez. Acredita? Era pra eu trazer as coisas pra ele. Pasta, escova, os óculos que esqueceu no sufoco e creme pra pele”, sorria no vai e vem em frente ao Leonardo Da Vinci.

"Mande notícias do mundo de lá, diz quem fica..."

Wladimir Sousa, descrevia Renata entre aperreada e feliz, até ali era um milagre. Tinha diabetes, pressão alta e entrou tossindo e “querendo ficar sem o ar”. Antes, a esposa o levou às pressas do bairro do Barroso II para a UPA do Zé Walter. Deu entrada no feriado de 1º de Maio e, dois dias depois, foi transferido para o Leonardo Da Vinci.

"O trem que chega é o mesmo trem da partida..."

“Me disseram que sairá em duas semanas. Deus queira! Meus dois filhos estão isolados e eu noutra casa. Vamos esperar, né!”, desejou e apressou o passo para ir embora naquele fim de tarde do dia 5 de maio deste ano da pandemia no Ceará.

FORTALEZA-CE, BRASIL, 05-05-2020: Socorristas retiram da ambulância paciente transferida de uma UPA para o Hospital Leonardo Da VInci. Movimentação em frente ao hospital Leonardo Da VInci. ( Foto: Júlio Caesar / O Povo)(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR FORTALEZA-CE, BRASIL, 05-05-2020: Socorristas retiram da ambulância paciente transferida de uma UPA para o Hospital Leonardo Da VInci. Movimentação em frente ao hospital Leonardo Da VInci. ( Foto: Júlio Caesar / O Povo)

Tensão contínua

Às 15h15min, do interior da ambulância 128 do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), de Fortaleza, uma senhora bem idosa e miúda, enrolada num lençol rosa, era desembarcada para o isolamento do Leonardo Da Vinci. Entrou em cima de uma maca pela mesma porta do corredor onde os falecidos são retirados para os carros funerários.

Vinte e quatro minutos depois, outra ambulância, agora da rede privada, trazia um paciente da Unidade de Pronto Atendimento de Messejana. Rádio comunicador na mão, o vigilante do Hospital avisava que Celestino Pereira da Silva era mais um a se valer do socorro do Leonardo Da Vinci.

Na frente do hospital, que ocupa uma quadra quase toda na rua Rocha Lima entre Rui Barbosa e José Lourenço, na Aldeota, um vai e vem de gente querendo notícia de quem estava dentro, nos labirintos da Covid-19... Também um vigilante barrando a entrada... Familiares querendo “velar” seus mortos ou abraçar curados e agentes funerários esperando por finitudes.

"Tem gente que vai pra nunca mais... Tem gente que vem e quer voltar"

Das 14h30min às 18 horas, saíram cinco caixões lacrados do necrotério para os cemitérios de Fortaleza e Região Metropolitana. Um deles, o de Esmeraldina do Nascimento Rodrigues. Uma mulher jovem, de 40 anos, mãe de dois filhos. Um de 17 anos e outro de 5. O esposo, Cléssio Feitosa, 49, chegou ao meio dia e, somente, perto das 17 horas conseguiu liberar o corpo da esposa. Não deu tempo falar, foi embora com a história dele e da companheira retirada tão cedo.

Hélder Barbosa, agente funerário, e Haroldo Nascimento, que perdeu a mãe, falam da liberação do corpo de Maria Lúcia do Nascimento, vítima da Covid-19(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Hélder Barbosa, agente funerário, e Haroldo Nascimento, que perdeu a mãe, falam da liberação do corpo de Maria Lúcia do Nascimento, vítima da Covid-19

Do laudo de fora, Hélder Barbosa, 53, motorista da funerária Henrique Jorge se queixava para mim de Camilo Santana (PT). E o que foi? Pergunto. “Somos também da linha de frente da pandemia, passamos o dia carregando os corpos e o governador não fala nem na gente! Nenhuma nota pra dizer que ‘eu lembro de vocês!”, pedia visibilidade o agente funerário. (Demitri Túlio)

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