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Memórias
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Chico Araujo é cearense, licenciado em Letras, professor de Língua Portuguesa e de Literatura brasileira

Memórias

Meu pai andava a marinheiro – brincava – e eu herdei dele esse balançado, só que eu nunca soube de ele ter um encurtamento em uma perna, como eu, a da esquerda
Tipo Crônica
Imagem do maciço de Baturité a partir da estrada que vai a Mulungu (Foto: Chico Araujo/ Acervo Pessoal)
Foto: Chico Araujo/ Acervo Pessoal Imagem do maciço de Baturité a partir da estrada que vai a Mulungu

Uma vez, mamãe me disse que se assustou ao me ver chegando. Havia raspado a barba, mas deixado o bigode, e, no meu caminhar gingado, balançando de um lado ao outro, fui me aproximando do portão da casa, onde ela estava postada, olhando para a entrada da vila. Soube naquele momento que, além do gingado, o bigode não espesso me identificava em semblante de igualdade ao de meu pai.

Minha alegria por me saber tão parecido com meu pai não me impulsionou a permanecer somente com o bigode – não quis, possivelmente, reincidir no susto a minha mãe. Hoje, enquanto escrevo, penso que ela poderia se acostumar com o filho à imagem do pai, mas, na época, me pareceu que o melhor talvez fosse realmente deixar a barba crescer novamente. Nunca mais a raspei. Nunca mais vi minha mãe encostada no portão da casa olhando para a entrada da vila.

Naquele crepúsculo em susto, meu pai já havia cumprido sua trajetória nesse plano terreno e seguido para sua nova missão em uma dimensão não alcançada pelo meu olhar racional, porém interpretada pelo meu pulsar em sensibilidades. Minha mãe certamente ficava olhando a entrada da vila, quem sabe na esperança de que tivesse ocorrido um pesadelo do qual despertaria com o retorno dele, chegando novamente, de novo e de novo, como antes, em cada fim de tarde, munido de bisnagas de pães d’água e de semolina quentinhos, de sua candura, de seu silêncio amoroso, de sua paciência extensa e intensa.

Meu pai andava a marinheiro – brincava – e eu herdei dele esse balançado, só que eu nunca soube de ele ter um encurtamento em uma perna, como eu, a da esquerda. O que soube desde sempre era da alegria em voltar para casa, para sua esposa, para sua família. Lá ele se sentia fortalecido e se restabelecia do cansaço diário das caminhadas indo e voltando do trabalho de onde tirava seu salário pequeno, mas honesto. O seu retorno, também testemunhei várias vezes e mesmo corri a ele ao lado de meu irmão e de minhas irmãs – quatro “bença, pai” interrompendo seu percurso –, e saboreando antecipadamente nos dedos das mãos inquietas os bombons pippers e azedinhos muitas vezes retirados do bolso dele. Uma festa. À entrada da casa, o beijo na mão.

Minha mãe sossegava. A chegada do marido era o alento para os desafios do dia a dia numa época em que, professora inteligente, sabia traduzir das notícias o quanto estava ruim a situação no país. A ditadura militar chegava ao seu lar de maneira disfarçada pelos noticiosos radiofônicos primeiramente e, a partir de 1970, pelas imagens em preto e branco da primeira TV enfim comprada. Meu pai, após jantar, ouvia “A hora do Brasil” e, depois, concluía suas ruminações políticas assistindo a telejornais. Minha mãe fazia crochê e tentava nos manter distantes de qualquer informação desagradável daquele tempo nefasto. Devido às informações “camufladas” (hoje apelidadas de nome estrangeiro), minha mãe tinha medo daquele tempo e seu espírito carregava ainda os medos da infância. Meu pai lia jornais, ouvia rádio, assistia à televisão e, me lembro, rapidamente questionou um tal “milagre econômico” (em seu bolso nenhum milagre acontecia).

Nunca conversei com mamãe sobre o tema, mas ela brigou comigo, quando soube que eu lia um “livro vermelho” proibido. Chegou de Portugal, disse-me o advogado amigo. A adolescência nos faz ir mais longe. Mamãe tinha semblante sério quando via as notícias na televisão (mas a televisão não mostrava os absurdos dos desaparecimentos, das torturas, das mortes causadas pela ditadura militar nem os jornais que meu pai lia – por onde sabiam dos fatos?), ficou brava ao saber do “livro vermelho” que esse filho lia: “Joga fora isso. Queime isso!”. Não queimei. Não joguei fora. Não sei se ela soube dessa desobediência.

Enquanto escrevo agora, reflito que minha mãe poderia se informar por meio das colegas professoras, pelo que me lembro mais “ativas” que ela. Mamãe entendia que a proteção à família era o essencial para ela. Talvez cobrasse o mesmo de papai, que só falava um pouco em reuniões festivas. Os olhos de meu pai falavam muito em seu silêncio e, entendo hoje, seus filhos não tiveram a capacidade de entender o que ele falava, o que ele dizia com seu olhar. Quem sabe tivesse seus medos também...

Católica fervorosa que sempre foi, mamãe sempre apreciou as falas de sua Igreja e acolhia bem as palavras de Dom Paulo Evaristo Arns, mas foi esse filho que agora escreve quem se interessou por ler o livro "Brasil: nunca mais", documento histórico escrito por especialistas pesquisadores que se dedicaram “durante 8 anos a reunir cópias de mais de 700 processos políticos que tramitaram pela Justiça Militar, entre abril de 1964 e março de 1979”, pautando o que foi a ditadura militar no Brasil. O prefácio dessa obra histórica foi redigido por Dom Paulo.

Naqueles anos de chumbo, as botas dos ditadores militares, com o apoio de uma tal “elite” e dos meios de comunicação, ficaram pesando sobre a existência da sociedade civil, por muitos anos quase imobilizando-a. Minha mãe – creio que meu pai também – tinha medo da ditadura e, se algum dia ela pensou, após o período da “abertura política lenta, gradual e segura”, nunca a ouvi declarar “ditadura nunca mais”.

Em respeito aos sofrimentos ocultos por ela, por meu pai, por familiares meus, por amigos dos meus pais, por famílias que não conheço e que tiveram pessoas torturadas, desaparecidas ou mortas; em nome da sociedade quase destruída na época, da sociedade que veio depois e da sociedade que vejo agora, repleto de memórias eu grito: DITADURA NUNCA MAIS!!!

Foto do Chico Araujo

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