Jornalista, professora e consultora. Mestre em Políticas Públicas, especialista em Responsabilidade Social e Psicologia Positiva. Foi diretora de Redação do O POVO, coordenadora do Unicef, secretária adjunta da Cultura e assesora Institucional do Cuca. É autora do livro De esfulepante a felicitante, uma questão de gentileza
Que ninguém se engane. As tragédias têm um tempo diferente do que a gente costuma contar no relógio. Não falo da forma como chegam, e sim das feridas que são abertas e que seguem conosco. Sejam ambientais, como é o caso da atual, no Rio Grande do Sul, ou relativas à saúde, como a pandemia da covid-19, que nos atingiu a partir de 2020. Os que perdem seus afetos, deixam um pouco de si nas despedidas que não aconteceram. No tempo do que poderia ter sido.
Soube dia desses da história de uma moça que perdeu pai, tio e avó na pandemia. Um a um foi adoecendo e em seguida os sintomas apareciam em outro, como dominó. Enterros solitários, caixões vedados e a expectativa do que aconteceria com o próximo internado, mexeram com a família. Diminuiu a família. A maioria dos moradores não ia mais voltar. A moça estava noiva. Não teve coragem de deixar a mãe sozinha com a saudade. Convidou para morarem juntas.
Mal a pessoa terminou de me contar essa história, outra ao lado começou a dela. Estava completando, naquela semana, justo quatro anos que o marido morreu de covid, aos 73 anos. Era comerciante e insistia em resolver negócios no caixa eletrônico. Ela ia e ficava no carro, para apressar. Um dia não pode ir, e a filha fez esse papel. Ele demorou mais tempo. A viúva falou que no mesmo dia a garganta dele começou a arranhar. A saída do marido para o hospital foi o último dia que o viu com vida.
Agora, é a tragédia das águas no Rio Grande do Sul, fruto do destempero ambiental do ser humano, que traz histórias de vidas e mortes em larga escala, marcadas por relógios do íntimo de cada um. Os segundos que o marido conseguiu segurar a mão da esposa antes dela ser levada pelo turbilhão, na frente do neto, que contou sobre a sequência de imagens como se fosse adulto. Seu relógio emocional se adiantou ao biológico, atropelou o tempo.
Um conhecido meu havia ido visitar a mãe em uma cidade gaúcha. Ficou sem internet porque lá, porque todos os serviços colapsaram. Familiares de outros estados passaram dias sem saber se alguém havia escapado. Nas estradas, muitos ainda sobrevivem em carros, sem saber o que fazer de si, de crianças e idosos. Crianças sem escolas, escolas sem paredes; livrarias sem livros; museus com parte do acervo perdido.
Famílias que perderam pessoas, outras que perderam a casa que passaram anos para ter, empresas que perderam tudo e somam uma leva de desempregados. Um cavalo que passou dias sem se mexer em cima de um telhado e centenas de outros animais que não tiveram onde escorar as patas e sucumbiram.
Planos federais, estaduais, municipais e esforços de doações em todo o País ainda são insuficientes diante das dimensões da tragédia. Um tempo de vida que não será contado só pela soma dos dias de aflição, mas pela saudade do que poderia ter sido a vida.
Deve ser muito difícil acordar e sentir-se em um pesadelo.
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