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Chico Araujo é cearense, licenciado em Letras, professor de Língua Portuguesa e de Literatura brasileira

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Sedução e provocação é o que percebo em mim ao ler a literatura de Zélia Sales, escritora cearense contemporânea nascida na cidade de Itapajé
Tipo Crônica
Capa do livro 'O desespero do sangue', da escritora cearense Zélia Sales (Foto: Sergio Araujo)
Foto: Sergio Araujo Capa do livro 'O desespero do sangue', da escritora cearense Zélia Sales

A linguagem literária é algo encantador e ao mesmo tempo desafiante para o leitor. A incitação maior talvez esteja no ato de o escritor amalgamar linguagens, quando ele entende de misturar em sua escrita modos de falar distintos, uns elitizados, outros em dizeres mais comuns do cotidiano. Tanto na construção de poemas como no desenvolvimento de ficções e, ainda, na constituição da dramaturgia, a multiplicidade do falar humano seduz e provoca.

Sedução e provocação é o que percebo em mim ao ler a literatura de Zélia Sales, escritora cearense contemporânea nascida na cidade de Itapajé. Zélia, estudiosa, pesquisadora, conhecedora da língua portuguesa-brasileira, sabe criar narrativas ficcionais, abrindo espaço para tecidos linguísticos sofisticados, notadamente em discursos realizados por narradores, em companhia de falas populares identificadoras de personagens menos instruídas verbalmente, ou apontadoras de narradores que sabem se apropriar do modo de falar das pessoas mais simples – seu conto “João Urias”, que belo exemplo de domínio do linguajar simples do homem do campo, do habitante do sertão.

Contista segura, Zélia já lançou duas coletâneas de ficções autorais: "A cadeira de barbeiro" (2015) e "O desespero do sangue" (2018). Nesta sua segunda coletânea me detenho a partir de agora, destacando impressões referentes a quatro contos; e já adianto o quanto são fortes os temas e essas narrativas (termo bem apropriado aqui). Em "O desespero do sangue" podemos ler a história surpreendente de João Urias.

O conto “João Urias” põe em evidência o personagem que dá nome ao título, um sertanejo, digamos, marcado pela adversidade do sertão e definido nas limitações de linguagem, na falta de contato frequente com as pessoas além do sítio em que mora, forjado na barbárie que permeia a existência familiar.

João se revela um ser solitário, dissociado do mundo e determinado pela violência, sendo capaz de dizimar até quem lhe seja próximo. Na sutileza dos discursos, as agruras do sertão determinando a existência do sertanejo. Em semelhança a Fabiano, Urias se reconhece como um bicho: “E como regular pecado? Nem batizado eu fui... Sem batistero, sem registro... É bem capaz de eu ser um bicho igual qualquer outro aqui”. Esse trecho destaca bem como o personagem se percebe no mundo e essa percepção pontua sua “animalidade”, suas reações brutais diante do que lhe possa ser tormentoso.

Como bicho acuado, João defende o espaço em que vive com unhas e dentes e a força reativa de um animal agredido. A história bem contada nos leva a entender ser o protagonista dela capaz de tudo para manter-se no seu lugar, na propriedade em que nasceu, no sítio onde cresceu e onde vive cuidando de si, principalmente, mas em companhia da mãe. É uma história a ser lida com atenção, porquanto a linguagem de Urias é muito própria de alguém campesino. No entanto, as imagens que surgem da leitura nos põem diante de um mundo não tão desconhecido por nós.

“Cama de gato” e “João e Maria” são duas histórias muito delicadas. O tema explorado é tão contemporâneo que estabelece relação com ações mundanas criminosas hoje sabidas até na vivência sexual de pessoas de muita projeção social. Por óbvio, os dois contos são anteriores à divulgação de fatos recentes envolvendo, inclusive, deputado brasileiro, mas o assunto, tal qual apresentado nas histórias, tornou-se comum em noticiosos sensacionalistas exploradores das mazelas humanas.

O envolvimento malicioso de adultos com crianças e adolescentes, notadamente aqueles reconhecidos como “incapazes”, infelizmente tem sido algo tão presente nos noticiosos que destacam a recorrência dele. O trato linguístico respeitoso e sutil desenvolvido pela escritora não elimina das duas histórias o aspecto nocivo e criminoso que se pode constatar em situações como as apresentadas nas narrativas. Zélia desenvolve seus contos com a maestria de quem domina sua construção literária, encanta pelos discursos apresentados nela, critica o que precisa ser criticado na sociedade com firmeza e elegância.

É forte também a última história – “O desespero do sangue” –, que fecha o livro e que tem início com uma frase quase boba, até certo ponto despretensiosa: “Ô louro massa...” Um galanteio meio que infantil dito por Dorinha, porém com o potencial de mexer com a cabeça e o estado de espírito daquele belo homem ali na sua frente, parecendo “Waldick”, um viajante de cabelo avermelhado. A incongruência na cor do cabelo se associava àquele começo de história. Sem inocência.

A sequência do encontro primeiro, quase um clichê: o caso teve início no barraco em que ela morava, na companhia de filhos pequenos que dormiam, enquanto o marido se mantinha distante de casa por tempo impreciso. Sem ingenuidade, tempos depois do início daquele romance, “Waldick” leva Dorinha para outra residência, na cidade em que estava sua esposa, e passa a manter duas casas. Até tomar ciência de que a amante estava enrabichada com o vendeiro onde deixava no fiado as compras a serem pagas pelo viajante.

É forte a história, como todas as outras escritas por Zélia, que desenvolve sua poderosa literatura como contista munida de frases sutis e certeiras, revestidas de verdade e ironia fina. Nessa sua história – “O desespero do sangue” – que também dá título a sua coletânea autoral publicada em 2018 pela Premius Editora, temas comuns no cotidiano de muitas pessoas são trabalhados por viés ficcional. A infidelidade conjugal, ironicamente vivida por dois amantes casados, é um desses temas. Outro, o machismo que faz um homem crer ter posse sobre a mulher, a ponto de feri-la, caso não seja ela como ele deseja. Um terceiro, o feminicídio – Maria das Dores Araújo morre de maneira violenta, bárbara.

"O desespero do sangue" é livro de excelente literatura e merece ser lido por todos que apreciam o texto literário de qualidade.

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