Logo O POVO+
Lá onde o ano não começa jamais
Foto de Ariadne Araújo
clique para exibir bio do colunista

Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Lá onde o ano não começa jamais

Pensei neles, porque o povo Macho Piro não celebra natais, nem conta a passagem dos anos. Lá onde vivem, têm apenas o som das motosserras para lembrar que o tempo é uma continuidade marcada em minutos-árvores, onde o passado se repete na atualidade, adiando os amanhãs
Tipo Crônica
O povo Mashco Piro (Foto: Reprodução/Survival International/Ministério de Cultura do Peru)
Foto: Reprodução/Survival International/Ministério de Cultura do Peru O povo Mashco Piro

Apagam os cantos mais belos dos pássaros da Amazônia. As motosserras cantam lâminas de serrote nos troncos dos mognos, nos recônditos longínquos da floresta. Vez em quando, o som agudo dá uma breve pausa. Tempo de se ouvir cair no chão uma reverenda árvore, pesada e majestosa.

Entre o barulho frio da máquina e o da queda mortal do mogno, fogem os bichos, as aves e tudo que tem pata e asa. Com eles, os Macho Piro.

Neste cotidiano de derrubadas, o 2025 será a continuação de 2024 — para este que é um dos povos mais isolados do mundo. Tudo igual, tal e qual. Uma árvore depois da outra. Um dia atrás do outro. O de hoje como o de ontem.

O medo de que os amanhãs sejam parecidos aos de 1880, quando seus avós tiveram suas terras invadidas pelo barão da borracha, o Fitzcarrald, e muitos foram mortos e escravizados. Agora, precisam fugir mais uma vez, para não morrer.

Com medo dos “homens vestidos de laranja”, atravessam rios que nunca tinham cruzado antes. Deixaram a distância e o isolamento na mata para surgirem nas praias fluviais. Os invisíveis Macho Piro agora buscam comida, já que não acham mais no seu território.

Na areia, quem sabe ovos de tartaruga? De manhã cedo, imitam o canto de um pássaro ou lançam uma flecha — avisam que vêm chegando e que ninguém se aproxime.

No povoado Monte Salvado, no Sul do Peru, vêm em visita inédita aos “primos” Yine, da mesma família linguística: pedem bananas ou macaxeiras. Sentam-se à distância, mas só vão embora com alguma comida, apesar do risco de contaminação por vírus.

Uma simples gripe, pode exterminá-los, eles sabem disso. Os Yine resolveram, então, plantar uma roça-extra para os Macho Piro, onde eles podem entrar e sair quando quiserem, sem nenhum contato.

Tangidos em 2024, que destino terão em 2025, ou até 2030, quando celebraremos o fim da década? Entre a motosserra, abertura de estradas na selva (que estimulam novas ocupações e explorações), extermínios e doenças dos citadinos. Entre o Brasil e o Peru. Entre ficar ou morrer. Entre dois mundos. Entre duas temporalidades.

Os Macho Piro vivem a inédita e perigosa situação de — talvez — terem de romper o isolamento absoluto, para sobreviverem. Melhor dizer, para morrerem de outra forma.

Penso neles, no primeiro dia do ano. Nos que se encontram neste “entre” — dos tempos-espaços-encruzilhadas. Nas guerras televisionadas ou nas silenciosas, na Amazônia. Guerras e guerrilhas, feitas por mais terra e mais dinheiro. A história é velha e geral.

Penso neles, nos que lutam pela sua casa. Pelo direito à vida, de viver nos seus costumes e crenças, no seu lugar. Deixamos um ano para trás: fechamos 2024 e abrimos 2025, mas não esqueçamos os que vivem suspensos nos “entre” — atrás de uma parede, à frente de um pelotão.

Que em 2025 possamos plantar muitas roças-extras. Já que os Macho Piro esperam nossa humanidade, do outro lado do rio. Bom começo de ano para todos, inclusive para os que não contam o tempo.

Foto do Ariadne Araújo

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?