Logo O POVO+
Pobre de marré
Foto de Ariadne Araújo
clique para exibir bio do colunista

Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Pobre de marré

As histórias fazem-nos pensar. Descobriu-se, após a morte de Anneliese, uma holandesa que andava como mendiga e vendia nozes na rua para ganhar trocos, em Vaals, na Holanda, que ela não era pobre de marré, mas rica de marré dec
Tipo Crônica
A pequena aldeia de Vaals fica na confluência de 3 países: Holanda, Bélgica e Alemanha. Foi lá que Anneliese Houppermans faleceu (Foto: Lieven Genus/Jornal De Standaard )
Foto: Lieven Genus/Jornal De Standaard A pequena aldeia de Vaals fica na confluência de 3 países: Holanda, Bélgica e Alemanha. Foi lá que Anneliese Houppermans faleceu

 

Aos vizinhos, não costumava dar sorriso, nem bom-dia. Só reclamações, bate-boca, até xingamentos. A altura da cerca, as folhas que passavam de quintal a quintal, a bola que rolou até a porta. Nos supermercados, catava restos de frutas e legumes. Nas lanchonetes e cafés, na confusão por centavos, negociava o menu. Pequenina, cabelo grisalho, um único dente na boca, as roupas velhas – a calça sempre rasgada. Além, a pouca higiene corporal, o cheiro de estrumo de ovelhas. Ninguém queria conversa com ela.

Andava pelas ruas tentando ganhar trocos com a venda de nozes. Há poucos meses, aos 87 anos, Anneliese Houppermans morreu em Vaals, uma pequena aldeia que faz a fronteira da Holanda com a Bélgica e a Alemanha. No enterro, ninguém. O padre atônito, benzeu o caixão. Desceu a defunta à terra como ela viveu, só. Conhecida na região como a “mulher das ovelhas” - porque cuidava de alguns animais - não tinha filhos, nem companheiro, nem parente, nem amigos.

Contam que, certa vez, deixou mostrar o coração bondoso que se escondia na vida árida dela. Bombons para a criançada. E foi só. Tinham até ouvido falar, ela teria por aí umas casas alugadas. Um dos inquilinos revelou, depois do enterro, que veio falar com ela tempos atrás, com proposta para comprar a casa. Respondeu: espera mais um pouco. Na época, o homem não entendeu. Agora, a notícia do testamento.

As cortinas das janelas dos vizinhos balançaram, do susto. Anneliese, que nunca gastou um centavo com ela mesma, era podre de rica. Deixou tudo, de papel passado e de presente, para os mais de 20 inquilinos. A imprensa holandesa correu para a pequena aldeia. A história da mulher que andava como mendiga e que deixou as propriedades para os inquilinos, com os quais ela mal falava, virou notícia de jornal. Anneliese, que ninguém queria saber, agora é um nome doce nas bocas. A benfeitora da cidade.

Cada um revira esta história dos jornais como queira. Eu, do meu lado, penso que Anneliese - à parte, os problemas que tinha com o dinheiro, a avareza com ela mesma – é um daqueles casos de solidão extrema. A solidão e o isolamento social deixam a gente pobre de marré. Na mendicância. Ou doentes. Anneliese, pobre e rica, ao mesmo tempo. Dinheiro no banco é bom, é ótimo. Amigos e companhia, mil vezes melhor. Ricos de amigos e amor, tem mega-sena melhor?

Foto do Ariadne Araújo

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?