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Os carrascos dos dias de hoje
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Os carrascos dos dias de hoje

Carrasco - para além de significar algoz, também é o nome de uma inocente planta ibérica, que cresce entre as pedras. No século XV, de Castela e Leão (Espanha) veio para Portugal a primeira família Carrasco. Começa aí a nossa história
Tipo Crônica
No filme Coração Valente, o personagem do ator e diretor Mel Gibson (William Wallace) encara a guilhotina na época da Idade Média (Foto: Divulgação/ 20th Century Fox Film)
Foto: Divulgação/ 20th Century Fox Film No filme Coração Valente, o personagem do ator e diretor Mel Gibson (William Wallace) encara a guilhotina na época da Idade Média

Tão bom no que fazia, que o último sobrenome de Belchior Nunes Carrasco se misturou ao do ofício dele. No século 15, em Portugal, matava em nome do rei. Depois dele, durante séculos, todos os outros executores de penas de morte que se seguiram no país receberam a alcunha de carrasco. Como acontece muitas vezes, o nome (ou a marca) confunde-se com o fazer (ou com o objeto). Lembro do caso da marca Gillette, que é muito conhecido. 

Estes “funcionários públicos” da época, pagos e alimentados pelo reino (e, em conjunto, mais tarde, também pela Igreja, com a Inquisição) eram malvistos e temidos pelo povo. Por isso, viviam nas periferias das cidades. De preferência, o mais longe possível. Nas casas dos carrascos, colocava-se uma marca, para que se soubesse de quem se tratava. Quando não estavam de serviço, tinham como função separar brigas em prostíbulos e becos. 

Nas primeiras fornadas, os padeiros alemães eram obrigados a colocar uma cruz em um dos pães. Separava-se o pão do carrasco. Se o condenado tivesse posses, a roupa usada no ato da prisão ou da morte, ficaria para ele. Diz-se, vestiam-se muito bem, por isso. Por causa da rejeição pública ao ofício, casavam-se entre eles. Os filhos de uns com as filhas de outros. Os mais novos sucedendo os mais velhos. Uma família inteira gerando carrascos. 

Ensinava-se de pai para filho, de sogro a genro. As boas pontarias para pancadas, a força no braço, o uso meticuloso do machado. Na França, a família Sanson permaneceu 200 anos no negócio da morte. Sob o reinado de Luís XIV, Charles Sanson tornou-se ajudante do sogro e nasceu daí uma dinastia de verdugos. O descendente mais conhecido de Charles Sanson é Charles-Henri Sanson que, em abril de 1792 inaugurou a primeira guilhotina, na França.

Outra vez, o nome do inventor que se confunde ao do objeto. O médico Joseph-Ignace Guillotin inventou a guilhotina, muito usada durante a Revolução Francesa. Nas contas de Charles-Henri Sanson somam-se 2.498 pessoas guilhotinadas, durante a Revolução, incluindo o Rei Luís XVI e a rainha Maria Antonieta. A última execução pública na França foi em 1977. Em Portugal, em 1976. No Brasil, a pena de morte foi abolida com a Constituição de 1988. A Bélgica levou mais de 100 anos para tirar isso da lei. 

Ainda hoje, 87 países não aboliram formalmente a pena de morte – destes, 55 mantêm a pena de morte na forma da lei. Pelo menos 11 insistem em aplicá-la. Segundo o site da Anistia Internacional, a China e o Irã são os “maiores carrascos do mundo”, em números de execuções. Usada como ferramenta política e como forma de exercer o poder absoluto do Estado sobre os corpos, a vida e a morte das pessoas, estas execuções são abomináveis. 

Em 2023, as execuções aumentaram no mundo – o número mais elevado em quase uma década, segundo a Anistia internacional. Nos corredores da morte, milhares de homens e mulheres esperam agora mesmo seus carrascos. Uma triste estatística que tende a crescer. Pensar, por exemplo, no curdo Reza Raisaei, da minoria religiosa de Yaresan, que por ter participado do movimento Mulher, Vida, Liberdade poderá ser executado, a qualquer momento, no Iram. 

Os Sanson e os Carrasco desapareceram, na poeira do tempo. Os Estados carrascos, não. Pensar em Reza Raisei, que crime foi esse tão grave que justifica a morte?

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