
Chico Araujo é cearense, licenciado em Letras, professor de Língua Portuguesa e de Literatura brasileira. É autor dos livros
Chico Araujo é cearense, licenciado em Letras, professor de Língua Portuguesa e de Literatura brasileira. É autor dos livros
Não conseguia elaborar muito bem o que ia dizer. Poucas vezes na vida era tomada por impulsos. Talvez dissesse apenas que achava aquilo injusto, só isso, e que ia contar tudo a Flora e que ele, como pai, teria certa obrigação com ela. Não pensava apenas em dinheiro, mas em um pouco de atenção, de responsabilidade e de afeto. Ajudá-la na educação e nas noites em que a menina estivesse doente, com febre. No entanto, ao chegar próximo da casa, Madalena pensou melhor. Não teria coragem para tanto. Sentou-se numa pedra, descansou e, depois de se certificar de que estava só, chorou.
"O avesso da pele", de Jeferson Tenório. Vencedor do Prêmio Jabuti – 2021
O trecho acima compõe o livro O avesso da pele, posto em censura nesse mês de março de 2024 pelas secretarias de educação do Mato Grosso do Sul, de Goiás e do Paraná, após diretora de escola no Rio Grande do Sul declará-lo publicamente proscrito. Professores de escolas públicas desses estados que tenham pensado em trabalhar, em parceria com os estudantes, os temas fundamentais estruturadores da obra – por isso, supomos, a teriam escolhido, selecionado – não poderão mais fazê-lo, pelo menos até que a recriminação seja suspensa.
Confusão pessoal causada por angústia. Inquietação no espírito nascida da dúvida quanto à incerteza do que fazer. Aflição diante da insegurança entre contar ou não à filha o que sempre escondeu dela – quem era seu pai. O compromisso legal e subjetivo dos pais em relação aos filhos que geram. Dubiedade de sentimentos. Subtemas presentes no fragmento destacado que poderiam ser encaminhadores de bons debates em sala de aula. Agora não mais, por consequência dessa condenação por ideologia.
Antoine Destutti de Tracy definiu ideologia como a fonte que origina as ideias humanas formadas a partir das percepções sensoriais quanto ao mundo externo. Com ele, podemos dizer que ninguém vive sem ideologia. Para ele, a ideologia seria ponto de partida para todos os saberes em todas as áreas do conhecimento. A partir dele, vários estudiosos ampliaram o significado do termo, incorporando-lhe novos aspectos com base em novos estudos, associados a múltiplos contextos em que esteja inserido.
Devido a isso, ideologia pode se referir a ideias e pensamentos de uma pessoa ou mesmo de um grupo de pessoas, podendo estar, ainda, relacionado até a uma “doutrina” com existência em um grupo ou em grupos de pessoas. Talvez pela plasticidade no significado, a expressão seja utilizada em variados momentos com significações distintas, dependendo dos desejos de quem a emprega.
Entendo que, por efeito das possibilidades de significações nas sociedades, os usos feitos com a palavra atendam a interesses de momento. Sendo assim, um governo constituído que afirma ser contra as ideologias e que vai combatê-las, por exemplo, “está mentindo” – buscando convencer com tal declaração admiradores – pois, na verdade, utiliza-se de ideologia para supostamente suplantar ideologias.
Estão muito em voga discussões a respeito da expansão pelo mundo do “pensamento ultradireitista”. Ora, dialogando-se com Tracy, o “pensamento ultradireitista” pode ser simplesmente nominado de “ideologia ultradireitista”, colocando-se declaradamente em confronto com a “ideologia esquerdista” ou “ideologia extremista de esquerda”. Ambas se opõem de maneira radical e para que uma combata a outra é preciso estruturar-se também ideologicamente, influenciando seus seguidores a serem seus defensores incondicionais. De tal maneira isso acontece que, notadamente, boa parte das populações aceita de bom grado, sem questionamento, as ideologias que lhe caem em seu espírito como verdade absoluta a ser seguida dogmaticamente.
Dito isso, sigo a outro ponto a ser relacionado ao exposto acima. Sim, é verdade, O avesso da pele tem palavrões, expressões chulas e referências a questões sexuais. Porém, tem muito, muito mais que isso. Tem (além do trecho e subtemas elencados) - e me parece ser esse o ponto básico da história – a dinâmica da existência de personagens marcados pelo sofrimento de preconceitos determinados por aspectos pertinentes ao universo de brancos e ao universo de pretos. Daí eu me perguntar: Por que proibir o livro em escolas do ensino médio e perder a oportunidade de educar estudantes para o não preconceito, para a aceitação das diferenças, para a preparação à convivência pacífica em sociedades marcadas por distinções profundas? Ideologia!
Essa onda de cerceamento de acesso ao livro de Jefferson Tenório começou, conforme já mencionado, após a diretora de escola de Santa Cruz do Sul (RS) coibir sua leitura, sinalizando ter ele chegado à escola por iniciativa direta do MEC, sem que houvesse vontade da escola em recebê-lo, dando a entender, ainda, que não sabia do processo de escolha da obra sob sua condenação. Estranho, porque qualquer obra constante no processo viabilizador do PNLD somente chega às escolas após o recebimento, no MEC, de pedido em documento assinado por diretores ou representantes escolares estabelecidos para colocarem sua assinatura no documento expressando o desejo de receber tal e tal obra.
Em torno do fato, até políticos (alguns confessando não terem lido qualquer linha do romance que tem mais de cem páginas) se sentiram motivados a corroborarem a condenação da obra literária. Motivação ideológica. Proibir a leitura de um livro que expõe situações de racismo estrutural, qualificando-o como pornográfico, é um posicionamento ideológico. O romance em tela, afinal, tem muito mais que expressões chulas, palavrões e sugestões sexuais.
Fico pensando que uma boa opção ideológica seria diretores, coordenadores, professores das escolas – em parceria com as famílias – assumirem o encaminhamento de uma leitura “assistida”, “participativa”, estabelecendo o compromisso de que os alunos não leriam o romance sozinhos, “largados”. Essa leitura poderia ser associada a outras, quem sabe a condução dos educandos a notícias contemporâneas, a filmes e mesmo a outros livros abordando, também, questões relacionadas ao racismo estrutural bem como a outras formas de racismo e preconceitos.
Estratégias assim poderiam servir para a formação mais afetiva de adolescentes nessa nossa contemporaneidade tão belicosa. Estratégias assim poderiam contribuir para a eliminação das dores que doem no espírito de quem sofre preconceitos, discriminações, apagamentos. As sociedades têm carecido de convivência mais humana em sua existência e funcionamento.
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