Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.
Sábado foi ensolarado. Meninos e meninas esbaldaram-se nas praias, em Portugal. Entre cambalhotas no mar e na terra, sem medo das ondas frias e da areia quente, nem eles nem nós nos demos conta de que se brincava livremente no primeiro de junho, Dia Mundial da Criança
Foto: EDIMAR SOARES
Criança pede esmola no trânsito em Fortaleza
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Há os que têm tudo, os que têm alguma coisa e os que não têm nada. Os que ganham presentes caros, os que vão saltar gratuitas ondas no mar e os que estão à espera do que vai acontecer, numa esquina qualquer do tempo.
Os que dormem seguros na cama quente. Ou numa tenda, na rua. Os que se acordam sob bombas, aos gritos. Tantos e tantas, sob a mesma efeméride, do Dia Mundial da Criança. A data é cega. Abarca a todas, com seus grandes braços abraçadores.
No primeiro de junho, a data estendeu sua rede funda de ternura. Falou-se de inocência, da promessa de futuro e felicidade para todas as crianças do mundo. As tuas, as minhas, as brasileiras, as portuguesas, as de Gaza. As que se abrigam debaixo das nossas asas. E aquelas que deixaram de ser crianças, de uma noite para o dia, nas ruas ou sob a chuva de bombas e pedras.
Por fora, crianças na idade e no tamanho. Por dentro, criaturas sem esperança, traumatizadas.
Sob este estatuto especial, olhamos as crianças como vítimas inocentes, numa redundância que sugere (pela linguagem) a incoerência de haver casos de “vítimas culpadas”.
Em Gaza, mais que o Hamas, destrói-se a inocência. Aquela vida por viver, que tanto desejamos para nós e para os nossos. Longa estrada desimpedida e asfaltada para os filhos – o sonho de futuro. Para milhares de outros, a estrada explodiu. A estrada é um beco sem saída. As cambalhotas são outras.
Quando, no Dia Mundial da Criança, penso neles e nelas, lembro que é também o mês do meu aniversário. Velha mais um ano. Mas, se o acaso me tirar agora a vida que eu (acho) tenho ainda por viver, vou me embora com uma vida bem vivida, no bolso. Vida recheada de histórias boas ou más, experiências. Isso ninguém me tira.
Tive sorte. Não vivi tempos de fome grande, de secas atrozes, de retiradas em levas do interior para as cidades, no Ceará. Nem nasci, por exemplo, na Gaza de agora, em áreas de guerra ou nos lixões das grandes cidades.
Cercadas de perigos e riscos do nosso tempo — para além das guerras, há a fome, abusos sexuais, violência das ruas, pornografia, drogas —, milhares transformam-se em cabecinhas santas, sobre as quais escreveu em seu poema a escritora Cecília Meireles.
Cabeças santas, porque já mortas. De cima, das nuvens, dos céus dos anjos, olham-nos e vêm em nós a vida que lhes foi negada.
Partiram de bolsos vazios, as cabecinhas “que sofrem sozinhas – e resistem”. No colo de Deus, são cabecinhas santas. Santas, aos milhares. Morrem na mesma.
No poema, Cecília Meireles usa o singular, para o título: “Criança” - como na data. Cabem em uma única palavra, todas as cabecinhas tristes do mundo.
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