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O impacto da pandemia em casa, no ônibus e na ponta do atendimento
Reportagem Seriada

O impacto da pandemia em casa, no ônibus e na ponta do atendimento

Dona Cléo é técnica de enfermagem, categoria mais atingida de profissionais de saúde. São os mais próximos do paciente. Ela tem diabetes, o que aumenta o risco, e trabalha no hospital de referência para Covid-19. Pela ótica dela, O POVO percorre a trajetória de um ano de pandemia a partir da ponta e também os efeitos para o cotidiano de qualquer pessoa, como a relação com a família e ter de pegar ônibus — para ela são três todo dia para ir ao trabalho
Episódio 6

O impacto da pandemia em casa, no ônibus e na ponta do atendimento

Dona Cléo é técnica de enfermagem, categoria mais atingida de profissionais de saúde. São os mais próximos do paciente. Ela tem diabetes, o que aumenta o risco, e trabalha no hospital de referência para Covid-19. Pela ótica dela, O POVO percorre a trajetória de um ano de pandemia a partir da ponta e também os efeitos para o cotidiano de qualquer pessoa, como a relação com a família e ter de pegar ônibus — para ela são três todo dia para ir ao trabalho
Episódio 6
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A pandemia transpôs o cotidiano e foi deixando marcas na cidade que, há um ano, vive em constante estado de alerta. Não houve ensaio nem preparação suficientes. Estruturas de saúde chegaram prestes ao colapso. Nas unidades de assistência, mulheres e homens trabalham incessantemente, quase em esgotamento.

As mudanças acompanham cada um nos expedientes desafiadores e exaustivos, no distanciamento dos familiares e amigos. Doze meses de medo e coragem. Após semanas nas quais se respirou o intervalo sem aumento de novos casos e mortes, a segunda onda da pandemia chega com variantes do vírus, nenhuma perspectiva de vacinação em massa e novas dúvidas. A agonia permanece: quando chegaremos ao fim?

UM ANO DE PANDEMIA | O que mudou na compreensão da Covid-19

Essa preocupação martela na cabeça de Maria Cleonice Silva, 50 anos, em meio aos cuidados de pacientes com Covid-19 internados em Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Dona Cléo, como é chamada pelos pacientes e colegas, é técnica de enfermagem, uma das funções cujo contato com os internados é mais direto e constante. Os profissionais são presença ininterrupta e o apoio mais próximo para pacientes solitários no isolamento de um leito de UTI.

Técnicos e auxiliares em enfermagem são a categoria com maior número de casos confirmados entre os profissionais de saúde, com 4.366 dos diagnósticos positivos. O que corresponde a 21,47% do total (até 18 de fevereiro). Com quase uma década na função, Dona Cléo, que já recebeu as duas doses da vacina contra a infecção, deparou-se com rotinas antes desconhecidas. No correr entre um paciente e outro que precisa de assistência. Na demanda infindável frente a uma estrutura limitada, seja de equipamentos hospitalares ou de forças humanas. No trajeto para o trabalho, com o cuidado de evitar pegar corrimões nos três ônibus que utiliza diariamente. Em casa, no abraço que deixa de dar no filho quando chega do hospital.

Maria Cleonice Silva, dona Cléo, técnica da enfermagem que foi para o hospital de referência no combate à Covid-19(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Maria Cleonice Silva, dona Cléo, técnica da enfermagem que foi para o hospital de referência no combate à Covid-19

 

 

Profissional com comorbidade na linha de frente

Ela trabalha há nove anos no Hospital de Messejana Dr. Carlos Alberto Studart Gomes. Mas, quando a unidade começou a receber casos da doença, a possibilidade de trabalhar diretamente com a infecção assustou a técnica, que tem diabetes, comorbidade de risco. Os primeiros três casos da Covid-19 no Ceará foram confirmados em Fortaleza no dia 15 de março. Logo após, o convite para outro desafio: integrar o corpo clínico do Hospital Leonardo da Vinci. A unidade particular até então foi requisitada em março de 2020 pelo Governo do Estado para ampliar a oferta de leitos público no tratamento da doença.

Hospital Leonardo da Vinci(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Hospital Leonardo da Vinci

Se a vigilância é contínua em qualquer unidade de internação, no caso da Covid-19, o monitoramento é mais rígido ainda. Apostos e diligentes, técnicos monitoram sinais como glicemia, temperatura, saturação e pressão. A qualquer sinal de mudança grave, a equipe é acionada. “Você precisa ter muito cuidado porque de uma hora para outra pode ter uma complicação. Aí, chama todo mundo, médico corre, enfermeiro corre. Às vezes, o paciente está ok. Você sai e quando volta, teve uma descompensação. Debilita o paciente de um jeito que você não entende. Precisa entubar imediatamente”, conta.

"No começo do Covid-19 era tão triste. Eu pensava: ‘Meu deus, eu não vou aguentar’. A gente perdeu alguns profissionais, perdi uma amiga que trabalhava comigo. Muita gente ficou doente." Maria Cleonice da Silva, técnica de enfermagem

 

“Minha filha chorava porque não queria, com medo. Eu dizia: ‘Minha filha, não vou abandonar, é o que eu gosto de fazer. As pessoas estão precisando’. Comecei no Leonardo da Vinci no dia 5 de abril”, lembra. Todas as noites, às 19 horas, ela “recebe plantão”. Momento no qual é repassado o que aconteceu durante o dia, a situação dos pacientes para que os cuidados tenham continuidade. Dar banho no leito, se for preciso, trocar fralda, administrar medicações.

Hospital Estadual Leonardo da Vinci (HELV) foi adquirido pelo Estado para atender pacientes de Covid-19(Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA Hospital Estadual Leonardo da Vinci (HELV) foi adquirido pelo Estado para atender pacientes de Covid-19

“No começo do Covid-19 era tão triste. Eu pensava: ‘Meu Deus, eu não vou aguentar’. A gente perdeu alguns profissionais, perdi uma amiga que trabalhava comigo. Muita gente ficou doente. Muitos saíram com medo, quem tinha idoso ou criança pequena em casa. A gente tinha que cobrir a falta. Teve momentos que era uma coisa incansável. Paciente entrava, ficava dessaturando, a gente corria atrás de cateter nasal, máscara reservatória. Uma noite, vi uma idosa tendo parada e comecei a chorar. Pensei se fosse minha mãe. Teve uma hora que minha força acabou. Pensei em desistir”, emociona-se.

"A gente tenta fazer eles se sentirem seguros. Eles sentem confiança na gente. A gente vê situações muito complicadas. Os técnicos é que ficam mais do lado deles." Maria Cleonice, dona Cléo, técnica de enfermagem

 

Além dos cuidados técnicos, dona Cléo é escuta, acolhimento e conforto para os pacientes em unidades de internação de alta complexidade. Quando não estão entubados, muitos pedem companhia, gostam de conversar como que para driblar as saudades de casa, o medo da morte. “A gente tenta fazer eles se sentirem seguros. Eles sentem confiança na gente. A gente vê situações muito complicadas. Os técnicos é que ficam mais do lado deles. Conhecem mais a preocupação, ficam deprimidos, querem a gente perto. A gente fica pedindo a Deus para não ter nenhum óbito.”

Mesmo com a exposição intensa e contínua ao vírus, ela não foi infectada. Mas, em meio a um plantão, passou por um susto. No dia 20 de dezembro, no Hospital do Coração (de Messejana), começou a sentir umas dores irradiando para o braço esquerdo. “Levaram para o ECG (eletrocardiograma) e eu já estava infartando, fizeram o cateterismo. Fiquei internada lá”, conta. Após algumas semanas afastada, ela retornou ao trabalho. “Minha família diz que eu sou doida. O pessoal do hospital perguntou se queria ficar mais tempo em casa. Mas eu fico doente é se ficar em casa. Agora, tento dormir mais, meu filho que faz tudo. Estou tentando me alimentar melhor também”, relata.

Entre os sacrifícios mais sofridos, a distância da filha, que só vê pelo celular ou na entrada de casa. Os sustos e angústias dos últimos meses não arrefecem o amor de dona Cléo pela profissão, na qual deseja atuar “até os 70 anos”, brinca. “Quando a gente gosta é assim. Queria ser o Super-Homem. É muito bom fazer algo por alguém e ver as pessoas gratas por isso”, orgulha-se.

 

 

FORTALEZA,CE, BRASIL, 09.02.2021: Movimentação nos hospitais publicos que atendem casos de covid. Hospital Leonardo Da Vinci.  (Fotos: Fabio Lima/O POVO)(Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA FORTALEZA,CE, BRASIL, 09.02.2021: Movimentação nos hospitais publicos que atendem casos de covid. Hospital Leonardo Da Vinci. (Fotos: Fabio Lima/O POVO)

 

 

Os medos e cuidados de quem está "no quente"

Profissionais como dona Cléo, que compõem equipes formadas desde a estruturação da unidade, acompanham os impactos da disseminação da doença nas hospitalizações, as mudanças e os impactos da segunda onda, quando Fortaleza está prestes a completar 1 ano desde as primeiras confirmações da infecção. Os desafios enfrentados pelas equipes chegaram com uma rapidez desconhecida. Priscila Brandão, enfermeira do Leonardo da Vinci e coordenadora da UTI Covid-19 onde dona Cléo atua, relata as dificuldades para a implantação das equipes na unidade. “Não teve ensaio, tempo de preparação ou muito planejamento. A gente planejava e antes de implementar já estava mudando.”

As famílias dos profissionais temiam a exposição. Ela conta que, a princípio, quando convidada para trabalhar no Leonardo da Vinci, poucos aceitavam prontamente. “Cheguei para montar uma equipe. Naquele momento, houve uma necessidade muito grande de contratar profissionais. A gente barrou no empecilho de encontrar esses profissionais. Lá, era a cara do Covid-19. Você já ia entrar no “quente”, como as pessoas dizem”, conta.

" O elmo é uma novidade desenvolvida lá no hospital que foi um benefício muito grande." Dona Cléo

Era o medo do novo, da rotina desgastante, do comportamento de tudo. Nesse período, “era muito de se colegiar todas as decisões” entre os profissionais. Com o tempo e experiência, mudanças foram feitas e as equipes conquistaram maior segurança. “Aconteceram mudanças terapêuticas. Foram feitos muitos testes de muitas drogas que acabaram saindo. O elmo é uma novidade desenvolvida lá no hospital que foi um benefício muito grande. A posição prona (de bruços) entubado ou não entubado funciona muito bem. Antes, muitos tinham dificuldade de virar o paciente entubado. Hoje, o pessoal tá craque”, explica.

Movimentação de ambulâncias e pacientes chegando ao hospital Leonardo da Vinci(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Movimentação de ambulâncias e pacientes chegando ao hospital Leonardo da Vinci

Os cansativos protocolos de segurança, com utilização de EPIs continuam. “A gente ainda trabalha com o sistema fechado. Não é permitido circulação entre unidades. São sete unidades, uma por andar. Dentro das enfermarias, é exigido o EPI por completo. Em qualquer parte do hospital, máscara e gorro 100% do tempo, e roupa privativa”, detalha.

Em outubro, Fortaleza começou a registrar aumento de casos que foi seguido, semanas depois, por aumento de hospitalizações. Em novembro, a gestão anunciou compra do hospital, com objetivo de reduzir a fila de cirurgias eletivas. A esta altura, apenas uma das sete unidades de internação estavam atendendo exclusivamente Covid-19.

"“Mais gente jovem. A gente não sabe ainda o que é e o que não é variante." Dona Cléo

Com a nova onda, um novo perfil de pacientes, outras dúvidas e a mesma aflição. “Mais gente jovem. A gente não sabe ainda o que é e o que não é variante. No início, era muito paciente idoso e os jovens chegavam com perfil de enfermaria. Um ou outro mais grave. Continuamos vendo perfil com comorbidades, principalmente obesidade”, diferencia Priscila.

"as histórias são infinitas”. “Pacientes que vieram de férias, sentiram sintomas aqui e morreram aqui. A gente entende a angústia da família. A pessoa entra e não vê mais ninguém."

 

Durante a trajetória, ela não esquece cada experiência vivida: “as histórias são infinitas”. “Pacientes que vieram de férias, sentiram sintomas aqui e morreram aqui. A gente entende a angústia da família. A pessoa entra e não vê mais ninguém. A gente sente quando as famílias que entregam o seu ente querido e recebem um saco fechado. Não pode se despedir, dar um último adeus”, lamenta.

Maria Cleonice da Silva, Dona Cléo, técnica de enfermagem(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Maria Cleonice da Silva, Dona Cléo, técnica de enfermagem

 


Rotina doméstica na pandemia

 

Se para todos a distância foi um tormento, para os profissionais de saúde o medo de infectar entes queridos é ainda maior. Dona Cléo passa todas as noites trabalhando nas duas unidades de saúde em que atua. Por outro lado, para o filho, a casa tornou-se local de trabalho. Clécio Pinto da Silva, 31, é professor de filosofia e passou a ministrar aulas de forma remota. Pelo trabalho da mãe, os dois sentiram o afastamento da família, necessário para evitar a disseminação da doença.

Entre hospital e casa, são vários os cuidados. Ela toma banho antes de sair da unidade e outro novamente ao chegar em casa. No trajeto, os ônibus lotados geram preocupação. “Levo uma garrafinha de álcool quando pego o ônibus. Tem que gente que tira a máscara. No ônibus lotado, às vezes, você tem que falar mesmo. Muitos jovens não ligam, não têm consciência. Eu pego sempre ônibus lotado. São três ônibus para o ir para o (hospital) Leonardo (da Vinci)”, conta. Ela relata que eles tentam manter um distanciamento mesmo dentro de casa. “Digo para ele ficar no quarto dele e eu no meu.” Chegaram a separar copos, pratos e talheres.

A REGIÃO de saúde de Fortaleza registrou aumento 18,4% nos casos(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves A REGIÃO de saúde de Fortaleza registrou aumento 18,4% nos casos

“Minha irmã estava sempre presente e começou a não vir mais. Parentes que vinham muito não vinham mais. Parentes com problemas de saúde, com filhos pequenos”, relata. Camila Pinto da Silva, 27, que também é professora, mantém contato direto com o irmão e a mãe. Mas, evita visitá-los ou o faz com distanciamento.

Clécio é professor na Escola Estadual José de Alencar, em Messejana. “No mês de abril, houve o afastamento geral. Teve a suspensão. E depois, dada a gravidade da situação, foi organizado um plano para o EAD (educação à distância). Em agosto, a gente começou a tentativa de aulas online na escola em que trabalho.”

Segundo ele, a dificuldade inicialmente foi a utilização das ferramentas. “Não sou uma pessoa que usa muito tecnologias. Foi muito difícil dar aulas com câmeras. Me adaptei, me acostumei, foi dando certo”, conta. As aulas a distância mudaram a dinâmica das aulas devido a menor interação com os alunos. “Como minha disciplina provoca muito diálogo, estava acostumado a isso. Com as aulas remotas, acaba ficando mais só eu falando. O feedback é maior no bate-papo. Foi estranho. Isso me deixou muito para baixo. Sobretudo com o 2º ano, que tem mais debates por causa dos temas”, distingue.

Na rotina cansativa, tensa e cheia de saudade, o apoio mútuo entre mãe e filho não muda. A alegria ao chegar do trabalho, além de ver o filho, é ser recebida pelo Miau, o terceiro morador da casa, sempre a postos para ser companhia. Assim como nos lares de inúmeras famílias que resistem em meio ao caos, eles se apegam ao que é fundamental. O amor. A necessidade suprema de não desistir. 


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