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50 anos da Revolução dos Cravos
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

50 anos da Revolução dos Cravos

A festa pela democracia começou há 50 anos, em Portugal, e hoje explode nas ruas e praças do país. Na data redonda de meio século do 25 de abril, só não vai ter programa para os saudosos da ditadura.
Tipo Crônica
O escritor português José Saramago (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação O escritor português José Saramago

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A queda de uma cadeira. A pancada na cabeça. A morte de um ditador. Os cravos nas ruas. O fim da ditadura, em Portugal. Mesmo se a história da cadeira está por confirmar-se, José Saramago adotou a versão do acidente doméstico, como metáfora do início do fim do Estado Novo. O conto chama-se “A queda” e abre o livro Objeto Quase. Nele, um homem já velho senta-se numa cadeira, cujos pés foram corroídos pelo tempo e por cupins. Sabe-se que, após a queda, António Salazar recusou assistência médica, mas a lesão cerebral levou-o à internação e a uma operação. Afastado por debilidade física, passou os dois últimos anos de vida acreditando que ainda estava no poder.

Depois de 48 anos de cadeira, a queda da ditadura começou assim. No 25 de abril de 1974, um movimento político e social, tendo á frente capitães e subalternos, sai para as ruas com espingardas e tanques. Nas emissoras de rádio, as canções que o regime detestava. “O povo é quem mais ordena”, da letra de Grândola Vila Morena, de José Afonso, foi a senha para avisar aos portugueses que algo se preparava. Passou a ser o hino da liberdade e da revolução. Na boca do povo, ficou com o nome de “dos cravos”. Conta-se que, durante o movimento, uma florista de rua deu aos soldados o seu estoque de cravos. Foram enfeitar a boca das espingardas e substituir as medalhas, nas fardas militares.

Se a comemoração deste ano ganha ainda mais corpo e voz, não é só por conta dos 50 anos redondos. A extrema-direita tem ganhado espaço, em Portugal, não podemos esquecer. Os saudosistas deste tempo saíram da tumba. As últimas eleições mostram o avanço de um pensamento retrógrado e tradicionalista. Na casa de uma amiga, inesperadamente, escuto o marido lisboeta – cerca de 40 anos – a dizer, na cara dura, as benesses da ditadura de Salazar. Que, aliás, ele não viveu, nem conheceu. Possível que hoje ele vá também às ruas, na contramão das comemorações, para defender o indefensável. Estudos recentes mostram que 47% da população do país aceitaria um líder “forte”, mesmo sem eleição.

Por todo o país, a programação é extensa. Lisboa e Porto, estarão mais intransitáveis que nunca. Nem pensar em levar o carro. O dia é dos caminhantes, das flores, da música. Além de shows, teatros, filmes, exposições, também é dia de muitas manifestações populares. Vai ser lindo, vai. Grândola Vila Morena é a canção do dia. Todos os anos, na mesma data, das janelas dos prédios, uma voz solitária puxa os versos de Zé Afonso e, logo depois, outra se junta. E outra. E outra. Nós, cara de fora, na emoção do chamado da liberdade. Juntos, gritamos: “abril, sempre”.

A ditadura fascista caiu de podre. O país, aos poucos, foi saindo timidamente da tristeza e da sisudez. Ainda muito fechado, a mentalidade do Portugal de então era o reflexo da mentalidade do ditador. Um mundo onde as mulheres não podiam viajar sem a autorização do marido, onde os patrões pagavam o que queriam aos funcionários, onde as notícias eram censuradas, os casados na Igreja não se divorciavam, os críticos ao regime eram presos, onde havia só um partido político (favorável ao governo) e as eleições não eram livres. Mudar tudo isso toma seu tempo. Deixa cicatrizes. Ranços. Mágoas.

Por estas novas e imprescindíveis liberdades, vai-se hoje às ruas. Para lembrar que a mudança do fascismo para a democracia se faz com pequenas e grandes coisas. Pode ser o acaso de um acidente, uma braçada de cravos, um tanque nas ruas, uma canção revolucionária. Democracia feita também, e principalmente, da coragem e da vontade do “povo que mais ordena”. De cravo vermelho, vamos ao abril primaveril, deixando para trás (e para sempre) o longo inverno que se sentou na cadeira, em Portugal.

Foto do Ariadne Araújo

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