
Linguista e semioticista, professora da Universidade Federal do Ceará, com doutorado na Universidade de Liège (Bélgica) e pós-doutorado na Universidade de São Paulo
Linguista e semioticista, professora da Universidade Federal do Ceará, com doutorado na Universidade de Liège (Bélgica) e pós-doutorado na Universidade de São Paulo
No centenário de morte de Franz Kafka me coloco a pensar sobre um certo tribunal absurdo que se constrói na internet. Em O processo, o autor tcheco põe em questão o autoritarismo da Justiça que pode julgar e condenar alguém sem oferecer meios de defesa; o protagonista nunca descobre do que está sendo acusado e por quem. Nas redes sociais, a dimensão do absurdo é de outra ordem; está mais ligada à rapidez dos julgamentos e ao caráter impalpável desse "tribunal".
O episódio que me desperta essa comparação é a de um vídeo que circulou nas redes recentemente em que uma maratonista, chegando em primeiro lugar, precisa desviar das filhas que, sob a guarda do pai, invadem a pista. Esse fragmento de vida ganha rapidamente contornos narrativos maiores e consequentes julgamentos: o marido passa a ser "tóxico", "sabotador do sucesso da esposa" e "incapaz de cuidar de duas crianças por uma hora".
Ora, como dizia, é um fragmento de vida. O casal vem em seguida a público, em entrevista à BBC, esclarecer que se tratava de um combinado entre eles, que o marido tinha autorização da organização do evento e que cruzar a linha de chegada com filhos é prática comum entre maratonistas, independente do gênero. A surpresa foi a vitória iminente, que fez a maratonista mudar de planos na última hora. Não interessa aqui acusá-los ou defendê-los, mas entender que a ânsia por completar uma narrativa tem consequências na vida dos sujeitos reais.
Há, porém, um outro lado da questão. Afastados das pessoas de carne e osso, que de fato não conhecemos nem mesmo depois de seu relato oficial - todos sabemos que a intimidade das relações são imperscrutáveis - há uma dimensão simbólica importante nesse vídeo: uma mulher precisa desviar dos filhos para realizar um importante objetivo. Essa imagem sensível apela muito diretamente às agruras porque passa a mulher comum em suas corridas cotidianas atrás dos mais variados objetivos. Não é tão simples invalidar essa imagem. Não é plausível imaginar que possamos controlar a circulação dos objetos e a interpretação que vão se fazer deles. E essa é uma questão que está no mundo desde antes de Kafka.
Resta então nos perguntar como interagir, pensar e julgar imagens, obras, discursos e não pessoas? Em que medida podemos ser mais responsáveis pelo que dizemos?
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