Em 26 de fevereiro de 2020, o Brasil tomava conhecimento do registro do primeiro caso confirmado de Covid-19 no País. Um homem de 61 anos, em São Paulo, que acabara de voltar da Itália. Semanas depois, foi a vez do Ceará ter seus primeiros casos confirmados, no dia 15 de março. Foi o início de uma longa caminhada, que ainda não chegou ao fim, em busca da solução da maior crise sanitária desta época, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Um ano após a confirmação da circulação do vírus no Brasil, o País ainda sofre de forma avassaladora com a doença. Com mais de 240 mil mortos, os índices de contaminação e mortalidade seguem elevados. Por outro lado, enquanto a imunização por meio da vacina ainda chega a segmento restrito da população, pesquisadores e profissionais da saúde seguem em busca de avanços no tratamento e tentam traçar as melhores estratégias de defesa na medida em que adquirem mais conhecimento sobre o vírus.
"No começo, a doença era tratada como uma virose, uma viremia. Mas se descobriu que ela costuma apresentar um quadro de processo inflamatório generalizado. Então, o uso de antinflamatórios conteve muito da evolução de gravidade em alguns pacientes", destaca o médico epidemiologista Marcelo Gurgel, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Para o médico infectologista Keny Colares, do Hospital São José (HSJ), em Fortaleza, após um ano da circulação do vírus no País, é possível identificar que certas medidas não mostram a eficácia necessária no tratamento.
"No início, muitos tratamentos foram preconizados, teriam algum indício de que poderiam ser úteis. Algumas dessas medicações foram utilizadas, a mais famosa delas foi a cloroquina. Com o passar do tempo, os trabalhos que foram saindo mostraram que elas possuem uma atuação muito discreta sobre o vírus. Aprendemos que todas as medicações antivirais que tentamos utilizar não se mostraram efetivas", explica.
Em fevereiro de 2020, ainda não era possível afirmar quais medidas seriam mais eficazes no combate à propagação do vírus. Até pelo receio de que faltassem máscaras para profissionais da linha de frente, a orientação inicial não era para todo mundo usar máscara. Um ano depois, já se sabe que o uso da proteção, as medidas de isolamento social e a vacinação em massa fazem parte do caminho para resolução do problema. É o que explica a epidemiologista Lígia Kerr, professora e pesquisadora do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC).
"O uso da máscara é uma das coisas mais importantes que nós temos. A vacina não vai deixar isso desaparecer, as pessoas precisam compreender isso. Tem gente pensando que tudo acabou, e não acabou. Precisamos continuar o processo de vacinação de forma urgente. Não podemos esquecer que estamos com uma mutação muito mais contagiosa, devemos buscar máscaras melhores ou fazer o uso de duas máscaras."
Segundo a médica, vários países já estão recomendando o uso de duas máscaras. As máscaras hospitalares descartáveis podem ser bem eficazes quando bem ajustadas, juntamente com uma outra máscara de tecido.
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Em um ano, já se sabe que algumas substâncias e técnicas adotadas tornam maiores as chances de recuperação da doença.
"Algumas medicações utilizadas em pacientes mais graves foram se mostrando valiosas. A questão especialmente do corticoide para aquele paciente que já está com falta de ar. A partir de maio e junho começaram a sair trabalhos mostrando que esses tratamentos reduziram a gravidade e a mortalidade da doença", diz Keny Colares.
Médicos modificam protocolos para intubar pacientes
Marcelo Gurgel explica que o tempo trouxe esclarecimentos sobre a realização de intubação em pacientes com Covid-19. Os critérios utilizados foram alterados no decorrer da pandemia.
"Tivemos o aprendizado do melhor manejo para se fazer a intubação. A intubação, que pode salvar vidas dando oxigênio, também é um veículo para que a pessoa contraia infecções subjacentes tornando o quadro desfavorável."
Colares conta que o processo de intubação era indicado de maneira precoce, logo no início da pandemia, mas também viu esse conceito mudar ao longo dos últimos 12 meses.
"Aquele que chegasse com falta de ar, já iria para o tubo. Aprendemos com o passar do tempo que existe uma série de outras coisas que podem ser feitas, de maneira menos agressiva, como oferecer uma concentração cada vez maior de oxigênio."
Em novembro, o capacete Elmo, que funciona como um mecanismo de respiração artificial não invasivo, evitando a necessidade de intubação do paciente, foi aprovado em testes com pacientes pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O equipamento, criado no Ceará, se tornou um aliado no tratamento da doença.
O tempo também trouxe melhorias nas orientações passadas à população. Inicialmente, a informação propagada sinalizava que as pessoas só deveriam buscar ajuda médica diante de sintomas mais graves, como a falta de ar. Hoje, a recomendação é outra.
"Nós pedimos que esse paciente seja acompanhado o mais cedo possível. Até para que ele receba as primeiras orientações. Essa pessoa deve fazer o teste e ficar sendo acompanhada. Quanto mais cedo iniciar o acompanhamento, os resultados tendem a melhorar. Esse é um ponto que mudou bastante", afirma Colares.
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O aumento do número de casos de Covid-19 no Brasil deixa o País em alerta. O colapso do sistema de saúde em Manaus mostrou que as precauções com a pandemia não podem ser deixadas em 2020.
"Se a gente não agir, talvez em março, abril e maio tenhamos, de novo, uma situação bastante desfavorável."
"Existe uma expectativa de que, se a gente deixar a coisa correr, como foi feito em Manaus, e não tomar uma providência, podemos ter novamente uma situação igual ou até pior do que a do ano passado. É a previsão que é feita desde o começo do ano. Se a gente não agir, talvez em março, abril e maio tenhamos, de novo, uma situação bastante desfavorável", é o que diz Keny Colares.
O especialista alerta que epidemias podem apresentar efeitos mais devastadores em uma segunda onda. Segundo Colares, durante a pandemia da gripe espanhola, que teve início em 1918, a segunda onda atingiu índices mais letais do que a primeira.
"Quem não viu, em vários locais do Brasil, festas? Pessoas de 70 anos misturadas com pessoas de 20, e ninguém usando máscara. Isso aí é um suicídio."
Lígia Kerr também teme o pior, caso o controle social não volte a ser estabilizado no País. A médica lamenta as grandes aglomerações geradas durante o período de Carnaval.
"Quem não viu, em vários locais do Brasil, festas? Pessoas de 70 anos misturadas com pessoas de 20, e ninguém usando máscara. Isso aí é um suicídio, as pessoas não estão tendo dimensão disso", alerta.
Kerr destaca que, mesmo pessoas assintomáticas ou com sintomas leves, podem sofrer graves sequelas após a contaminação. "Perda de memória, perda de estabilidade emocional e fadiga permanente" são apenas algumas das sequelas listadas pela médica.
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Marcelo Gurgel acredita que o novo aumento do número de casos no Brasil tem ligação direta com o relaxamento dos cuidados sanitários após o País atingir o pico do número de casos em 2020.
"O pico, para nós, chegou por volta do mês de maio. Começamos a ver o arrefecimento da pandemia, e as pessoas foram perdendo o medo da doença e se expondo mais. O Brasil em nenhum momento teve um sucesso muito grande no lockdown, até porque não houve comando único", comenta.
Para o especialista, as aglomerações geradas no fim do ano passado estão completamente ligadas ao crescimento do número de casos no Brasil.
"A doença, inclusive, mudou de comportamento. Desde outubro, quando começou o processo eleitoral, a população viu a curva descendente da doença. Foi um período em que as pessoas se expuseram mais, assim como em dezembro, com as festas de fim de ano e férias, isso tudo colaborou para o aumento do número de casos".
"Não podemos repetir os mesmos erros. Um ano depois, já devíamos ter aprendido mais. Existe uma preocupação muito grande para que não se repita o mesmo roteiro em 2021."
Gurgel ainda se preocupa com a nova variante do vírus que circula em Manaus, e começa a aparecer em outras cidades brasileiras, como Fortaleza. A nova cepa e o aumento do número de casos também preocupa Keny Colares. O médico acredita que o Brasil não pode cometer as mesmas falhas do ano anterior.
"Não podemos repetir os mesmos erros. Um ano depois, já devíamos ter aprendido mais. Existe uma preocupação muito grande para que não se repita o mesmo roteiro em 2021. Por isso as restrições estão aumentando".
Colares acredita que a fórmula do sucesso para o combate ao avanço da Covid-19 passa por três estratégias: o distanciamento social, o rastreamento de casos e a vacinação.
"Quanto mais a gente conseguir aplicar essas três estratégias, mais rápido vamos sair dessa situação. Países como Coreia do Sul e Nova Zelândia são o exemplo disso. Aqui sempre tivemos dificuldades das pessoas obedecerem o isolamento, e os testes também precisam sair de forma rápida", afirma.
O especialista explica que o momento pede que os cuidados sejam redobrados, já que o primeiro semestre costuma ser marcado por um grande aumento do número de casos de infecções respiratórias na América do Sul.
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Durante as últimas semanas, a esperança chegou ao Brasil em forma de vacina. Desde o dia 17 de janeiro, data em que a enfermeira Mônica Calazans, de 54 anos, recebeu a primeira dose da vacina CoronaVac, no Hospital das Clínicas, em São Paulo, já são mais de 5 milhões de brasileiros vacinados com a primeira dose de algum dos imunizantes.
"Nós temos a nosso favor o Programa Nacional de Imunizações (PNI), que é muito bom para o Brasil e até melhor do que o de outros países ricos, mas temos um problema muito limitante: a falta da vacina."
Mesmo com o início da vacinação no País, especialistas acreditam que a luz no fim do túnel ainda está distante.
"Ainda estamos muito longe de colher os frutos como já está acontecendo em Israel. Claramente, a doença já começa a ser controlada, com poucos casos surgindo. Nós temos a nosso favor o Programa Nacional de Imunizações (PNI), que é muito bom para o Brasil e até melhor do que o de outros países ricos, mas temos um problema muito limitante: a falta da vacina", explica o epidemiologista Marcelo Gurgel.
Israel está com a vacinação em estágio bastante avançado. Cerca de 40% da população já recebeu, pelo menos, a primeira dose da vacina contra a Covid-19. O primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, acredita que até o fim de março toda a população acima dos 16 anos já estará vacinada no País.
"Em Israel, caiu para 0,04% o surgimento de novos casos. O Reino Unido está passando por uma queda enorme, os Estados Unidos também. Os países ricos precisam entender que, enquanto todo mundo não for vacinado, mesmo que eles vacinem, o restante da população estará suscetível a trazer a doença de novo, inclusive novas variantes", explica a especialista Lígia Kerr.
O infectologista Keny Colares é outro especialista que acredita que o Brasil ainda está distante dessa realidade. Diante de uma nova crescente do número de casos, Colares lamenta a lentidão do processo de vacinação.
"Ainda estamos muito longe. A gente imagina, claro, no campo da teoria, que quando tivermos por volta de 50% a 70% da população vacinada, começaremos a observar uma melhora significativa desses números. Devemos estar rondando ainda 1% ou 2% da população vacinada nesse momento, e boa parte dessas pessoas só receberam a primeira dose da vacina. Então, o nosso processo está muito lento."
O Ceará segue a tendência do Brasil. Até a última segunda-feira, 15, 228.318 cearenses haviam sido vacinados contra a Covid-19, de acordo com dados da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (Sesa). Ao todo, foram recebidas 449,9 mil doses do imunizante, dos laboratórios Sinovac e Astrazeneca.
"Se a gente acelerar esse processo, quem sabe, no começo de 2022, a gente chegue a uma situação melhor do que a de agora. O País é grande, tem muita gente para vacinar e a nossa organização está devendo. Imagino que até o começo de 2022 ainda estaremos vivendo com restrições e com algum tipo de precaução", relata Colares.
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