Papel quis ser jogador, foi enganado, desenganado, mas segue em campo
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais
Papel quis ser jogador, foi enganado, desenganado, mas segue em campo
Como jogador profissional, Papel parou aos 22 anos. Levou calote de cartola e, sem saber, até assinou contrato de gaveta. Ficou desamparado. No futebol de subúrbio, encontrou respeito. Já driblou a morte num acidente de carro, mas as pernas precisaram ser reconstruídas. O médico disse que elas "não prestariam mais", mas ele provou o contrário
Foto: Cláudio Ribeiro
Reginaldo Gleison Teixeira Mota, 51 anos, o Papel
Quando começou a correr atrás de bola no bairro Quintino Cunha, sua magreza de menino lhe cravou um apelido: Papel. “Eu era bem fininho mesmo”, diz Reginaldo Gleison Teixeira Mota, 51. Ele até gosta. Foi aos 14 anos que seu talento se encontrou com a chance que sonhava: a de ser jogador profissional. Foi um caminho torto, de linhas tortas. O respeito só veio muito tempo depois, noutras condições.
Ele chegou a se profissionalizar, mas foi lá que se viu enganado, levou calote, ficou desassistido durante lesões muito sérias. Viu que há muitos dribles e malandragens também fora de campo. Em espertezas aplicadas por cartolas, foi “pago” com cheque sem fundos, assinou contrato de gaveta. Depois disso, ainda virou sobrevivente de um acidente automobilístico que quase levou sua vida e suas pernas. Chegou a ser desenganado até para voltar a andar. Hoje, quem diria, até se passa por “rei”. E o futebol sempre no enredo.
Volante habilidoso, boa estatura e impulsão, distribuidor de jogo, boa perna direita, esquerda eficiente, chegada de área, chute forte. Papel se qualifica. Ainda joga bem, é o que diz de si e dizem dele.
Foto: Cláudio Ribeiro Reginaldo Gleison Teixeira Mota, 51 anos, o Papel
Lembra-se de quando ia com o irmão Clayton, goleiro, um ano mais velho, para os treinos na escolinha do Tiradentes, time da PM cearense. “O campo na época ficava perto da Ceasa, uma hora de ônibus. Era longe”. A mãe, Maria do Socorro, não concordava, queria que fossem estudar. O pai, Luis Cassimiro, dizia “deixa os meninos”, acreditava que as crias poderiam render na bola.
Ambos se destacavam. Treinavam duas horas por dia, a semana cheia. Distância, alimentação, o esforço, custos, incertezas. Passaram um ano. “Deixamos de ir pelas dificuldades”, recorda-se.
Papel voltou-se para a exigência da mãe, estudar. Dois anos depois, concluiu o curso de mecânica geral no Senai. Estava com 17. Mas o futebol ainda lhe atiçava. O irmão goleiro havia ido para o juvenil do Fortaleza Esporte Clube. Papel quis saber se poderia tentar vaga. “Vá, mas não diga que é meu irmão”, ouviu de Clayton, temendo que o mais novo não fosse bem nos testes.
O técnico da base do Fortaleza era Jurandir Branco, falecido em 2014. Por décadas, descobriu talentos no Leão do Pici: Clodoaldo, Erandir, Osvaldo, Rogério, Edinho, Eliézer, Expedito, Caetano, Amaral, Alberto... Alguns foram contemporâneos de Papel. “O Jurandir falava bem grosseirão. Fui, e ele só ‘pega ali o material’. No meu terceiro treino, ele já disse ‘traga os documentos’”. Ainda queria se profissionalizar no futebol.
Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal
Papel no tempo em que atuava no time juniores do Fortaleza, em 1991
No início dos anos 1990, o time tricolor chegou a se preparar para ir a uma copa de juvenis no Rio de Janeiro. “Só que a gente não viajou. Faltou verba, sei lá. O Ferroviário é que acabou indo, alguém patrocinou. E lá o Jardel (centroavante) se consagrou. Ele era um ano mais novo que eu. Joguei contra ele muitas vezes nessa época”, relembra.
Enfim, foi profissionalizado. Mas logo em seguida foi emprestado para a equipe do Quixadá Futebol Clube. A intenção teria sido a de ganhar experiência. Porém, do que ele conta, teria sido melhor não ter passado por aquilo.
“No Quixadá, treinava dois expedientes, a diretoria atrasava, não pagava o combinado. Todo mês. Era vale, vale, vale. Digamos que se o salário hoje fosse R$ 3.000, eles pagavam R$ 500. Joguei o Campeonato Cearense. Quando saí, eles me deram um cheque sem fundos”, descreve. Nunca recebeu. Enganado estava, enganado ficou.
Voltou ao Fortaleza, mas saiu pouco tempo depois. Era 1992. Pediu seu passe. Queria jogar, onde fosse. O irmão havia sido contratado pelo Caldas Esporte Clube, de Caldas Novas (GO), e o chamou para lá. Foi-se empolgado. Num treino, a má sorte e a fatalidade: numa disputa de bola, arrebentou o joelho, ligamento cruzado rompido.
Precisaria de meses de tratamento médico e a ajuda do clube, mas descobriu que havia assinado um contrato de gaveta. Nem sequer tinha sido registrado na federação local de futebol. Estava desamparado e mal pago. Enganado outra vez.
Com a decepção, desistiu: decidiu parar. Interrompeu a carreira de jogador profissional aos 22 anos de idade. “Não aguento mais isso”, disse ao irmão. Tratou das dores físicas por conta própria e com a ajuda do irmão, mas a alma estava muito mais contundida.
Na vida que seguiu, trabalhou como torneiro mecânico, cobrador de ônibus, motorista, soldador… Mas, simultaneamente, virou um requisitado volante do futebol amador cearense. Ganhou respeito no meio, não era um mero boleiro. “Eu era muito chamado. E sempre jogava bem. O pessoal até brinca dizendo que sou o rei do subúrbio”, diz, entre a pouca modéstia e a autoironia.
Exibe orgulhoso o troféu de “Craque do Ano 2001”, recebido na festa de melhores do futebol amador daquela temporada. Elogia o meio não profissional. “Eles pagam na hora, os campos são lotados. Tem rivalidade, estrutura. As ligas amadoras são mais fiéis. A competição dos cinquentões pega fogo”, descreve.
Foto: Cláudio Ribeiro
Fortaleza-Ce, Brasil, 26-03-2024: Reginaldo Gleison Teixeira Mota, 51 anos, é conhecido como Papel. Sonhou em ser ídolo no futebol profissional, foi enganado por cartolas, foi desenganado por um médico após fraturar o joelho e o fêmur em um acidente de carro, e acabou virando "rei do subúrbio" nos times da periferia de Fortaleza. Na imagem, o troféu de Craque do Ano 2021 no futebol amador local (Foto: Cláudio Ribeiro/O Povo)
Alguns donos de times chegam a pagar até R$ 500 por jogo, dependendo do status do jogador. Nos fins de semana, muitos craques aposentados dos principais clubes locais são contratados para os torneios e copas e campeonatos. Papel é nome considerado.
Por muito pouco, o talento de Papel no futebol não foi interrompido contra sua vontade. No dia 31 de dezembro de 2015, Papel estava na casa da mãe, em Fortaleza, quando, já à tarde, decidiu que passaria a virada de ano ao lado do pai, em Irauçuba. Partiu de carro, viagem de 157 km. O sítio da avó paterna, dona Chiquinha, é no distrito de Juá, ao lado do açude São Gabriel, “lugar lindo”.
Papel garante que nunca gostou de beber, mas queria ver familiares e ir a um forrozinho certo por lá. Depois de curtir a noite, apesar de uma rede já armada na varanda, decidiu voltar para a Capital ainda naquela madrugada. “Tinha um jogo tradicional toda manhã do dia 1º de janeiro. Preferi voltar logo”, justificou.
Por volta das três da manhã, na BR-222, próximo a Umirim, ao desviar de buracos, seu Corsa Sedan bateu de frente com outro carro. Uma passageira do outro veículo, já idosa, morreu na hora. Além de pancada forte na cabeça, Papel teve o fêmur direito fragmentado e o joelho esquerdo, com fratura exposta, foi destruído.
Foto: Cláudio Ribeiro
Fortaleza-Ce, Brasil, 26-03-2024: Reginaldo Gleison Teixeira Mota, 51 anos, é conhecido como Papel. Sonhou em ser ídolo no futebol profissional, foi enganado por cartolas, foi desenganado por um médico após fraturar o joelho e o fêmur em um acidente de carro, e acabou virando "rei do subúrbio" nos times da periferia de Fortaleza. Na imagem, as cicatrizes nos joelhos esmigalhados pelo futebol e por um acidente automobilístico em 2016 (Foto: Cláudio Ribeiro/O Povo)
Sobreviveu, mas foi desenganado pelo médico. “Seu joelho não tem mais jeito. Sua perna não presta mais”, teria dito o especialista, antes da cirurgia. Ainda assim Papel foi otimista: “Doutor, vai dar certo”. E ouviu de volta do médico: “Você tem muita fé, rapaz”. No procedimento, suas pernas foram reconstruídas. As duas somam 14 pinos e algumas placas de metal nos pontos das lesões.
Onde esteve esmigalhado hoje há cicatrizes (cinco cirurgias só nos joelhos). Dez anos e alguns meses depois, a família da vítima morta ainda reivindica judicialmente os danos materiais. O jogo continua. Papel formou-se em educação física, é professor numa academia na Vila Velha. “Sonho, sim, um dia trabalhar num time de futebol. Talvez como treinador, mas mais como preparador físico”. Nas competições, ouve a gozação: “Lá vem o Robocop jogar”.
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