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Eu não vou cobrir a Copa do Mundo do Catar
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Jornalista formado na Universidade Federal do Ceará (UFC). Foi repórter do Vida&Arte, redator de Primeira Página e, desde 2018, é editor de Esportes. Trabalhou na cobertura das copas do Mundo (2014) e das Confederações (2013), e organizou a de 2018. Atualmente, é editor-chefe de Cidades do O POVO. Assinou coluna sobre cultura pop no Buchicho, sobre cinema no Vida&Arte e, atualmente, assumiu espaço sobre diversidade sexual e, agora, escreve sobre a inserção de minorias (com enfoque na população LGBTQ+) no meio esportivo no Esportes O POVO. Twitter: @andrebloc

André Bloc esportes

Eu não vou cobrir a Copa do Mundo do Catar

Um país que considera minha existência crime não deveria receber a publicidade positiva de um dos maiores eventos do mundo. O futebol não deveria ser erguido sobre os corpos de escravos que construíram estádios
Fifa iniciou venda de ingressos para Copa do Mundo do Catar nesta quarta-feira, 19 (Foto:  Divulgação/Fifa)
Foto: Divulgação/Fifa Fifa iniciou venda de ingressos para Copa do Mundo do Catar nesta quarta-feira, 19

A próxima Copa do Mundo de futebol será no Catar, um emirado absolutista e hereditário governado por uma família com pouca afeição aos direitos humanos ou à liberdade de expressão.

A Copa do Catar foi construída sobre corpos de imigrantes escravizados por um governo que considera que homens como eu deveriam estar presos. E, na verdade, eu me orgulho de ser odiado por gente como eles.

Reportagem do jornal britânico The Guardian revelou que pelo menos 6.750 trabalhadores imigrantes que viviam sob regime análogo à escravidão morreram para construir as pirâmides cataris — ou estádios de futebol, como a maioria prefere chamar. Estamos no século XXI e milhares de pessoas morreram para que um punhado de gente ficasse alguns milhões mais ricos. 

Com a Copa do Mundo do Catar, completamos dois Mundiais consecutivos em países sem liberdade. Em nações que não reconhecem direitos da população LGBTQIA+. O que não é bem uma novidade para a Fifa, que já realizou o maior torneio do futebol sob o fascismo na Itália-1934 e sob a ditadura militar na Argentina-1978. Havia até um risco de um nazismo na Alemanha-1942, mas a competição foi cancelada.

O que mudou de 1978 para hoje? Quase todo o resto. A Austrália nem garantida na Copa do Mundo está e o lateral-esquerdo Josh Cavallo, do Adelaide United, sequer foi convocado para a seleção. Mas ele declarou ter medo. " Eu li algo sobre pena de morte para gays no Catar. É algo de que tenho muito medo e não gostaria de ir ao país por causa disso", disse ao podcast Today in Focus, do The Guardian. 

E, sim, existe tal pena lá, apesar de supostamente nunca ter sido exercida — se fontes oficiais de ditaduras puderem ser fonte de informação confiável. E ela se restringe a muçulmanos "acusados" de homossexualidade. O que de fato é usado como punição são multas e prisão. De até três anos. Por algo sobre o qual a pessoa não tem qualquer possibilidade de controle.

Aprendi num curso com o Jamil Chade, um dos maiores nomes de relações internacionais no jornalismo brasileiro, que o Catar busca ganhar respaldo internacional do ocidente ao investir em cultura e esporte. Há um Museu do Louvre em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, e outra construção faraônica do mesmo arquiteto em Doha. O governo catari é dono do Paris Saint-Germain. A Copa do Mundo é no Catar. Bem mais viajado e influente que eu, Jamil também já esteve lá e pôde ver a situação precária dos imigrantes que erigiram as pirâmides do futebol.

Tal qual Josh Cavallo, tenho motivos outros para duvidar que eu vá ao Catar. Ele tem concorrência de todos os outros laterais-esquerdos da Austrália. Eu tenho limitações na conta bancária e uma equipe a liderar numa cobertura esportiva de Copa do Mundo — que promete ser a terceira da minha vida profissional e a segunda como editor-adjunto do O POVO.

Mas, sinceramente, qual seria o meu desejo de visitar um país onde sou um criminoso pela simples ousadia de existir? 

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