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O real e o ficcional
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Chico Araujo é cearense, licenciado em Letras, professor de Língua Portuguesa e de Literatura brasileira

O real e o ficcional

Tipo Crônica

A literatura importa. Notadamente aquela realizada por escritores humanos sensíveis, inventivos, analistas das sociedades. Críticos de si mesmos. Propositores de caminhos interpretáveis de suas subjetividades. O que digam em seus textos são registros de um mundo caótico denunciado e reorganizado na escrita feita.

Sim, é verdade, ainda existem pessoas perguntando “para que serve a literatura?”. Também há gente que tem revelado crer: que a terra seja plana; que vacina transforma gente em bicho; que aparelhos celulares na cabeça acionam contatos com extraterrestres salvadores; que estudos em nível superior é coisa de “vagabundo comunista”; que orar para pneu no meio da avenida é auspicioso e edificante, entre outras coisitas mais.

Eu sempre entendo a literatura como algo construtivo de nossa formação intelectual, pessoal e social, um tanto capaz de nos dizer, por meio de palavras, o que o mundo é, como ele funciona, como agem as pessoas dentro dele. Por meio dela, após mergulho crítico sob suas construções, podemos emergir em condições de enxergar melhor e com mais eficiência as tramas nas quais somos enredados cotidianamente. Mesmo navegando em ondas de figurações, a literatura tem a possibilidade de nos revelar o mundo em que vivemos.

O engenho da literatura é a figuração. Ela não se apoia em falsidades, mas se admite no âmbito da ficção. O ficcional não é pautado em mentiras, em inverdades, mas na arte de apresentar por “representação” o que seja “objeto” de análise do escritor, estabelecendo elo entre a realidade e o construído com base na interpretação da realidade e exposto a partir da imaginação. E o trato na linguagem, a seleção dos termos postos no desenrolar dos enredos faz-nos intuir, perceber, ver os fatos e como eles acontecem nas tramas.

O mecanismo dos documentários e outros textos informativos é a realidade, cuja verdade lhe é intrínseca e exige para si a não mentira, apesar de existirem criadores, defensores, divulgadores de informações falsas. Notícias e notas jornalísticas, reportagens, entrevistas, documentários têm como ponto de partida a verdade de fatos apurados e registrados por jornalistas. A literatura mantém-se vinculada à capacidade do escritor de interpretar o mundo e organizá-lo de um modo tal que mostre esse mundo às pessoas, não com as dores que este carrega, mas com cores capazes de dimensioná-lo de maneira mais catártica, como propõe a psicologia.

Nesses tempos, no mundo real, meios de comunicação em todos os níveis e ambientes têm informado a população sobre o suposto caso de pedofilia envolvendo político que se autodeclara homossexual. O fato veiculado pelos diversos meios comunicativos supõe que tal político tenha iniciado envolvimento com um pré-adolescente, quando este contava treze anos de idade (atualmente conta já dezesseis). A linguagem nesses meios sempre é objetiva, mesmo quando tenta “explicar” a situação para o público e, por isso, é, de certa maneira, “crua”, “limpa” de subjetividades. É apresentado ao público, de certa maneira, “o fato em si”, em sua exatidão.

O acontecimento acima não é novidade nem na vida real nem na ambientação literária. Ele, denunciado pelas mídias, me trouxe à memória o conto “João e Maria”, existente no livro "O desespero do sangue", da excelente escritora cearense contemporânea Zélia Sales, publicado em 2018 pela Premius Editora. Na sua história, Zélia vai revelando, aos poucos e com palavras brilhantemente selecionadas, imagens que nos fazem construir o perfil de personagem interessado em estar próximo de pueris.

O conto de Zélia Sales incomoda em sua transfiguração da realidade para a ficção e desta para o retorno à realidade. As notícias agridem em seu potencial de realidade. E se os textos jornalísticos são relevantes para estarmos informados dos fatos acontecidos na sociedade, a literatura implica nos fazer saber como podemos agir e nos formar para não sermos exemplo “nu” e “cru” de uma realidade nefasta.

Foto do Chico Araujo

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